A Ghost-writer – Sandra Godinho

(Inspirada por Catarina Cunha)

Segunda-feira, 31 de julho de 2017, 9:47hs

…Ele me agarrou pelo quadril e me puxou para perto de si, encaixando suas pernas entre as minhas coxas. Pude sentir seu hálito quente, seu perfume almiscarado, sua barba rala roçando meu rosto. Enfiei meus dedos por seus cabelos e o puxei para perto da minha boca que procurava a dele. Suas mãos apertaram meus seios, que se encaixaram em concha, segurando-os, puxando delicadamente meus mamilos com os dedos enquanto mordiscava meu pescoço. Ele sorriu com malícia, brincando com a língua experiente, circulando, deixando-me louca, indo e voltando, acompanhada por gemidos de prazer que iam ficando cada vez mais intensos à medida que ele descia pelo abdômen até chegar ao clitóris…

Essa semana escrevo uma novela erótica. Cinquenta tons de cinza, Cinquenta tons mais escuros, Cinquenta tons de liberdade fizeram uma legião de perseguidores. Os livros sumiram nas prateleiras em poucas semanas. Erótico vendia, erótico arregimentava leitores, erótico dava projeção. Sadomasoquismo nem se fala. O mundo andava doente. Eu também, gripe forte, quase pneumonia. Amoxilina custava os olhos da cara. Já tinha lido que uma professora sem qualquer pretensão literária ganhava um salário de marajá com seus escritos pornográficos no Wattpad. E agora vai publicar a obra impressa porque uma editora se interessou. Houve quem se interessou, acreditam? Inveja era uma farpa engenhosa que abafava mentes brilhantes e as não tão brilhantes. Mas seguiria o mesmo caminho se eu desse sorte…

Segunda-feira, 7 de agosto de 2017, 10:30hs

Ninguém reparou o smoking de corte justo que ele vestia quando adentrou a delegacia, nem seu andar cambaleante, nem suas palavras desconexas, nem suas mãos trêmulas, apenas o sangue que ensopava sua camisa branca e que, a julgar pela mancha despropositada, indicava que o estrago tinha sido grande. Os policiais se assustaram e logo o cercaram, alvoroçados, curiosos, sufocando o homem com perguntas. O rapaz grunhia como se sentisse dor. Então, só então, repararam a fenda enorme na lateral direita do abdômen e o oco no ventre, indicando que algum órgão havia sido retirado. Depois disso, o homem desmoronou…

Terror. Essa semana escrevo contos de horror para o blog que precisa ser alimentado. Eu também preciso ser alimentado no mês do cachorro louco. Eu também estou louco, sem rumo e sem dinheiro no banco, pior que a música do Raul Seixas, que Deus o tenha. Aliás, lembro-me agora que seu parceiro é que se deu bem nessa seara para poucos: mercado fechado, editoras que temem se arriscar com nomes desconhecidos num país de cinquenta milhões de analfabetos. Paulo Coelho vive confortável na Suíça, fazendo a vida com livros de autoajuda que realmente o ajudaram a viver como um rei. Não, não há reis na Suíça, só na Suécia. Se quiser ele pode se mudar para lá. Aliás, com sua fortuna, ele pode viver onde quiser. Ataco de Raphael Montes nessa semana. Seguiria o mesmo caminho que o dele se eu desse sorte… Ah, se eu desse sorte…

Segunda-feira, 14 de agosto de 2017, 7:45hs

Querida Mãe Nossa Senhora Aparecida, Vós que nos amais e nos guiais todos os dias, Vós que sois a mais bela das Mães, A quem eu amo de todo o meu coração. Querida Mãe Nossa Senhora de Fátima, que nos montes de Fátima vos dignastes revelar a três pastorinhos tesouros de graças, nos aproveitemos de seus preciosos frutos. Oh, Virgem de Lourdes! Escolhida por Deus para ser Mãe de Jesus, tesoureira das divinas graças, refúgio e advogada dos pecadores! Prostrado humildemente a vossos pés, suplico-vos que sejais minha guia e saúde neste vale de lágrimas…

