Faltava um quarto de hora pro meio dia, o sol ardia no firmamento, e Zezé na barraca de peixe, brincalhão e bondoso que só ele, cedia duas tainhas para o preto velho e coxo que ninguém queria perto.
— Cabra besta! Ond’é que já se viu? Assim tu num lucra!
Dizia o verdureiro avarento ao ver o feito, mas Zezé não se amofinava e rebatia com o eterno sorriso aceso enquanto ticava e elevava as orbes em prata com o atrito da faca.
— Deixe disso! Vá pra lá com as suas sovinices! Um pacuzinho cá… uma tainha lá … Mais tem Deus pra me dá.
E talhando ligeiro e aprumado, assoviava a canção dos sanfoneiros que animavam a lida num extremo da feira. Foi então que uma notícia o deixou afogueado. Formiga, menino arteiro, ligeiro, fazedor de recados, encostou o bucho no frio do balcão e debulhou:
— Ê, Zezé! Avia que Jão tá cum a mulesta lá pras banda de baixo!
E o peixeiro acenando com as mãos e cabeça para o vizinho verdureiro, correu acertando os passos nos desníveis dos paralelepípedos, deixando a barraca aos cuidados do outro. Trazia a faca suja de vísceras no cós da calça (um costume seu). No pé da ladeira, com o sol a pino, Jão, o amigo de infância, Rei do sopapo e confusão, gingava os passos da capoeira não deixando que o adversário reagisse. Os cães ladravam e os curiosos se chegavam exclamando com as mãos nas cinturas e cabeças ante aquele rebuliço. Zezé, folgando na certeza de que o amigo jamais lhe relaria a mão, mergulhou no olho da cizânia e serenou tudo.
— Mas que rumação é essa aqui? Acabe já! — E o amigo lustroso de suor do esforço explicava:
— Espia Zezé! Desde novinho que mexo a massa e largo o reboco, e esse varapau metido a besta vem ensinar o gato velho saltar? Diabo!
E o magrelo que mal havia chegado à cidade e fora buscar trabalho na construção junto de Jão, segurava o queixo tentando argumentar choroso, mas o amigo Zé dizia imperativo traquejando com as mãos.
— Cabô a arengação! Ande tu pra casa, avie! E tu, Jão, vem mais eu. Bóra batê um prato de pirão ali e assuntá.
E iam, lado a lado subindo a ladeira. Um bravio e grosseiro, o outro, amigo de todos. Juntos nos brinquedos e agora, no início da vida adulta.
— Ô, Jão. Tu num acha que tá baum? Caba cum essa marmotice, hôme. Te ajunta cu’ma cabrocha e quieta o facho! Um dia tu fica sem eu, e aí?
Jão baixava a cabeça, não era mau, apenas não conseguia conversar como os outros, não se sentia bem quisto pelos demais. Mastigava todo dia o cansaço da lida deixando que as noites de capoeira na Ribeira levassem embora suas amarguras.
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De tardinha a feira se agitava murmurante e Zezé escutava restos de conversas das mulheres velhas e meninas moças.
“Domingo no parque, lá pra perto da Boca do Rio.” […] “Domingo no parque, noite de dança.”
O peixeiro, alegre, vendia cardumes e cardumes rindo com o tilintar dos cobres na algibeira, fazendo gestos de troça para o vizinho verdureiro sempre de cara amarrada. Mas Zezé não se demorou com aquela brincadeira, pois logo sentiu um arrebatamento ao ver Juliana, morena formosa guinando na curva com fartura de curvas vindo em sua direção.
A negociata foi diferente, os peixes enrolados em jornais foram entregues à morena com a promessa do passeio dominical. E quando veio o tímido assentimento e o distanciar buliçoso, Zezé assoviou imaginando beber quentão e dançar umbigada juntos no arraial.
Ê, Zezé brincalhão! Encegueirado de paixão. Não vendia mais nada cedendo tudo de graça e bailando com graça, espezinhando as alpercatas no chão e impelindo o sorriso da feira.
Na outra esquina, Jão. No mormaço do sol, misturando grosseiro a massa na construção. Via a cabrocha de lábios encarnados serpenteando à ladeira com os cabelos entrançados, duas serpentes negras lado a lado, e tal visão o deixava atabalhoado. Os ouvidos o enganaram e escutou-a convidando-o para um passeio no parque.
