Estarmos juntos era-nos tão natural quanto o existirmos. Nem imaginávamos que pudesse ser diferente.
Tudo era perfeito. E o nosso conhecimento mútuo, de tão intrínseco, dispensava o diálogo – compreendíamo-nos por osmose, ambos solutos e solventes.
Brincávamos muito. Éramos felizes, até por nem sabermos o que isso fosse.
Naquele dia…
Não, não naquele dia; não existiam dias, tudo era o momento.
Naquele momento ele apercebeu um movimento de que não me tinha dado conta.
“Vamos?”- foi o desafio sem palavras.
Fomos.
A sensação foi de deslizar por um escorrega aquático. Depois veio a quietude, a escuridão, o silêncio. Tudo mera ilusão. Havia um movimento como que de águas mansas, um doce embalo. E também alguma luminosidade, muito pouca e ruídos suavemente abafados.
Parecia que desaguáramos numa bolha suave e morna.
E assim durámos, sempre juntos, sempre nós.
Também havia a mãe, essa criatura omnipresente. Dava-nos o que precisávamos: alimento, amor, carinho, vigilância, proteção.
Éramos felizes nesse nosso universo resguardado.
O pai era mais ausente. Não tanto por sua vontade, mas porque assim tinha que ser. Vinha por vezes. Ouvíamos a sua voz, sentíamos o seu amor, mas a sua função era diferente; ele saía todos os dias, ia trabalhar, ia e regressava. Mas não estava.
Depois começámos a querer mais, mais de tudo: luz, cor, movimento, espaço, comida, som. Mudámos. Havia insatisfação, desassossego.
Presságios do que viria, não o sabíamos. Apenas estranhámos.
A harmonia desapareceu.
Até a mãe andava impaciente. Notava-se, sentia-se, que não era a mesma.
E então aconteceu uma espécie de tsunami, não sei bem explicar. Mas tudo começou a movimentar-se e sentimo-nos desconfortavelmente comprimidos.
Ele (sempre ele na frente e eu logo de seguida) apontou. Via-se um túnel. E uma luz. Seria a tal luz ao fundo do túnel?
Sentimos algo diferente, novo: era o medo que chegava também.
Indecisos. Ficámos assim um bom bocado, sem saber o que fazer. Mas a compressão era forte. E aquela necessidade de mais e mais…
Fomos.
Desta vez a sensação não foi a de um suave deslizar. Antes se revelou uma descida tormentosa, difícil.
Sofremos muito. Tanto que tudo se nos varreu da memória, ficámos em branco.
Ouvi chorar e soube que era ele.
Depois senti um abanão violento. Esqueci de novo. Chorei.
“…da morte, apenas
Nascemos, imensamente.” Vinicius de Moraes
Ana Maria Monteiro
2017, Julho 11
O que mais admiro nos textos de Ana Monteiro eh a estética perfeita conseguida pela cuidadosa colocação e trato das palavras…significante e significado…que traz como consequência frases lindamente escritas e justas. Nesse conto essa característica eh absolutamente realçada. O milagre do nascimento eh retratado de forma bela, como deve ser…porem sem clichês, como geralmente eh feito. Temas como amizade, instinto materno, medos, ansiedade e outros, vem temperar o momento em que o “branco” se da. Mais um belíssimo texto de Ana. Adorei.
Ps- No embalo ou no abuso…e sabedor de seu linguajar lusitano indago: o que eh
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O que eh “abanão”?
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Obrigada pela generosidade do seu comentário, José. Um abanão é uma sacudidela de todo o tamanho. Beijos.
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Envolvente! Morte e renascimento. Excelente!
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Obrigada, Cláudia.Beijos.
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Magnífica e bem descrita gestação e nascimento.
Adooooooooooorei!
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Obrigada, João. Beijos
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Gostei de como o não dizer se adequou ao texto. Foi preciso apenas seguir, fluir com as palavras até o final. Parabéns.
Grande e carinhoso abraço!
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Obrigada Evelyn. Que bom que gostou. Um beijo
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Concordo com as colegas sobre o seu linguajar tão bem cuidado, tão fluido que parece um remanso de palavras a nadar até esperar a sacudidela na qual uma ou outra aponta com sua força semântica. Um poema em prosa, é o que eu digo, tudo tão bem colocado no texto, só esperando a cumplicidade do leitor para fluir a correnteza. Muito, muito bem escrito. como o primeiro conto que eu li seu. Um cuidado no trato com as palavras no qual temos de admirar e nos mirar. Parabéns!
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Olá Sandra. Que comentário delicioso. Obrigada. Um beijo.
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Quanta delicadeza, Ana!! Está perfeito! Tão poético, calmo, profundo e bonito! Você levou o verbo nascer ao pé da letra, gostei! Parabéns e boa sorte!!
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Olá Priscila. Obrigada pelo seu comentário. Sim, foi mesmo ao pé da letra. Bom ter gostado. Um beijo.
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Querida Ana,
Tudo bem?
