Nana nenê – Sandra Godinho

 

Nana nenê

Que a cuca vem pegar

Papai foi na roça

Mamãe volta já

 

O nascimento dela era uma novidade, o primeiro filho, o primeiro sopro, o primeiro sono. Quis enxergar nela as marcas que insistimos em procurar nos recém-nascidos que a fazia nossa. A marca de nascença, o nariz de um, a boca de outro, no choro estridente que não cessava. Chorava e estendia os braços em agonia para que a protegesse, aliviando-a da dor, da cólica, do casulo que agora lhe faltava, do desabrigo que tão cedo a atormentava, aquela primeira casa feita de calor e carne. Vi-me impelida a protegê-la das artimanhas do mundo, resistindo, resistente, estreitando-a ao peito na aflição de quem busca saciar, sentir seu corpo pequeno na avidez dos lábios que chega aos mamilos e que não cessa até o leite minar-lhe a fome infame, infinita. Um desejo ainda tão pequeno feito ela. Saciada, ela resmunga, incomodada com o descostume, talvez a claridade excessiva lhe cause o incômodo indesejado. Chora até voltar a dormir num silêncio inocente que trato de velar.

Ciranda, cirandinha

Vamos todos cirandar

Vamos dar a meia volta

Volta e meia vamos dar

 

O crescimento dela era uma novidade. Eu a observo crescer, balbuciar palavras entre tentativas e erros até que a linguagem se firme. Ela ainda se reconhece na imagem do outro, no corpo do outro, na exigência do outro, pai, mãe, avô, avó. Faz birra, faz manhã, faz dengo. Exige cuidados, exige braços, exige colo com seus olhos azuis cristalinos e cabelos cacheados que fazem lembrar um anjo. Transita pela casa, deslocando móveis, jogando tudo ao chão, abrindo espaços, abrindo sorrisos nos rostos compassivos de pais que se enlevam com sua figura pequena, determinada em sua energia desmedida. Apega-se à boneca que não fala feito ela, também boneca, a queridinha do papai. E da mamãe. Roda, roda, roda, feito um carrossel no parque de diversões. Roda acompanhando o mundo, acompanhando os dias e as noites que nunca param. Roda porque se sabe segura nos pés que a sustentam, nas mãos que a guiam, ainda servindo de modelo a um ser em formação. Entre seus lábios finos de boneca, um lápis branco se faz cigarro, fingindo soprar a fumaça, fingindo tragar, empenhando-se a imitar o pai que a vê com orgulho indisfarçado. Ele a vê sua, a boneca de porcelana que sempre será do mundo, sem se dar conta que é emprestada por Deus num pacto conivente. Sua militância começa cedo. Já mostra gênio, apesar das vagas noções e das impressões duvidosas. Já demonstra que é difícil de se moldar aos padrões estabelecidos, questionando regras e indagando porquês. Diz que quer casar. O pai se assusta. Casar aos cinco anos? Também quero mandar em alguém, ela responde sábia. Eu volto a reordenar a vida, repactuando similaridades, ordenando o álbum de fotos em marcações cronológicas para sentir que tudo volta ao lugar. Não volta. O mundo gira rápido enquanto ela cresce sem pedir licença. Eu choro até voltar a dormir num silêncio inocente que trato de velar.

 

Uni, duni, tê

Salamê minguê,

Um sorvete colorê

Pra mim e pra você

 

