A poesia, o sangue e o lixão – Sabrina Dalbelo

Ela amanheceu poesia. Estava inchada mas o sangue rimava com cor e com vida. Pedia aos céus uma estrela para encher sua casa de alegria. Sentir-se dentro de um balde vermelho e ardido não era de todo ruim. Em um canto da sala uma bela arte profana. Uma estátua de uma figura feminina de pernas abertas e cabeça tombada, em gozo. Ela olhava para a estatueta e pensava no próximo mês e na menstruação que, queria, não viesse. Pelo outro lado da rua o lixeiro passava em rasante, casa por casa. Os recolhedores corriam. Os recolhe-dores corriam. Eles corriam e jogavam os restos de coisas na caçamba. Jogavam restos de pessoas, restos de casas e sonhos desfeitos. A estatueta estava ótima, não era lixo, mas a intenção era a de que no próximo mês desse espaço a um carrinho de bebê. Só talvez. O sangue não era um lixo, nem resto, era sempre um recomeço. O lixo, entretanto, era um fim. Lá no lixão uma menina de cabelos sarará chupava um resto de laranja meio podre, meio boa. O lixeiro recolheu restos de cores vermelhas da moça inchada. A moça inchada odeia laranjas. A menininha do lixão ainda não chegou à puberdade, mas já teve contato com sangue e foi filha de alguém. Ela não foi embalada em carro de bebê. A menina do lixão não conhece poesia, mas ama estrelas.

Sabrina Dalbelo

46 comentários em “A poesia, o sangue e o lixão – Sabrina Dalbelo

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  1. Oi Sabrina, o seu verbo nascer ficou na expectativa, na frustração do sangue, na torcida que um dia nasceria. Gostei muito. Parabéns!!

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    1. Querida Pri,
      Agradeço antes de mais nada, o teu apoio a esse meu projeto… e a leitura…e o comentário.
      Agradeço a oportunidade de estar aqui com pessoas como tu.
      Abraço,

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    1. Gugacwo,
      Que comentário amável e muito inspirador.
      Fico feliz que tenha gostado.
      Não deixe de escrever, viu!?
      Quando eu tinha a tua idade eu também já pensava em escrever, mas não dei muita bola. Hoje sei que só deixei a minha maior alegria na espera.
      Volte sempre!
      Um super abraço!

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  2. Olá Sabrina! Um relato comovente, uma promessa ainda a se cumprir, um desejo de nascimento (ou renascimento) que está por trás de cada coisa que nos envolve, no sangue que marca a presença todo o mês, na menina que já é mulher, mas ainda não se descobriu. Muito belo.

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  3. A vida é um parto. Nossas vidas pequenas são esquinas mal trilhadas, mal dormidas. São pontos luminosos se apagando na escuridão. Um céu pontilhado deles que, ora ou outra, tombam sem dó. Um escorregão no azul, um mergulho no mar. Nosso nascimento é parto, um dia doloroso, outro benção. Nós ardemos em nós, vivemos no outro, morremos a sós. O verbo nascer deveria mesmo ter como sinônimo, mulher.
    Seu conto-poema é cruel, duro, sensível, profundo. Uma viagem ampla e significativa por esse universo feminino, por essa vida nem sempre justa, nem sempre certa. Tem um gosto agridoce, um sabor indecifrável de sentimento, ora confuso, ora pleno e certo de amor.
    Parabéns!
    Grande e carinhoso abraço.

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    1. Evelyn querida!
      Como sempre, lá vem tu dizendo mais do que eu mesma poderia sobre o que escrevi.
      Esse comentário só poderia ser escrito por ti, por alguém que lê com a alma (não gosto muito de falar de alma porque normalmente esse ente é utilizado com certo clichê, mas aqui cabe) e tem olhos abertos para os entremeios das histórias.
      Confesso que me arrepiei lendo teu comentário-poema.
      Muito obrigada!
      Bjos

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  4. Olá! “Pai/ mãe é quem cria” – esse, para mim, é o ditado mais verdadeiro que conheço. Uma criança pode-se nascer não somente de um ventre, mas principalmente do coração. Uma criança “no lixão”, pode-se tornar o filho tão esperado para uma mãe/ pai.
    Seu conto é lindo…

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    1. Obrigada Vanessa.
      Seria uma ótima reviravolta, não!?
      Elaborar um encontro de vidas de uma mulher que sonha ser mãe e não conseguiu com uma menina pobre que, muito embora já tenha tido uma mãe biológica, não se sente protegida e filha de verdade.
      Seria ótimo!

      obrigada!

