Era um homem só. Apenas um solitário homem cansado. De tanto pensar, pesar os prós – Que prós? – e os contras, pesar os pesares e pesar a vida, esqueceu que havia um passado. Outra vida, que tinha vivido. Que tinha, enfim, desabado, desabafado, acabado.
Passado (?).
Despercebido anos no vício – que não era vício, no singular, era pluralíssimo – como ele, como a chuva, como o deserto. Tal e qual as pessoas ditas normais, que corriam lá fora. “Atrás do que e para onde?” Ele se perguntava, ignorando que nem elas saberiam a resposta. Mas, não estavam nem aí, para falar a verdade.
Verdade, uma mentira. Desperto em si, deserdado de si, entediado como um poodle rosa, de madame com cabelo a caju, ele só esperava a noite, a liberdade, a rua e o céu, o seu belo telhado. Ao menos era o que quase sempre escolhia. O que lhe acolhia, ou o que era obrigado a recebê-lo, quando era expulso, aos bofetões, por algum senhor zelador da ordem. Irritado porque especialmente naquele dia, ele não estava – para variar – no seu juízo perfeito.
O fato é que em um triste dia, este mesmo homem imperfeito saiu, sem destino e com pressa. E rua afora procurava louco e irreconhecível, na sua desconhecida apagada saudade, um sonho, do qual achava, havia participado.
Mas as ruas surgiam, uma após outra, esquinas sem nome escondendo lembranças e recordando nomes que o homem não queria saber, mas que teimavam em soprar-lhe nos ouvidos, sempre atentos às vozes que não existiam: “mamãe… Lucélia. João, o meu pai. Hélio, o Helinho, meu amigo de infância. Isaura…” Sobressaltava-se, ao ouvir a voz inexistente, tão sua conhecida, sussurrar esse nome.
Isaura Gomes, a mulher dos seus sonhos reais, quase palpáveis, naqueles instantes de lembrança. Isaura, seu único, grande e definitivo amor. Aquela que fora capaz de levá-lo ao céu e entregá-lo ao inferno, sem data para retornar e buscá-lo.
Lembrava-se mesmo vagamente dos cabelos pretos e ondulados, da voz quase irritante, do semblante selvagem de quem lutou muito para chegar até ali. E não podia perder tempo com um louco.
Louco! Louco! Louco! Louc… A voz… Agora, ria-se dele e homem só, que, aliás, atendia pelo nome de Armando. Apertava a cabeça com as costas das mãos, como algum tipo de feitiço para afastar as vozes.
Acalmou-se, e, como um carro se afastando na estrada e sumir no horizonte, lembrou. Uma lembrança que era quase uma intuição, daquelas que nem se sabe se é lembrança, sonho, viagem. Lembrou…
Amara Isaura. Amara… Será mesmo que amara? Ou era o amor uma farsa, um pretexto para acabar. Desafiar e levá-lo ao fundo do poço de uma vez por todas. Tudo aquilo, ele fazia enorme esforço por acreditar.
A cabeça de Armando nessa hora era só metade. Aberta para enxergar todos os dissabores da vida – que ironia, chamar “isso” de vida. Nos poucos momentos de paz; nos menos que eram muito, muito mais…
Dormiu, ao relento. O vento espalhando um resto de pensamentos e um varredor invisível de sonhos juntando tudo num canto, apontando e dizendo: “Aí os teus sonhos, meu chapa. Se quiser pode pegar. Eu não pegaria…” Foi o conselho. Armando seguiu, achou melhor.
E irrefletidamente durante anos, esse resto de homem perdeu tempo. Do tempo que ele não tinha. Esgotando-se no desperdício indecente, inclemente, como gota d’água fugindo do oceano, cantando a delícia de partir, com a missão cumprida. Já não importava a sorte, a morte, uma promessa ou uma missão mal resolvida.
No sanatório só deram falta de Armando no quarto dia, procuraram mais três… Fecharam a semana: sete dias. Sete, este é um número cabalístico. Esqueceram de vez de Armando. O homem solitário de terno surrado e passado desconhecido, que – diziam – estava mesmo irremediavelmente perdido, desde que aparecera por ali, trazido por um serviço de recolhimento de moradores de rua.