O amadurecimento dela era uma novidade. Aos poucos, ela foi se desvencilhando de nossas versões numa tentativa de se achar em seu próprio corpo, sua própria versão em nova linguagem, narrativas e discursos sempre a exigir liberdade, sempre a exigir independência. Fechou-se em seu próprio casulo, o quarto vertido em clausura. Mas ao proteger-se, afastou-se da casa que se fez inóspita. Calei. Calar era resistir. E ao resistir, permiti que nova ordem se instalasse. Ela não se engajou mais em risos e banalidades, completamente alheia à mesa na hora do jantar. Nem em debates familiares que eu julgava frutífero. Nunca o eram a seus olhos. Mas partilhava conversas com colegas no quarto recôndito, companheiros de lutas diárias, eles também adolescentes convocando aliados. Permaneciam reclusos, mesmo com o passar das horas, mesmo com o passar dos dias, fumando cigarros que eu pretendia que fossem de tabaco, a despeito do cheiro esquisito que empesteava a casa. Seria calar se omitir? Seria calar aniquilar-se? Viver era tão somente aceitar o despojamento de tudo o que nos era caro na fé inabalada de que o mundo girava em busca de um eixo, um eixo que nos sustentasse. Doía saber-me seu desabrigo e sua opressão, em diálogos que terminavam em choro, ou meu ou dela, enquanto o pai assistia a tudo com impotência, partilhando da minha aflição. As baladas se sucediam. As discussões também, assim como os namoros de pouca importância. Nunca fiz força em conhecer seus pretendentes, talvez porque eles servissem de afronta à moral e aos bons costumes da casa que ela não considerava mais sua. O pai chorou até voltar a dormir num silêncio inocente que eu tratei de velar.

 

Lights will guide you home

And ignite your bones

And I will try to fix you

 

O equilíbrio dela era uma novidade, especialmente ao som de Coldplay, que passou a ouvir em seu fone de ouvido, depois dos estudos. Formou-se advogada. Casou-se. Quando não há mais gritos, restitui-se o lugar de pertencimento. Quando não há mais gritos, restitui-se o sentido da vida, absolve-se a imobilidade tão angustiante quanto momentânea, numa euforia que perpassa o peito. O triunfo tardio de um desfecho feliz, coroado pelo nascimento do novo ser que perpetua a família. Quando não há mais gritos, as vozes fazem-se ouvir numa exortação coletiva que envolve os familiares em peso: pai, mãe, avó, avô. É um novo membro, pequeno como a mãe, boneco como a mãe, logo acalentado ao peito, sorvendo com a avidez dos lábios o leite materno para que o ciclo se feche, para que a vida siga, para que o futuro se faça antes que eu vá desse mundo que gira em seu eixo de sustentação. Netos. É a reparação que dá sentido à vida, ocupando as cadeiras vagas ao redor da mesa de jantar, lindos em sua inquietude, ocupando os porta-retratos com sorrisos gratificantes. Vem-me um cansaço ancestral, nessa noite em que tudo parece exaurido, a euforia cedendo a uma prostração inapelável. Com meu olhar errático, procuro focar num ponto específico do quarto, o ordenado álbum de família que descansa em cima da mesinha de cabeceira. Eu só sinto dor e não sei de onde vem. Procuro focar meu olhar para além dos remédios, para além das fraldas, para além desse corpo cheio de acenos, pronto para a viagem derradeira. Meu velho virá em seguida, ele também desejoso de partir. Ele também calado, ele também resistindo. Calma, mãe, vai ficar tudo bem – eu ouço minha filha falar ao longe, muito longe. Até que ela começa a cantar.

Nana nenê

Que a cuca vem pegar

Papai foi na roça

Mamãe volta já

 

21 comentários em “Nana nenê – Sandra Godinho

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  1. Lindo o ciclo da vida! É assim mesmo, muito bem retratado e com trilha sonora adequada. A narrativa está emocionante, é a percepção de uma mulher do papel central que ocupa nesta trama. Você foi, ao escrever este texto, uma sensória mais alerta do que um sismógrafo, a registrar os altos e baixos do crescimento, do viver, minuto a minuto. Parabéns. Beijos.

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    1. Obrigada, Fátima. Um texto que tem muito de mim, como mãe, como mulher, como filha. Altos e baixos. Crescer às vezes dói, não é mesmo? Um beijo!

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  2. Querida Sandra,

    Aqui temos mais que um conto.

    Temos toda uma vida.

    A vida da filha a se desenrolar frente aos olhos da mãe. A vida da mulher atada a outra inexoravelmente, desde o dia em que se torna mãe.

    Nossos filhos nascem e, mal suspeitamos nós, transformam-nos através de muito amor. De muita lágrima. Nos preocupamos quando são pequenos, nos preocupamos quando crescem, quando se tornam jovens, adultos, pais… É um ciclo de movimento perpétuo, não é?