Você criou um texto belíssimo, cheio de nuances e delicadeza. Mas, o que mais me chamou atenção foi que, na capacidade da síntese, sem a necessidade de se lançar a maiores dramas ou conflitos existenciais, você transporta o leitor para o centro da ação e ainda consegue mostrar a simbiose entre esses irmãos que dividem a vida, cúmplices, antes mesmo de nascer.
Vi-me transportada para dentro da barrida da mãe dos gêmeos desde a concepção até o momento do parto. Do nascimento.
Muito bom.
Parabéns.
Beijos
Paula Giannini
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Olá Paula. Obrigada pela leitura e comentário. Sim, não fui pelo drama nem pelos conflitos existenciais (confesso que senti uma tentaçãozinha), o conto ofereceu-se-me com uma simplicidade rara e entendi satisfazer a esse seu desejo, tão simples quanto nascer. Não gosto do título, isso é algo que mudarei. Mas, para uma primeira leitura, apesar de todas conhecermos o verbo, não quis entregar logo a história. Um beijo.
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Gostei muito, Ana. De verdade.
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Nascer, no texto tem o sentido literal , provir, ter origem, mas comunicado ao leitor com fecunda vivência estética, com uma sensibilidade impressionante. A autora é segura e hábil no uso das palavras. A sua prosa é poética, caracterizada pela concisão vocabular e, ao mesmo tempo espontânea, denotando, em suma, uma autora que sabe cuidar com seriedade e carinho daquilo que escreve. Parabéns. Abraços.
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Obrigada pela sua leitura e comentário, Fátima. Gostei muito de ler a sua opinião. Um beijo.
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Olá! Um conto gostoso de ler, calmo, poético, lindo…
Danadinho esse irmão, não é? Sempre querendo ser o primeiro em tudo, será que continuou assim no decorrer da vida?
Parabéns pelo belo conto.
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Obrigada, Vanessa. Sempre há um que nasce primeiro, tem que ser. Se tudo mantém essa ordem depois,já não sei. Obrigada pela leitura.Um beijo.
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Oi, Ana! Tudo bem?
Legal o seu texto. Tem poesia, tem beleza… Uma ideia simples e de fácil compreensão.
Digo que um mistério a mais deixaria o seu texto um bocado envolvente, (mais do que já está), pois a consciência de pai, mãe, alimento…, faz o leitor perceber logo que quem é o narrador personagem e qual a situação descrita no texto.
Gostei.
Bom Domingo!
Nota: 8
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Olá, Maria. Obrigada por sua leitura e comentário. Um beijo.
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Olá, Ana!
Amo contos pequenos e especialmente os contos doces, como este teu. Parabéns.Eu quase participei com um conto neste viés, neste ponto de vista, digamos assim, do bebê… Preferi trazer um inedito, este do bebê já escrevi há alguns anos, inclusive só hoje percebi o erro no título:
https://entrecontos.com/2015/02/28/meu-genesis-anorkinda-neide/
se tiveres curiosidade de ler, tb é curto.
O teu bebê, é em tudo mais doce e fala desta ligação com seu gêmeo, a história ficou bastante emocionante.
Obrigada por esta leitura
Abraço
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Olá Anorkinda. Obrigada pela sua leitura e comentário. Li o seu conto logo no dia em que você comentou o meu, mas na altura já não foi possível responder. Gostei muito e percebi bem o motivo por que um lhe evocou o outro. Ainda bem que gostou. Um beijo.
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Oi, Ana.
Engraçado, na primeira leitura eu entendi algo bem diferente do que de fato é, só então me liguei que se tratava de um nascimento literal, escrito de uma forma tão poética.
Sua escrita é muito bonita, pontual..faz umas escolhas que combinam perfeitamente com todo o resto.
Parece um conto simples, mas a forma como foi escrito transformou essa simplicidade em algo maior.
Parabéns.
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Que bom que gostou do que leu. Sim, ele pode ser entendido como algo completamente diferente no início. Concretamente, em mim, ao escrevê-lo, eles estavam como que no “limbo” entre duas vidas e já eram gémeos ainda antes da concepção. Obrigada pela leitura.Um beijo.
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Método TFI – Trama – Fluidez – Impacto
Trama: Pelo que eu entendi, uma gravidez gemelar desde a fecundação até o parto, do ponto de vista de um dos bebês. Um texto que tem a inteligência e apuro de falar sem falar, deixando o saboroso serviço de deduzir o que acontece para os felizes leitores. O texto investe nas nuvens sensoriais nas quais a narrativa nos joga, o interior e o exterior do útero dão o arcabouço para a autora criar a sua trama, envolver o leitor neste mundo aquático, desenvolver o personagem que tudo sente, e tudo pensa ver. Enfim, um trabalho impressionante vindo da pena de uma escritora competente que sabe nos fazer mergulhar em sua história.
Fluidez: um texto que voa e quando termina a gente lamenta que o voo foi curto. Sem entraves de qualquer nível. Gramática perfeita.
Impacto: Me deixou com um sorriso no rosto, me fez ver as cenas, acertou em tudo. Um texto que seria matador se não fosse sobre o contrário de morrer, que é nascer.