Durante muitos anos essa foi a sua única, úmida e tangível falta de sorte.
O adeus, o corte, o misterioso sumiço daquele insensato homem que, embora desaparecido da visão de todos, continuava existindo, pensando, sumindo e morrendo. Em algum canto da via de estrelas, lá fora. Ou dentro, no seu mundo, hoje perdido. Um passatempo de acordar e dormir, viver, sem jamais ser.
Como tantos Armandos, fingindo… Fugindo e morrendo. Continuando, vivendo.
Uma noite o homem só fechou os olhos e acordou com uma voz, quase irritante, chamando baixinho seu nome: “- Armando…!” Abriu os olhos e viu os cabelos negros… O semblante, agora bem mais suave. Era Isaura.
Estendeu-lhe as mãos de dedos finos e ele se levantou. Não perguntou nada, só obedeceu.
Gotas de chuva transparente e que não molhavam (estranho) caíam sobre ele. Sentiu-se, simplesmente, parte de tudo o que não compreendia. Partiu rumo à rua, rumo ao céu. A liberdade, enfim…
Oi, Renata! Que bela estreia! Bem sensível!
Confesso que algumas metáforas me fizeram voar um pouco pra fora da historia, dae eu tinha q puxar a cordinha e voltar, mas gostei, como disse bem sensível e uma peninha vai tomando conta da gente.. rsrs
Abração
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Oiii ,Anorkinda! Obrigada pela leitura e pelo comentário, viu? É tão bom ler-ver que gostam do que escrevemos….feliz! ! E realmente, eu mesma viajo nas metáforas, e quando escrevo, estou numa viagem nesse mundo da imaginação, então, do jeito que elas (as metáforas) nascem, acabam acontecendo 🙂
Bjokas!!
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Esse conto me lembrou muito The Lovers, um curta de Taylor Holland, que é, também, um projeto de classe final (USC/Warner Brothers Studios). A lembrança veio porque o texto fala de ausência, fala não só de perder, mas preder-se. Ausentar-se da vida dos outros, ausentar-se da própria vida. Uma das questões aqui é realmente o desaparecer. Desaparecimentos são mortes não confirmadas. Para quem procura, uma agonia. Para quem desaparece por querer, um suplício. Para quem desaparece sem querer, uma morte muito pior. Outro ponto intrigante é a questão da loucura, à qual o texto me remeteu; a da sanidade que os outros procuram em nós, a da sanidade que se procura manter, e do que, em se tratando de desequilíbrios mentais, as pessoas mais temem: o indesejável e desconfortante convívio com os chamados ‘loucos’. Muito melhor abandonar, fazer desaparecer, fazer morrer estando vivo.
É um texto sensível, delicado, mas também é forte, e triste.
Parabéns!
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Oi, Evelyn! Super lisonjeada com a sua análise, brilhante, sensível, e direto ao ponto….é muito isso mesmo, o perder-se, e um perder sem fim, muito pior que a própria morte, que vivemos, de certa forma, tantas vezes em vida.
Obrigada pela leitura!
Beijos
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Oi Renata.
Tudo bem?
Em meu trabalho e até na vida, convivo muito com populações de rua. A solidão de que você fala aqui, a loucura, o limiar entre as duas, é uma triste realidade que você consegue retratar com muita poesia.
Passamos ao lado das pessoas e não imaginamos o universo aprisionado dentro delas, mas, no final das contas, somos todos prisioneiros de nossos traumas, nossas desilusões, da solidão inerente mesmo ao ser humano mais sociável da face da terra.
A máxima “nascemos só e vivemos sós” ilustra bem o seu conto. Um texto sensível, forte, coeso. E a história que você criou me remeteu à imagem de uma mulher que, após sofrer com os vícios, as palavras, o desprezo desse homem, deseja, em um momento de ira, tudo o que com ele se passa na narrativa. Sem ela ele é só. Sem ela ele é ninguém. Sem ela é louco e um dia vai se dar conta disso. Tarde. E só ela o libertará, ainda que na morte. É quase como que seu personagem fosse punido com as próprias palavras da autora. Mas a vingança, no final das contas, se torna um misto de piedade e compaixão pela solidão daquele que não conseguiu enxergar o verdadeiro amor.