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  5. As palavras neste conto surgem com forte pungência, com sutileza nas entrelinhas, ou líricas cantando o cerne da vida. Que o melhor de festa é a espera por ela; aqui ficou assim: a espera pelo nascer… Você é uma sensória alerta, a registrar os altos e baixos do viver humano. Parabéns pelo texto. Abraços.

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    1. Puxa Fátima! Que comentário esplendoroso… que delicadeza, que leitura de mim! Muito obrigada.
      Quisera eu ser um terço do que dizes…
      beijos e muitíssimo obrigada!

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  6. Olá Sabrina. Que belo texto! não sei comentá-lo, acredite. Que dizer? Tem o que precisa – nada sobra, nada em falta. E, embora exista quem afirme o contrário, poesia é uma água em que não sei nadar nem exprimir-me. Parabéns. Está belo e profundo. Um beijo.

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  7. Querida Sabrina,

    Tudo bem?

    Seu conto me remeteu ao curta Ilha das Flores, que amo. Não sei se já assistiu, mas nele o roteirista trabalhou a linguagem de uma forma muito parecida com a que você criou aqui. Uma narrativa que parte de um determinado ponto e que desencadeia uma espécie de ciclo dialético.

    Um ciclo. O da mulher, o do lixo, o da vida. Assim como o corpo da mulher se prepara para a maternidade, a natureza se prepara para ser fecunda através das sobras, do lixo, da laranja meio podre e suas sementes.

    Gostei muito da reflexão, da poesia, da profudidade em um texto tão breve. Mais que sobre nascer, seu conto fala da vida desperdiçada. E, assim como o sangue da personagem, representa o sonho frustrado, descartado em absorventes, a menina do outro lado do lixão é a imagem viva da frustração de um nascimento, de um ser vivo e igualmente descartado.

    Perfeito! Parabéns.

    Beijos

    Paula Giannini

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    1. – Alô!
      – Oi, eu gostaria por favor de falar com a Paula!
      – O que quer com ela?
      – Eu gostaria de contratá-la como minha comentarista, resenhista, terapeuta, melhor amiga! Posso?

      Paula querida,
      Sem palavras. Tu pegou tudo, os detalhes, a intenção, a questão do ciclo dialético. Como tu percebeu (talvez) dos meus últimos textos do facebook, estou tentando montar um projeto todo nessa vibração: nos paralelos que se cruzam, em duas pontas que se encontram.

      Para mim, poder fazer lembrar do super curta-metragem “Ilha das Flores” é um baita elogio!

      Estou extremamente honrada com teu comentário. E satisfeita e agradecida.

      Posso te contratar agora?! hahahahaha

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  8. Oi, Sabrina.

    Um conto carregado de sentimentos. E palpável. Sonhos, frustrações, abandono. Ele diz muita coisa, apesar das poucas palavras, na verdade ele grita pra um realidade ignorada.

    Havia esquecido, como o sangue pode ser uma palavra a definir tantas coisas.

    Parabéns, gostei bastante.

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    1. Obrigada, fiquei super feliz, principalmente por ter conseguido fazer algo “palpável” a partir de tantas metáforas!

      Super beijo!

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  9. Oi Sabrina.
    Me fez pensar.. enquanto para os homens, sangue é guerra, pra nós, sangue é vida.
    Gosto deste fluxo de pensamentos e vi este texto quase como um retrato, dois retratos, uma mulher divagando enquanto vê o lixeiro recolhendo dores e outro no lixao com a menina chupando uma laranja meio podre.
    Estas imagens levam, realmente, a muitas reflexões.
    Abraços

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    1. É Kinda…
      Homens e mulheres são, praticamente, dois universos diferentes.
      Temos compreensões de vida diversas.
      Que bom que gostou. Beijos

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  10. Método TFI – Trama – Fluidez – Impacto

    Trama: Seu conto é um conto curto, mas longo dentro de si mesmo. Quando você apresenta a personagem principal como uma pessoa inchada, pensa-se (até pelo tema que permeia todas as nossas histórias) que ela esteja em adiantado mês de gravidez, mas aí, mais à frente no conto, ela deseja não estar menstruada no próximo mês e isso é típico desejo de quem quer estar grávida e não de quem sabe estar. Outro detalhe que, aparentemente, causa confusão é o recolhimento da moça inchada pelos lixeiros. Demorei um pouco para deduzir que era duas moças inchadas, uma pela gravidez recente, e outra porque estava morta e o cadáver começava a inchar. Como disse, o conto é bastante complexo e nenhuma palavra ali é desperdiçada. Os sentidos do texto brincam com a gente, cabe deduzi-los.