Parabéns – Parabéns – Parabéns.
Iolanda.
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Iolandinha, beijos querida. Apenas, para mim, a história começa antes ainda da concepção. Sabe-se lá onde. Nascem da morte. Quis dar a vida como um ciclo infinito (sobre o qual tenho dúvidas), mas a ideia foi essa. E daí a frase finaldo poema de Vinicius,dizendo de onde nascemos. Obrigada pela leitura e comentário. Beijos para si.
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Oi Ana,
Adorei! O que mais me agradou foi a concisão da linguagem, as lacunas dando ao texto uma consistência poética que o valorizou.
Li em um dos comentários que o título não lhe agradou muito. Que tal “Vamos?”, um verbo e uma interrogação, ao invés?
Ótimo trabalho! Beijo grande.
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Olá Melisa. O título original não era este, cheguei a mudá-lo. Mas a sua ideia é excelente e provavelmente alterarei de novo. Obrigada pela ótima sugestão, leitura e comentário. Um beijo.
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Oi Ana, poesia pura o seu conto, o verbo Nascer em toda a sua perfeição, o esquecer. Belíssimo. Achei tb. impactante a questão do pai, estava, mas não estava. Apesar do bebê estar relatando a sua experiência na barriga da mãe, o distanciamento do pai, ocorre tanto e para tantas crianças, durante a após a gestação. Parabéns pela verve. bjs
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Obrigada pela leitura e comentário, Roselaine. Ainda bem que gostou. Levei o verbo ao pé da letra mesmo. Donde nascemos, afinal, não é? Mas a vida espera-nos sempre e, pelo caminho, vai-nos presenteando com um pouco de tudo – até de companheiras de escrita como você. Um beijo.
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Um conto que se lê como poema, com as imagens carregadas pelas palavras. Os gêmeos dividindo as alegrias e as agonias do despertar ao nascer. Unidos como se só se reconhecessem um no outro. A mãe sempre presente porque outra opção não há, sendo o pai mais visita do que morador.
Narrativa delicada, tecida com fios simples e sem nós.
Parabéns!
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Obrigada, Cláudia. Gostei do seu comentário e leitura sensíveis (no bom sentido, não esse que anda na moda). Um beijo.
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Puxa Ana, que bonito!
Que narrativa sensível. Cada palavra no seu devido lugar. Cada parte do ato de nascer para a vida (e morrer para a vida uterina) construída de forma leve e fluida.
Irretocável.
Adorei o fato de ser narrada a simbiose de proteção, cuidado e fraternidade dos gêmeos desde a concepção. Que bonito!
Destaco: “Tanto que tudo se nos varreu da memória, ficámos em branco.”
Perfeita colocação! Deve ser assim mesmo.
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Obrigada, Sabrina. Os vossos comentários encheram-me de mimo. Somos isso mesmo ao nascer, uma folha em branco. Talvez, em algumas de nós, o desejo de escrever seja um reflexo não recordado desse momento. O papel à espera das vidas que lá vamos imprimir como um bebé aguarda a vida que o recebe. Um beijo
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“E o nosso conhecimento mútuo, de tão intrínseco, dispensava o diálogo – compreendíamo-nos por osmose, ambos solutos e solventes.” – Nunca vi uma tradução da gestação de gêmeos tão linda e profunda.
O conto tem a magia dos sentimentos que podemos todos ter passado e esquecido. Sensação de ter perdido na memória algo importante.
Sei que esses acentos em “mudámos, ficámos”, são opcionais, com ou sem acento são formas corretas e respeito a cultura local; soa estranho, mas têm seu charme.
Sugestão:
Alterar o título que tira a grande descoberta aos poucos de que se trata de uma gestação.
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Olá Catarina. Grande elogio. Obrigada. Não dispenso os acentos nem quando são opcionais. Por mim, existiria uma infindável galeria de acentos e de pontuações à disposição de quem escreve para poder os tempos e as pausas. Nem imagina o quanto invejo o vosso “trema” que não é usado no nosso português. Uso todos os acentos que posso e fico até com urticária quando leio uma palavra que deveria tê-lo e o autor não o pôs lá.
Vou alterar o título, sim. Aqui, achei desnecessário porque, atendendo ao tema da etapa, fica na mesma claro de que se trata desde o início.
Um abraço
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Oi, Ana Maria!
Primeiro, deixa eu revelar uma coisa: como eu amoooo os seus textos!! Que delicadeza, que poética perfeitamente traçada em meio às suas linhas.
Gosto imenso de ver a nossa Língua Portuguesa assim, na forma que tu escreves, é muito de meu agrado, e sobre o cnto, que forma magistral de mostrar um nascimento: quase uma morte, pois não? Só que nversa, se posso assim dizer.
Muito bom, parabéns!
Beijos!
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cumplicidade dos gêmeos desde antes da fecundação, quando eram espermatozoides e brincavam. Juntos deslizam para a fecundação e evoluem até o nascimento.
Adorei.
Meus parabéns.
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