Rezas a uma Nossa Senhora qualquer, ou a todas, que a vida é curta, não pede passagem e a morte é certa. Só mesmo reza brava para ajudar. Depois disso apelo aos anjos. Demônio, só em último caso. Metade do mês e o salário terminou no dia cinco. Não sobrou nem o gole para o santo, por isso o desprezo santificado e os ouvidos moucos. As notícias em jornais velhos diz que a crise está brava, nem adianta se entregar ao álcool, que na bomba já custa quase o mesmo que a gasolina. A conta de luz anda pelas alturas, só vela para elevar as preces, com cheiro de parafina e incenso barato. O artista da fome, confinado a um cubículo brande seu cajado até ser encontrado morto, preso a um delírio. Maldito Kafka. Essa semana ajudo o padre a repassar todo o missal de orações no computador. Uma caridade em troca de uma bênção que me renove. E renove minha conta bancária. Se eu desse sorte…

Segunda-feira, 21 de agosto de 2017, 5:45hs

Cena 1. INT. QUARTO DE HOTEL DE CHARLOTTE – NOITE. De costas, Charlotte olha a grande janela. John chega por trás, inclina-se sobre ela, afasta seu cabelo da nuca e lhe dá um beijo. Charlotte: Ficou louco? O que está fazendo aqui? John: Ele está conversando com os clientes no bar. Nem desconfia que eu esteja aqui com você. Temos algum tempo para pensar exatamente como vamos matá-lo sem levantar suspeitas e sem deixar vestígios. Charlotte: O plano perfeito? John: O plano perfeito.

Deus ajuda quem cedo madruga. Pus-me a rabiscar um roteiro, ainda sob influência do Raphael Montes, fazer o que? Quando a diretora de grande prestígio – não revelo o nome porque faz parte do contrato – me pediu um script para o filme que ia rodar em Amsterdã eu não titubeei, mesmo sendo um ghost-writer que nunca receberia os louros pelo trabalho indigno, digo digno. Somente um cala-boca. Vi logo os flashes glamorosos. A noite de estreia. O ego inflado. Aceitei. Ela tinha uma vaga ideia do que queria, um embrião que mal se discernia, sem qualquer detalhe, e eu o direcionei para o suspense, sangue e suor. Suspense sempre vendia. Belas locações também. Ela já tinha a verba, a crise passando ao largo de sua família rica. Ao longe, trazendo a lume velhas mágoas. A desilusão, uma delas. O desamor, outra. Mas decepção mesmo veio depois de um mês, na entrevista que ela deu ao jornalista do principal jornal da cidade, descrevendo seu processo criativo, cheio de delongas, firulas, riscos e rabiscos. O estômago amargurou. O ego, desinflado. Foi então que a luz se acendeu. Criatividade, eu a tinha aos montes.

Segunda-feira, 21 de setembro de 2017, 9:47hs

Se eu fechar os olhos, o som da sua voz me invade os ouvidos. Pode sentir a vibração da orquestra que tomba meu pensamento? A seus pés me ajoelho, a teus pés me curvo, sem vontade própria a não ser meu desejo. E se ainda lê essas linhas é porque também você se interessa pelo amor que nasce por capricho. Se eu fechar os olhos, é seu sorriso que me vêm à mente, um tudo de felicidade, colocando à prova meu talento, sem outro plano que não seja te declamar em verso e prosa. Se eu fechar os olhos, eu, bobo de ideias, imponho minha alegria ao mundo só por te imaginar em cores e curvas. Se eu fechar os olhos…

Essa semana serão cartas de amor. Ela ainda não sabe, mas será minha mulher, minha consorte, minha amante, a diretora de grande prestígio. Só assim para se redimir do malfeito, da decepção e do cala-boca. O filme vai ser lançado daqui a alguns meses e serei eu a desfilar o tapete vermelho, ainda que com ela a tiracolo. O mercado é fechado, o país de analfabetos, as editoras não se arriscam com desconhecidos. Amsterdã é magnífica nessa época do ano. E Suíça. E Suécia. E tantos outros países. Quem sabe eu ainda escreva um livro de memórias, uma autobiografia. A diretora quando me vê, sorri.