    Fluidez: recomendo a quem for ler que não caia na armadilha da fluidez fácil. O conto não tem este propósito, ele quer ser desvendado. Leia como um detetive e não como se bebesse água gelada depois de uma corrida pelo parque. Vá devagar, tem coisa aí.

    Impacto: Muito positivo, desejei ser mais esperta para conseguir esmiuçar o texto como ele merece. Parabéns Sabrina. Beijos.

    Iolanda

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    1. Querida Iolandinha,

      Antes de mais nada, tu é super esperta!
      Concordo que o que tentei foi dar mais dados e informações do que propriamente fornecê-los em palavras.
      Tenho consciência que, por vezes, um exagero no lirismo pode levar à incompreensão. Mas a poesia é mais forte do que eu. E ela vem.

      Fiquei preocupada porque tu achou duas moças inchadas quando, em verdade, só há uma, essa que está menstruada e que não queria estar.
      O que os lixeiros levam embora é o seu sangue, a sua dor de estar sangrando, e não grávida.

      Do outro lado, temos a menina que ainda não sangrou, porque é jovem demais. Essa já nasceu de alguém, mas, por sua pobreza e desacolhimento, é como se não tivesse mãe.

      Ficaria feliz se me ajudasse com alguma sugestão para esclarecer a questão que ficou dúbia. Um super beijo!

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  11. Olá Sabrina,

    Um conto curto e denso. Uma mulher deseja estar grávida, mas o sangue descartado pelo seu corpo sinaliza que ainda não foi dessa vez. Nem tudo que é descartado é lixo, o descarte pode significar apenas renovação, esperança do novo. Como o sangue da menstruação ou a imagem da mulher em gozo que será descartada para dar lugar ao carrinho de bebê.
    Parabéns pelo texto que faz pensar e mexe com as emoções. Beijo grande.

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    1. Que bacana! Fiquei super feliz com o comentário.
      Muitíssimo obrigada!

      obs.: gostei bastante do teu texto!

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  12. Oi Sabrina, poesia pura, não sei fazer poesia, logo, senti uma inveja branca, de todas as cores, enfim, um arco-iris de inveja. Um deleite o seu conto, sangue e lixão juntos, tem coisa mais poética do que isso? Parabéns.

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  13. Amiga, vou ler novamente e vou analisar como pode ficar melhor, mas acho que o defeito não está no teu conto e sim, na minha cabeça e falta de inteligência, porque outras pessoas desvendaram facilmente. Ainda assim, lerei novamente. Beijos.

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    1. Sim, fico aguardando, mas, por favor, não se acanhe de me ajudar a identificar a falha que te levou à incompreensão. Obrigadaaaaa! beijos

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  14. Tenho carinho especial pela prosa poética. E aqui li uma tão visceral que quase sangro pelos olhos. A trama está na cabeça do leitor e não nas palavras. Quase um estupro em nossa consciência feminina.

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  15. Conto curtinho, escorrendo poesia. Que texto forte e ao mesmo tempo sensível ao tratar da ausência da maternidade. A moça que aguarda ansiosamente ser mãe observa a menina despida de cuidados maternais. Uma presa a um futuro que pretende embalar. A outra se contenta com os restos do passado de alguém. Triste, mas real.
    Parabéns!

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  16. Sabrina, olá!
    Quanta poesia, quanto sentimento e sonho/pesadelo/frustração entrelaçados de maneira tão única, e tão característica da tua escrita, que já venho aprendendo a (re)conhecer.
    O nascer, ou não, ali naquele sangue – quem nunca? Eu vivi algo assim…
    Belo conto,
    Beijos!

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    1. Puxa, Renata, que legal esse comentário, porque o que venho fazendo é tentando descobrir o meu lugar nisso tudo, sabe!? Afinal, que quero, de que forma e com que marca eu quero escrever?
      Fico feliz que já dê para observar isso! obrigada

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  17. Oi, Sabrina!

    Acho que entendi. São dois lados, duas pessoas. Uma deseja gerar uma vida e a outra luta para manter a sua. O lixo, os restos são os sonhos e a realidade. A que anseia por ser mãe deve ser bem de vida (ao menos está em melhor condição que a menina). Eu gostei bastante de imaginar as personagens e pensar na situação.
    Parabéns!
    Nota. 8,0

    Curtido por 1 pessoa

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