    Linda narrativa, cadenciada por cantigas de ninar que tanto amo.

    Os filhos, de fato, serão eternamente bebês aos olhos da mãe. É isso que traz as entrelinhas de seu conto. É isso que você, habilmente, introduziu em sua trama, ao entrecortar a prosa com cantilenas do imaginário do cancioneiro infantil. Uma música que mexe com nossas raízes mais profundas. Seu texto nos fala de uma grande verdade. O amor de mãe é um elo indissolúvel.

    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Olá, Paula. Saboreio suas críticas como ninguém. O dia que eu conseguir comentar com sua sensibilidade dou-me por satisfeita. E sim, o amor de mãe é um laço indissolúvel, mesmo que doa às vezes. Obrigada pelo comentário. Beijos.

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  3. Olá. Este é um conto que causa várias reflexões. Primeiro o próprio crescimento, depois o crescimento dos filhos. Um ciclo interminável. No mundo de hoje não sei se é mais tão crível. Seria essa a finalidade da vida? Crescer, produzir, reproduzir… É pouco, muito pouco para uma vida tão longa.
    Em contrapartida, qual o sentido da vida senão os filhos, a família? Fazer (e produzir) tanto para quê e para quem? A vida é um eterno desenrolar de mistérios, onde cada um precisa crescer mais a cada novo dia.
    Parabéns pelo conto tão belo e tocante. Abç ❤

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    1. Olá, Vanessa!
      Sim, hoje em dia as mulheres não depositam na maternidade toda sua realização. Mas é um ciclo para uns e outros, nascemos, crescemos e morremos, não há como fugir. Há ainda o amadurecimento, para uns mais profundos do que a outros. Obrigada pelo comentário. Beijos.

      Curtido por 1 pessoa

  4. Seu conto é uma surpresa feliz nessa segunda-feira de uma chuva que já passou, mas que inundou meus olhos ao pensar que as coisas são, muitas e muitas vezes, do jeito que são e é só isso mesmo. Um nascer, um crescer, um envelhecer e morrer. Ver nascer, ver crescer, amadurecer e ter que separar-se, desprender os laços que nos arrebatam todos os dias, os amores que nos marcam todos os dias. Sequer levamos as lembranças, porque aqueles fios de prata se soltam e, então, sem querer, partimos.
    Esse é um conto muito lindo. Me emocionou.
    Um grande e carinhoso abraço.

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    1. Querida , Evelyn!

      Fico feliz que o conto tenha te emocionado. É uma parte de mim, acho que é uma parte de todas as mulheres que se tornam mães! Feliz com seu retorno positivo. Bjos

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  5. O ciclo da vida narrado de forma sensível e poética, eu diria. O encaixe dos versos das cantigas de ninar, de roda e até Coldplay, ficou perfeito, deu leveza ao texto.
    A mãe nasce ao parir a filha que também cresce e se transforma em outro alguém. A mãe acompanha o desenvolvimento daquele ser que acalentou e velou o sono, que amou e estranhou algumas vezes, por quem sofreu e se desesperou, outras tantas vezes. Aí, vem o tempo e decide que nada pode parar, a filha amadurece e também se torna mãe. A vida recomeça sem ter mesmo terminado. O envelhecimento representa a volta ao começo, à dependência e às fraldas. A mãe, assim como o pai, precisa de cuidados e tem seu sono velado pela filha.
    Escapou só o “manhã” no lugar de “manha” (esses corretores são fogo!)
    Ótimo conto, leitura que flui com a facilidade e aconchego de um abraço.
    Adorei o “cansaço ancestral “.
    Parabéns!

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    1. Olá, Roberta!

      Estou muito sensibilizada com o comentário positivo. Fico feliz que o conto agradou. Obrigado pelas correção. Às vezes passa mesmo despercebido e eu gosto que as colegas ressaltem porque nos envolvemos tanto com o texto que determinada hora não distinguimos mais. Procuro fazer o mesmo com as colegas. Beijos

      Curtido por 1 pessoa

  6. Oi Sandra, esse conto poderia se encaixar perfeitamente no ciclo completo, nascer, crescer e morrer. A estória é maravilhosa e pode ser, até certo ponto, autobiográfica, mas o que mais me chamou a atenção foi a forma espetacular da escrita, impecável, cada palavra, como um manjar a ser lentamente saboreado.Parabéns!

