Sobre Mistérios, Um Gato Amarelo, e Borboletas – Iolandinha Pinheiro

A menina mais excêntrica que já andou pela Alameda dos Pinheiros era uma albina de olhos cor de rosa. Assim como veio, foi embora, e muito se falou sobre ela nos anos seguintes.

Alice apareceu na porta da confeitaria como uma pequena assombração vestida de azul. Do cabelo às pernas compridas, calçadas em meias grossas e sapatos pesados, ela era toda branca, exceto pelos olhos de coelho e pela boca carmesim.

De acordo com o porte da menina, ela teria uns cinco anos. De sua origem nada se sabia. Mesmo espalhando suas fotos pelos postes, nunca ninguém a reclamou.

Viveu na casa do confeiteiro por alguns anos. Compartilhava o sobrado com o pai postiço, as duas tias roliças e um gato amarelo, como se fosse da família.

Era uma menina ensimesmada. Ficava numa mesa ao fundo da confeitaria, indiferente aos doces nas vitrines. Mas se lhe dessem papéis e lápis de variados grafites, era capaz de desenhar qualquer coisa com perfeição.

Por isso não estranharam quando, aos dezoito anos, Alice foi selecionada para acompanhar um entomólogo alemão que estava de passagem, catalogando borboletas.

Eram vistos juntos, com frequência, pelos bosques e charcos, munidos de puçás e uma caixa de classificação.

À noite chegavam encharcados e cheios de carrapichos. Abriam o mostruário de madeira trabalhada e mostravam borboletas coloridas.

– Morpho Menelaus Tenuilimbata – falava ele, apontando para uma borboleta azul com bordas negras.
-Vanessa Atalanta – E mostrava a borboleta grande, preta e laranja.

Alice, com toda a delicadeza que sua ansiedade permitia, ia desenhando cada infinitesimal detalhe, enquanto o entomólogo fazia suas alquimias antes de espetar os pequenos corpos com um alfinete especial.

Entre o português dela e o alemão dele, encontravam-se no latim dos nomes científicos.

Não precisavam da língua para se comunicar, entendiam-se no trabalho e aos beijos, escondidos pela silêncio dos arbustos entrelaçados, pelo mormaço do pântano e pela cumplicidade das árvores frondosas, durante seus longos passeios.

Um dia encontraram uma inédita lagarta toda branca como a moça, e guardaram-na em um pequeno viveiro. A lagarta virou uma pupa, dentro de uma crisálida quase transparente.

A medida que o tempo passava, um estranho fenômeno se processava sutilmente no corpo da mocinha. O cabelo, outrora cor de lã, ganhava tons de palha, e o rosto pálido ia ficando de um corado ainda relutante, espalhando cor sobre a pele fina.

Num domingo pela manhã, Alice acordou queimando em febre, queixando-se de dores pelo corpo. À tarde enquanto estavam todos na missa, a moça e o gato assistiram a crisálida se abrir e sair de dentro dela a mais linda dentre todas as borboletas. Mas só eles viram.

Quando seus familiares chegaram da missa, encontraram a porta aberta. Alice havia sumido sem deixar nenhum vestígio de sua presença naquela casa.

Da borboleta só encontraram a casca ressequida do casulo.

Naquele mesma noite, perceberam que o cientista também fora embora. Em desespero, o pai de Alice foi atrás do vigário que aprendera alemão quando era seminarista, e o fez ligar para a Universidade de Leipzig.

– Não conhecemos nenhum pesquisador com este nome – informaram os funcionários.

Durante muito tempo as pessoas deram as mais diversas versões sobre o desfecho da história. Para alguns os dois fugiram juntos, e moravam na Europa com sua estranha prole sobrenatural. Para outros os dois eram extraterrestres estudando a vida neste planeta. Para o pai de Alice, e suas tias inconsoláveis, a menina era um anjo que cumprira a sua missão.

Apenas o velho gato amarelo sabia da verdade, e vez por outra subia no telhado, procurando no céu escuro por algum sinal.

23 comentários em “Sobre Mistérios, Um Gato Amarelo, e Borboletas – Iolandinha Pinheiro

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  1. Que bonito, Iolanda!
    Achei tão sutil… A moça, muito peculiar e o gato.. fiquei com dó do gato.. rsrs
    Né fácil não, saber demais e ainda ficar sozinho.
    Gostei do mistério, ele deu asas à imaginação, literalmente.
    Bju

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    1. Cruel mesmo, o gato saber de tudo e não ter como contar. Agora até eu fiquei com pena dele, não tinha me atentado para isso, rsrs. Este foi um dos meus primeiros contos. Obrigada por vir aqui. Beijos.

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  2. Olá. Então, velho gato amarelo, queira nos cantar o que de fato aconteceu, rsrsrsrs. De acordo com o desenrolar da minha imaginação ao ler o conto, a imagem que ficou para mim, é que ela própria virou uma borboleta, e o tal cientista já sabia disso, ele viera atrás dela já esperando pela metamorfose. Mas só a autora (e o gato) sabem com certeza o que aconteceu com os personagens. Adorei! Abç ❤

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    1. Legal a sua interpretação, Vanessa! Eu deixei para que os leitores escolhessem o final, mas eu tenho um, sim. Acho que a Alice era uma alienígena em missão, e que o alemão era o contato dos ets aqui na terra. Mas rolou um romance entre os dois e eu acho que ela o abduziu para o planeta dela. Mas acho legal que cada um tenha um final diferente. Dá mais riqueza ao conto.

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  3. Querida Iolandinha,

    Tudo bem?