– Toma um pouco de maconha!

– Para que?

– Todo artista usa!

Agora sou artista. Meus versos têm a proteção das Nossas Senhoras que não rondam os principiantes. Fico zen, sem suspense ou terror. Penso numa autobiografia. Penso num ghost-writer para redigi-la, com cachê que nunca compre a felicidade. Afinal, são tempos finitos.

 

 

 

17 comentários em “A Ghost-writer – Sandra Godinho

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  1. Um conto que retrata a profundidade dos sentimentos e frustrações de um “ghost-writer “. Mas depois de escrever com tantos gêneros e estilo diferentes, um profissional desses deve conseguir escrever até bula de remédio. Rsrsrss

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  2. Divertido e interessante. Já escrevi muitos discursos sob encomenda, até de políticos. A frustração maior é como interpretavam, ao ler, aquilo que havia escrito. O texto é uma boa comédia, bem estruturado, um certo suspense e o desfecho ficou perfeito. Parabéns! Beijos!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Querida, Fátima!
      Grata pelo retorno. Fico feliz que tenha gostado, isso serve de estímulo a continuar. Ganhei o dia com tantos comentários positivos. Avante então!
      Bjs

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  3. Querida Sandra,

    Tudo bem?

    Conto divertido!

    Poderia ter se inscrito no Desafio Comédia do E.C. (rrsrs)

    Gostei do modo como você inseriu trechos de textos em estilos diversos, enquanto narra o conflito da trama propriamente dita.

    Seu conto me fez lembrar que também já fui Ghost. Uma pobre, mas fui. Escrevia em um site de freelancers e fui contratada por uma empresa de cuecas. Nossa, fui a fundo e aprendi tudo sobre um universo que, antes, eu imaginava ser composto só por boxes, sungas e sambas-canções. Que nada… Há fios dentais e até uma tal de joulie (se bem me recordo do nome) que só sustenta metade do corpo do homem, pode? Ganhei pouco, mas me diverti.

    Parabéns por seu trabalho leve e gostoso de se ler. Dei boas risadas e ainda passeei por todos os estios que você consegue desenvolver, sempre com habilidade.

    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Querida, Paula.

      Eu que fico feliz do texto ter lhe agradado. Sim, estou procurando escrever coisas mais leves, mesmo que os temas sejam assunto sério. Depois, nosso grupo aqui me inspira muito. Tantos talentos, tantas ideias. O mundo precisa de leveza!
      Vamos à luta, nos inspirando, nos dedicando a fazer sempre um pouquinho mais, nos ajudando. Um bjo grande

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  4. Muito boa as inspirações ao escrever esse conto Sandra, a imagem também é ótima. O seu texto merece ganhar o universo dos escritores em geral. Nunca fui uma Ghost, na verdade sim, às vezes de mim mesma. Mas o que estava dizendo é que ele representa também o universo dos escritores em geral, mendigando leituras, invejando essa gente metida a fazer sucesso com histórias sabrinescas rsrs. Também acho que faria barulho no Desafio Comédia do EC. Parabéns, gostei muito, de verdade. Bjs.

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    1. Querida, Rose!
      Seu comentário me envaidece. Estou tentando escrever coisas mais leves, mesmo que o tema não o seja. Então, seu retorno positivo me instiga a continuar. Fiquei muito feliz mesmo.
      Forte abraço, linda!

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  5. Muito bom!
    Gostei tanto! Fiquei presa na leitura, querendo saber qual o próximo estilo que seria mostrado. Achei bem inteligente. Parabéns!
    Inteligente tb foi o personagem, teve sorte, enfim! hehe
    Abraços
    .
    ahhh acho que tem um errinho de digitação aqui: ‘As notícias em jornais velhos diz que ‘ , não seria: ‘As notícias em jornais velhos dizEM que’ ?
    E talvez, o verbo Toma, acho que vc empregou no sentido de ‘pegue’, mas.. pode ser interpretado como ‘bebe’, não seria melhor mudá-lo? aqui:
    – Toma um pouco de maconha!
    se bem que, pensando bem, este trecho da maconha eu acho que não precisava estar ali… o0

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    1. Olá Anorkinda,

      Eu já fiz a correção no meu texto , mas não sei corrigir aqui no blog. Apreciei o comentário e as correções. Eu fico feliz de ter passado algo leve e criativo às colegas que são tão talentosas. Aprendendo sempre. Obrigada pelo retorno!