Muito bom.
Parabéns.
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Oi Paula, queridona!! Você é um ser humano raro, e uma escritora que admiro demais…e olha, ter meu conto lido e comentado por você com tanta generosidade me deixa bem pra lá de contente.
É isso. O conto , o protagonista, a presença da mulher, a loucura – a vida de tantos, em cada linha e entrelinha.
Obrigada pela leitura, beijocas!
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Este texto deixa um buraco no peito, ao fim da leitura. É, ao mesmo tempo, triste e lindo. Impossível não se emocionar ao lê-lo. Acredito nisso, que a solidão faz parte da existência humana, e é com ela que morreremos…
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Oi, Vanessa!
Muito obrigada pela leitura e pelo comentário.
Sim, a solidão tem feito parte de todas as vidas, algumas, temporariamente, e outras, ad aeternum….
Um grande beijo!
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Que lindo e triste, Renata. Tão triste, suave, cheio de poesia e encanto. Difícil escrever um tema de completa desilusão com tanta sensibilidade. Parabéns!!
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Oi, Priscila!
Obrigada pela leitura, pelo comentário…são temas que mexem muito comigo, acho que com todo mundo….tão presentes, o tempo todo.
Beijos!!
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Você escreve com uma sobriedade cativante. Esta narrativa mostra um homem maduro que vaga por estranhas sensações e condições de vida. Na ponta de suas palavras vai nascendo o mundo dele, que como numa ampulheta vai se conduzindo para um final em que sentimentos e reflexões se sobrepõem.
Amo jogos de palavras e aliterações; assim apreciei sua técnica com prazer: “De tanto pensar, pesar os prós – Que prós? – e os contras, pesar os pesares e pesar a vida, esqueceu que havia um passado. Outra vida, que tinha vivido. Que tinha, enfim, desabado, desabafado, acabado. Passado (?).”
Vamos trocar nossas experiências e nos divertir muito neste nosso canto. Beijinhos.
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Fátima Heluany, que comentário mais lindo e sensível!
Sim, eu costumo usar aliterações e me perco, às vezes, com as palavras, é essa escrita intuitiva 🙂
Vamos trocando experiências sim!!
Obrigada, beijos!
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A qualidade da escrita ficou patente ao longo da jornada desta leitora pelas vicissitudes da vida de Armando. Na sua loucura há muito mais lucidez do que na trabalhada normalidade dos sãos. Armando destaca, em seus pensamentos e questionamentos, o que de fato deveria importar a todos nós: as lembranças das pessoas às quais ainda amamos. Neste ponto do texto a autora insere Isaura e suas peculiares características e o conto ganha novo fôlego através da deliciosa descrição da personagem e o esmaecido envolvimento dela com o protagonista. Até que ponto as lembranças de Armando eram realidade? Isaura me pareceu muito mais um mito confortável que uma pessoa de verdade. A morte, no final do texto, é suave, e funciona como um alívio para a alma atormentada do homem. Gostei. Parabéns.
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Oi, Iolandinha!
Que belo comentário, me emociono muito com a interpretação de Armando e suas várias possibilidades…é um dos personagens que mais me marcou.
Obrigada
beijos!!
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Olá, Renata.
Admiro muito quem consegue escrever desta forma, com sensibilidade, as palavras mais parecem notas musicais de uma doce melodia. Sempre que encontro testo com ”ritmo” ( é assim que chamo) sem que eu perceba, já estou lendo em voz alta, e tentando declamar como se fosse um poema.
Seu texto é muito bonito, uma visão simples de algo rotineiro até, nessa vida. Quem nunca olhou para um dessas almas soltas e desamparadas e imaginou o que ela carrega dentro de si? A vezes é até melhor não pensar muito senão acaba sendo sugada para ela.
A história desse homem só, que vive de lampejos de memórias pode ser a de qualquer um que em determinado momento da vida se perde dentro de si, me identifico com isso.
E é interessante notar que o caminho é sempre o mesmo, seja você louco, são, sozinho ou cercado de amor. Como já disseram, viemos só, iremos da mesma forma.