    Metamorfoses. Amo esse tema.

    Seu conto, antes de tudo, preza por um grande apelo estético. Não sei se influenciada pela imagem escolhida, mas creio que pela história em si, a figura da menina tem uma força misteriosa dentro da narrativa.

    Mas de que, afinal, nos fala a autora aqui? Me peguei refletindo. De metamorfose, de mistérios, de nos dizer e mostrar que o diferente é belo (e muito). Mas, sobretudo, ao menos para mim, o conto é sobre o chamado do mundo para que uma pessoa siga seu próprio destino, sua vocação, o eco de seu eu mais profundo.

    Ao nos revelar a menina com seus lápis, colorindo um mundo que, diferente dela, tem cores as mais diversas, a autora já nos dá uma pista da busca de sua protagonista. Mas é só quando a moça se une ao entomólogo em sua busca por espécimes e sua infindável variedade, que nos damos conta de quem realmente é essa menina. Junto ao entomólogo ela é completa. Junto a ele, ela encontra, na diversidade da vida, sua casa, seu espaço e lugar no mundo. E eis que é no momento em que isso se dá, que a crisálida, que passou a vida toda em compasso de espera se liberta, tornando-se enfim uma misteriosa e linda borboleta pronta a alçar voo.

    Muito bom. Sua vocação para o mistério é incrível.

    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Esse conto é uma parte de um projeto de 2002, que tinha por objetivo virar um romance. A história se passaria no Rio de Janeiro de 1908, e inserir um triângulo amoroso entre um entomólogo alemão, uma médica e uma menina desenhista. O cenário seriam os conflitos gerados pela vacinação (as pessoas se recusavam a se vacinar – pesquisa histórica) e por crimes com o mesmo modus operandi contra mulheres. Como vê, o mistério sempre esteve em meu coração. Ainda penso em escrever, mas tenho preguiça, rs. A sua interpretação ficou muito legal e coerente. Sim, a metamorfose é a tônica do conto. Lagartas viram borboletas, meninas viram mulheres, a personagem de origem desconhecida procurava a sua identidade e encontrou identificação com o estrangeiro, pois o sentiu como um peixe fora d’água tanto quanto ela. O resto fica para a dedução de cada leitor. Sempre adoro seus comentários. Um grande abraço, minha loira querida.

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  4. Iolandinha… Que conto maravilhoso! Que lindo! Eu me arrepiei! Tem uma mágica nele, tem um toque de encanto… Borboletas são seres especiais. A metamorfose que acontece na borboleta é algo incrível. De uma menina para uma moça, de uma moça para uma mulher, encontramos aí, uma transformação tão mágica quanto a da borboleta. Talvez o gato amarelo saiba muito sobre Alice, sobre países de maravilhas, sobre lagartas brancas, borboletas e o entorpecimento da vida, sobre arrebatamento e amor, sobre cientistas malucos, estranhos e correndo do tempo. Talvez… Um grande e carinhoso abraço!

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    1. Que delícia ler o seu comentário. Era exatamente este clima mágico que eu queria que fluísse no meu conto. O nome Alice não foi escolhido ao acaso, veio realmente da Alice de Lewis Carroll, tanto por causa da menina, jogada num mundo que não era seu, quanto da atmosfera do escritor inglês que cria um mundo maravilhoso e terrível que nos fascina. O gato amarelo, assim como o gato de Cheshire, participa sem ajudar ou atrapalhar, uma testemunha dos segredos do conto. Ah, adorei sua opinião. Esse conto era velhinho, pensei que ia ficar jogado num canto e nunca mais seria apreciado, eis que acabou agradando vcs. Que bacana. Obrigada, flor. Beijos.

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  5. Uma articulação ficcional à maneira surrealista, na qual a palavra provoca mais um estado de espírito do que uma realidade narrativa de combinações estáveis. Parabéns pelo texto que toca a sensibilidade e projeta um mundo de sugestões. Beijos.

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    1. Obrigada, Fheluanny. Não é minha praia, a fantasia, mas gosto de me arriscar por outros caminhos. Obrigada pela visita e carinho. Um grande abraço.

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  6. Gostei da atmosfera de fábula que permeia o conto. Aparentemente simples, o enredo possui camadas que conduzem o leitor por um labirinto de significados subliminares, trazendo a reboque questões incômodas como aceitação, amor próprio, culpa e, claro, transformação. Certamente é uma história que poderia ser desdobrada, ganhar fôlego, virar borboleta. Há asas de sobra para isso. Parabéns pelo texto, Iolandinha. Um abraço!

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    1. Uma honra receber a visita e o comentário de um escritor tão competente e dotado quanto vc. Muito obrigada, este foi um dos meus primeiros contos, daí a necessidade de melhorar e aumentar. Um grande abraço!

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  7. Esse conto é despretensioso, mas concordo com vc com relação ao final. Acredita que era para ser um romance policial e virou conto por pura preguiça da autora?

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  8. Olá Iolandinha. Hoje, na melhor das intenções que não durará o suficiente, fui até ao início do nosso blog para checar até onde tinha comentado e desde quando me falta ainda. Este seu, foi o primeiro conto que encontrei sem comentário meu, mas recordei-me ao lê-lo. Está muito bom, como sabe, só acho que o sacana do gato bem podia dizer que raio se passou com o alemão. Beijos

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    1. Ah, agradeço pela leitura e mais ainda pelo comentário. Foi um conto de começo de carreira, mas fiquei satisfeita com o resultado. O gato contou várias vezes para todos o que havia acontecido, só não conseguiu encontrar um intérprete para os seus miados.

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