— … domingo no parqueeee! Dançar na quermeeesse!
Ah, Jão… Rei da confusão! A Lordeza à cabeça ascendeu, o chapéu passou rés ao chão. Juliana na ladeira desapareceu, acenando pra amiga à janela da construção.
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No giro do dia os amigos Zezé e Jão suspiravam lado a lado biritando macio pra aliviar o duro labor. A feira se anoitava, os trabalhadores rumavam pra casa como numa procissão.
— Ah, Domingo é que vai ser baum! Tu tem razão, Zezé. Vô no rastro d’uma morena. Foi ela que me convidô prum passeio no arraiá.
Zezé, surpreso com aquela revelação, aconselhava ao amigo, trocando as pernas no chão de terra batida.
— Oxente! Nada de capoeira? Nada de confusão? Baum! Mas toma cuidado pra num ser biscate, mulher que se oferece…
— Ave Maria Zezé! Num é biscate não. É um baita peixão!
— E eu também vô. Cum uma cabrocha formosa. Lá nós compara a belezura das duas.
E assim seguiam com o sol se aninhando no horizonte, revelando seus planos de Domingo e a fervura que traziam em seus peitos, sem saber que aqueciam seus tachos no calor do mesmo braseiro. Jão não iria pra capoeira, mas seguiria aos pinotes a caminho do parque, e Zezé guardaria a barraca e viria o banho de “chêro” pra dançar coladinho mais Juliana.
Ê, Domingo no parque… Suor, sorvete e quentão! Diversão pra Morena Juliana e os amigos, Zezé e Jão.
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Mas no dia acertado, no tempo marcado, Zezé se atrasou. E a morena alegre aceitou o sorvete e o passeio na roda gigante com Jão. A roda girava e Jão apertava suave a mão de Juliana adornando-lhes os cabelos com uma rosa vermelha de amor. O sorvete escorria pelos dedos adoçando o momento festivo dos dois. O peixeiro Zezé de banho tomado exalando o odor da paixão; retirava sorrisos e dizia piadas no rumo do encontro com a ansiedade roçando-lhes as mãos. Foi então que ele viu, ele viu Juliana na roda gigante ao lado do amigo Jão.
“O espinho da rosa feriu Zé. E o sorvete gelou seu coração.”
O Domingo no parque perdeu seu mel. O sorriso eterno do rosto apagou. Zezé cambaleou no negror da traição, relampejando a faca no arraial que se assustava ao ver morrer o Zezé brincalhão.
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O sorvete é morango.
É vermelho!
Oi, girando e a rosa.
É vermelha!
Trovejando Zezé.
Foi girando.
Oi, a faca brandindo.
Na mão.
O profundo grotão.
É vermelho!
E o sangue da Rosa.
No chão!
Oi, Zezé girando.
Vermelho!
Outro corpo derrubado.
No chão.
O Domingo no Parque.
Desespero!
Alarido e carreira.
Confusão!
Ói, dois corpos estirados.
Vermelhos!
Ói, Zezé manchando.
Suas mãos.
— Ave Maria que amanhã num tem feira!
— Nem tem mais construção.
— Acabou-se a brincadeira.
— Acabou-se a confusão.
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O texto foi escrito para o desafio músicas sob inspiração da canção: Domingo no Parque de Gilberto Gil.
Adoro esse seu conto, Maria.Uma delícia de ler, baseado na música Domingo no Parque,de Gilberto Gil. Parabéns!
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Querida Maria,
Tudo bem?
Não conhecia esse conto e, por incrível que pareça, fui lendo e a música foi brotando em meu subconsciente, antes mesmo de se revelar.
Uma belíssima homenagem ao “Domingo no Parque”, que é um marco na MPB. Um marco, eu diria até, na obre de Gilberto Gil, que não sei, sinceramente, se ainda tem a mesma força, a mesma poesia. Uma música marco também para nosso país.
O fato de a música brotar antes na cabeça do leitor demonstra sua incrível habilidade como autora. Conheci seu trabalho com o “Infinitos” e não canso de dizer o quanto ele me impressionou na época. Eu pensei, puxa, eu podia ter escrito isso. rsrsrs “Fortuna” não fica atrás. Ao contrário.