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    1. Olá, Priscila!

      Que delícia de retorno. Fico muito feliz que tenha gostado. Procuro dar meu melhor entre tantas escritoras talentosas que se encontram reunidas neste blog maravilhoso. Tem algo de autobiográfico sim, uma parte de mim e de minha caminhada. Um beijo grande!

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  7. Olá Sandra. Um belo texto onde a narradora personagem ao fim da vida reflete sobre sua trajetória dentro da família que constituiu. O relato é denso, poético e carregado de emoções. A inserção das musicas fez muito bem ao texto, arejando-o. Muito bom, amiga. Excelente trabalho.

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  8. Lendo o seu relato lembrei de mim mesma, com um filho nos braços e sem saber o que ia ser daquela criança com uma mãe tão destreinada como eu.

    Não foi um processo simples, estava me separando e tudo o que já era difícil ficou muito mais complicado. Ficava muitas horas em casa, olhando para aquele pequeno desconhecido que era de minha completa responsabilidade e pensando em como eu ia tirar nós dois da grande encrenca em que havíamos nos metido.

    A gente não é mãe assim que colocam a criança em nossos braços, a gente é mãe a cada dia.

    Gostei muito de vc entremear a narrativa com as músicas infantis, tornou o texto muito mais suave.

    Parabéns, querida Sandra, e obrigada pelo prazer que me deu com a leitura do seu conto. Beijos

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  9. Oi, Sandra!

    Seu conto está perfeito, me identifiquei demais com ele, adorei a forma como foi escrito, as frases curtas, as palavras fortes, a beleza a poesia, admiro muito quem tem essa capacidade, de deixar o texto tão recheado, bonito, elegante.

    Você descreveu o ciclo da vida, todas as fases cada uma com seus perigos e descobertas, tudo isso pelo olhar de uma mãe, que poderia ser a própria filha, só que em um ciclo mais elevado, depois vem o neto pra deixar a roda girando, girando.

    As músicas foram colocadas de uma forma muito inteligente, tudo pensado nos mínimos detalhes.

    Parabéns!

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  10. Sandra, que delícia de conto, ao mesmo tempo doloroso, incrível a sua habilidade em transpor todos os ciclos, de uma vez só, assim sem um whiskyzinho pra gente se preparar melhor, assim como é a maternidade. Estou na fase do Coldplay, quartos, segredos, silêncio, clausura. Daí vem a impotência, falar ou calar, permitir ou controlar? Não tem um manual, não? Anseio pelos netos, como vc. bem disse: “A reparação que dá sentido à vida”. Emocionei-me lendo o seu conto, a vida como ela é esparramada bem diante dos meus olhos, menina isso não se faz. Parabéns, bjs.

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  11. Caramba… você colocou de forma tão carnal essa roda viva em que nos metemos ao aceitar a maternidade. Só porrada, mas sem arrependimentos. A força da vida está dentro de nós.
    Esta frase vai ficar um bom tempo vagando em meu subconsciente: “Quando não há mais gritos, restitui-se o lugar de pertencimento.”

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  12. Olá Sandra. Num momento de texto, toda uma vida. O nascimento, crescimento, separação, envelhecimento, netos e o ciclo recomeça. Felizmente a vida não é só isso. Mas pode ser assim resumida e você soube fazê-lo muito bem. Mães e filhos criam-se em simultâneo, a mãe vai sendo mãe, lentamente, logo que toma conhecimento da gravidez e os filhos vão-se construindo no seu interior. Quando o parto por fim acontece, o filho perde aquela “primeira casa feita de calor e carne” e ganha o mundo; a mãe também – doutra forma.
    Mais tarde acontece muitas vezes a inversão de papeis – isso é triste e não está certo. Mas não há com quem reclamar.
    Adorei a doçura final da filha, acompanhando a partida da mãe com canções de embalar.
    Foi bom de ler. Obrigada. Um abraço.

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