O final é agridoce, comovente, até mesmo um alívio. Agora ele pode viver, depois de tanta inexistência.
Parabéns!!
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Olá, Adna!
Muito obrigada pela leitura e pelo comentário, tão cheio de generosidade e sentimento….Armando é um na multidão, e tanto de todos….
Um beijo!!
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Que conto bonito e triste! Muito bem escrito,com metáforas que nos transportam a um mundo paralelo. A solidão que leva à loucura, o escape do sofrimento provocado por uma paixão mal sucedida. A menção sutil da mulher que o levou ao paraíso,mas também o arrastou para o inferno, nos faz pensar se ela era mesmo real ou apenas uma lembrança. Parabéns!
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Oi, Cláudia!!
Obrigada que bom que gostou!
Sim, a vida de Armando e seus pensamentos….acho que há muito de mim nele, ou dele em mim, em nós…a vida 🙂
Bjokas!!
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Oi Re, a imagem do seu conto já causa um sufoco, e em mim foi o que ele causou, e olha que eu sou dura na queda. Viajei no seu texto lembrando de alguém, uma pessoa que fez parte da minha vida e sucumbiu à solidão, à loucura, ao vício, muito triste. Tens razão, o 7 é um número cabalístico, e ele representa o céu e o inferno da nossa mente, como vc. muito bem representou em relação ao protagonista. Parabéns, beijos menina. Tchau, tô indo pro banheiro chorar.
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Oi, Rose!!
Obrigada pela leitura e pelo comentário tão carinhoso….
Olha, não chore não rs…mas eu sempre horo quando releio, Armando é muito vivo, muito presente, talvez por ser um pouco de tudo, e de todos….
Bjos!!
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E o 7, muito presente sempre na minha vida, em tudo, documento, telefone, enfim, em tudo que faço, tá lá o 7…
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A pior solidão é a ausência de si, o abandono da vida ainda em vida, o esquecimento que alguém impõe a si mesmo por causa das desilusões, das perdas, das frustrações, das injustiças. O conto nos remete a essa loucura, a esse abandono e deixa-nos um gosto amargo por saber que qualquer um está sujeito a ele. Muito bom.
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Oi, Renata!
Então, o conto é melancólico, tem poesia e jogo de palavras que dão ritmo. Particularmente não me agrada a adjetivação, ou, melhor dizendo, quando o narrador interfere adjetivando e entregando algumas situações de bandeja, mas entendo que você quis dar tom poético ao texto e por isso em algumas partes houve mais contar e pouco mostrar.
O texto é bem triste e o final é bem tocante. A velhice, solidão e o abandono são coisas que mexem comigo e faz pensar.
Muito bom.
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Olá Renata. Linda história, bela narrativa. E essa imagem tem que ser muito inspiradora, a primeira vez que a vi, recordo-me que também escrevi algo sobre a solidão de um homem velho e despojado, como o seu. Uma belíssima reflexão em torno de tudo e de quantos olhamos sem ver – a começar por nós mesmos. Quem dera a nossa morte fosse assim. Teríamos os amados a aguardar-nos. Senti saudades dos que perdi, dos que ainda vou perder, até dos que me perderão. Parabéns! Um beijo. (Estou com pressa. Vou telefonar à minha mãe. Enquanto ainda sei quem sou, quem é e, sobretudo, enquanto ainda posso). beijos.
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Oi Renata! Creio que sensacional seria a palavra exata para descrever tanta sensibilidade, tanta poesia. E acho que tão emocionante quanto a tristeza e a solidão do Armando, é o (re)encontro com a sua amada Isaura, que apareceu para resgatá-lo de sua triste solidão triste. Parabéns! Fã nº 1!
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Era um homem só, que nem sempre foi só. Um dia teve Isaura e nesse tempo foi feliz como se estivesse no paraíso. O destino levou sua amada e ele conheceu o inferno. Nada mais restava, só a solidão. Mas Isaura voltou para resgatá-lo da sua solidão.
suponho que ele foi conhecer o verdadeiro paraíso.
Muito bom seu conto.
Parabéns.
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Conto o que senti do conto. Muita sensibilidade e sabedoria neste conto que conto.
Parabéns!!
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