Gostei de conhecer a história por trás da música. A sua versão, claro. Mas agora, também a minha. Sempre que ouvir a canção, verei também a feira, o peixeiro e todo o resto girando e girando.
Parabéns.
Beijos
Paula Giannini
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Legal demais usar a música para criar um conto. É uma letra dramática, mesmo. Boa oportunidade de ver um aprofundamento nos personagens e nas relações entre eles. Ainda que o tronco principal da trama já exista na música, a contista fez com que este tronco criasse galhos informativos, gerando um maior apego do leitor pelos atores da história. Muito bom, Dona Maria Santino. Parabéns, ainda, pela linguagem utilizada que passa autenticidade à história. Abraços.
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Adorei o conto, a variante regional na fala dos personagens, na poesia, na prosa . Show de bola. Parabéns.
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Olá, Maria, muito bom estarmos mais uma vez juntas em um projeto literário. O seu intertexto ficou, ao mesmo tempo, original e fiel e nos remete aos contos de terror quando aprendi a apreciar os seus escritos. Você soube bem explorar todos os símbolos usados por Gilberto Gil: parque, roda, rosa, sorvete, morango e até o ritmo de música foi alcançado na prosa, o ritmo da roda gigante, que como a vida continua a girar. Parabéns pela estreia! Beijos.
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Olá Maria. Bem, somos culturas tão diferentes que nem imaginamos. Vocês pertencem a um continente jovem, nós somos a velha Europa. Vocês são a alegria, cor, festa, movimento, nós a velha senhora chata, séria, circunspecta e muitas vezes crítica. Conheço alguma música de Gilberto Gil, mas não esta e percebi ritmo, música e aquele timbre alegre dum povo onde, acredito, a depressão deve ser algo raro. Por cá, ataca uns 8 em cada 10. A mim, é raro e de curta duração, mas acredite que sou uma ave rara; nós somos mesmo cinzentos quando colocados lado a lado ao arco-íris que vocês são. Então fui ouvir a música e identifiquei-a perfeitamente com a sua história. Não posso comentar muito, a fala dos personagens é-me quase estrangeira. Tenho que tentar traduzir o que leio com base, não em conhecimento, mas em suposições. Mas senti tudo: o ritmo, a alegria, a maneira de ser e estar solta e algo irresponsável, as cores, até a música, sem a estar a ouvir, mas a escrita está musical. Um belo conto. Parabéns. Um beijo.
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Coisa mais linda de texto! Fui deslizando nele, fui me entregando a essa coisa regional, a esse mundo distante de mim, mas que existe. Eu amei do começo ao fim porque me vi perto dos personagens e vivendo as cenas. Ouvi a música quando você relacionou ao título da canção. Que coisa mais linda de escrita. Fiquei encantada com ela. Obrigada.
Grande e carinhoso abraço!
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Oi Maria, seu texto é bem regional, pra mim soou bem estranho. De um jeito bom. Gostei de conhecer palavras e expressões novas. O texto fluiu muito bem, cheio de imagens coloridas e com uma cadência gostosa de ler! Parabéns!!
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Olá! Que conto maravilhoso! Confesso (e com vergonha) que não conhecia a música, e só a ouvi depois de ler o conto. A história por si só já ficou perfeita, mas qdo se conhece a música, percebe-se que o conto caiu como uma luva! Muito bom mesmo, vc deu vida aos personagens da canção. Parabéns!
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Oi Maria, uma delícia o seu conto, boa parte dele me remeteu à música do Gil, depois constatei isso nos créditos da autora, no final, veio a mente “Construção” do Chico Buarque. O seu conto foi muito bem construído, a linguagem regional acertada, o conflito bem pontuado, é o tipo de narrativa que dá suores na composição, né? Vc conduziu muito bem, parabéns!
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Contaço! Li ouvindo a música na minha cabeça o tempo todo! Parabéns querida.
Nunca li nenhum conto do desafio música e fui conferir o seu resultado, se você tirou o quarto lugar com esse contaço,eu preciso ler os do pódio urgentemente.
Parabéns
um forte abraçooooo
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