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  6. Ola, Sandra.

    Nunca passei por isso, mas outro dia um rapaz que eu mal conhecia queria que eu criasse uma poesia para a filha dele participar de um concurso e o prêmio seria um caixa de chocolate. Eu posso com isso? Dei umas sugestões de onde ela deveria tirar inspiração, fiz uns quatro versinhos (que a menina copiou) e ela desenvolveu daí. Acabou vencendo o tal concurso. Dei uma lição de moral no pai, mas fiquei com pena da filha, tão mal orientada para a vida. Pois bem, o teu personagem tinha um talento diversificado, ia do erótico ao terror num pulo. Achei bacana o formato diferente. Parabéns pela criatividade. Obrigada pelo prazer. Valeu!

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    1. Olá, Iolandinha.
      Eu fico grata pelo retorno. Sim, manter-se criativa num blog com tantos talentos não é fácil. kkkk Eu me sinto muito motivada no nosso recanto literário. Motivada sempre.
      Beijos

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  7. Olá! Tanto a personagem quanto a autora do texto são muito criativas! Consegue-se escrever em todos os temas e estilos com maestria. Um conto divertido e que causa reflexão acerca desta profissão tão estranha aos meus olhos. Como uma pessoa consegue pegar um texto que não foi ela quem escreveu e assinar como se fosse? Sei não, hein?! Respeito, mas acho isso uma corrupção rsrsrsrs. Abç.

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  8. Ah, que loucura! Deve ser assim mesmo. Já escrevi alguns discursos, alguns projetos, algumas apresentações… É sempre muito estranho escrever mascarando-se como o outro. Mas, por certo, um aprendizado sem tamanho. Gostei muito de seu conto. Grande abraço!

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  9. Eita! Quanta segunda-feira bravas! Adorei todos os estilos mas destaco esse aqui = “Paulo Coelho vive confortável na Suíça, fazendo a vida com livros de autoajuda que realmente o ajudaram a viver como um rei.” – bem assim.
    parabéns amiga, você é boa, muito boa escritora.

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  10. Olá Sandra. Concordo com as colegas quando dizem que leram uma comédia, o mesmo não acontece com o EC; penso que lá teria boa nota, mas todos diriam que não visto a comédia, apenas o drama do escritor. Então, melhor ter publicado aqui.
    Nunca foi Ghost (excepto na escola, onde a Ghost de todas as cartas e bilhetinhos de meninos e meninas que se iam conquistando uns aos outros através de palavras que não eram suas, mas contava a intenção, porque a autoria, no fundo, todos sabiam), mas não me importaria muito, o pior seria mesmo isso que você escreveu: “Mas decepção mesmo veio depois de um mês, na entrevista que ela deu ao jornalista do principal jornal da cidade, descrevendo seu processo criativo, cheio de delongas, firulas, riscos e rabiscos.”. Demais para qualquer estômago. O resto leva-se bem, mas essa parte deve dar uma uma vontade danada de “meter a boca no trombone” (vocês usam esta expressão que significa “abrir a boca e deitar tudo cá pra fora”?).
    Achei bastante imaginativo você ir escrevendo dentro de géneros diferentes, conforme o cliente. Variou mais em género que em estilo, é certo, mas este é bem mais pessoal que o outro. E mesmo aí virou-se bom com as rezas (vontade de meter aqui um smile).
    Olhe, gostei de ler. Está bem escrito, coerente e acaba bem. Gosto de coisas que acabam bem ou que acabam mal, só me aborrecem um pouco quando terminam assim-assim. Não foi o caso. Acabou bem. Talvez todas nós, cada uma por seu caminho, terminemos igualmente bem. Um abraço.

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