Nó de Rendeira – Sandra Godinho

Dona Firmina, que já não tinha as mãos firmes, arrastou com dificuldade a cadeira para junto da janela, buscando na claridade a guia dos olhos. Olheiras azuis, córneas esbranquiçadas, insones de dias, preocupadas a encarar o corpo que apodrecia a cada segundo e com a missão que ainda não cumprira. Ela desejava a luz branca, o céu, o teto da santidade humana o qual ainda não podia encontrar, mesmo a natureza expulsando-a da terra com a pressa que nunca teve razão de ser.

Depois da cadeira colocada no lugar de costume, arrastou o cavalete de madeira, deitando a almofada cilíndrica em seu encaixe no topo. Depois, alcançou o pique, o molde em papelão que guardava o desenho da renda. O caminho de mesa ficaria bonito na mesa de jantar, relíquia de rendeira velha. Rendida. O desejo de terminar o pontilhão colorido em renda de bilros, premente nos dedos de juntas retorcidas como galhos secos. Murchos na pele enrugada que deixava antever as veias azuis ainda pulsantes. Toda ela murcha, sem se deixar fluir, sem abandonar a ampulheta da existência cuja areia virava em dias e noites sem qualquer conforto. Devagar. Caminhou pela sala. Dois passos. Lenta. Tremedeira. Era mãe. O eterno retorno.

Alcançou as linhas: branca, rosa, azul e violeta. Devagar enrolou as linhas nos bilros. Devagar prendeu com alfinetes o pique em cima da almofada. A carta amassada em cima da mesa. O velho Quirino a acompanhava com o olhar. O que olha, velho? Perdeu alguma coisa? Nada. Então senta que está me dando gastura. Estou bem em pé. Senta, Quirino. Não me ouve? Aqui está cheio de mosca, Firmina. Se aquieta, velho. Acho que agora você está pronto para escutar.

– Mães mentem por um bem maior.

– Mentiu para mim, velha?

– Menti para todos porque vivo de medo. É ele que me faz pulsar, que me percorre as veias e distingue o que é certo e o que é o errado. Às vezes, nem isso. Uma coisa eu sei: ele nunca é suficiente. Nunca é.

– Tá variando, Firmina?

Então a velha separou quatro bilros, dois em cada mão, e recomeçou a tecer o desenho de tom pastel bem suave, diáfanos como a luz do sol que iluminava seu rosto de defunto.

– Menti sobre minhas filhas.

– Explique-se.

– Dália enxergava a vida cor-de-rosa. Vivia de amores, tão logo matava um criava outro. Sumiu para o sul na garupa de uma moto. Capacete na cabeça, luva na mão, alpercata de couro no pé abraçando sabe-se lá deus quem. Idas e vindas. Para cada país, um cartão postal e uma saudade no bojo. Me acabei de tanto chorar enquanto ela abraçava todas as experiências do universo. Fome de dinossauro. Sempre se alimentou dos meus gritos. Nem chegou a se despedir. Arranjou seus trapos e partiu. O motoqueiro não foi o primeiro, mas foi o último.

– Agora entendo porque nunca a menina vem lhe visitar. Não precisa continuar com a prosa, comadre.

– Preciso. Ao revelar meu segredo, eu o presenteio com minhas cicatrizes, aquilo que guardo de mais profundo.

– Certos abismos devem permanecer na escuridão.

– Não quando se está prestes a ser expulsa do corpo.

Firmina trançava os bilros com as mãos, para cima e para baixo, tecendo uma renda delicada. Arranhou a garganta, engoliu o choro, engoliu a lágrima e a dor na boca do estômago enquanto Quirino se aperreava com as moscas que voltejavam ao redor. A velha esparramou suas cicatrizes um pouco mais, como se fosse um ciclone prestes a partir em espiral acima da terra, sem deixar nada no lugar.

– Hortênsia traz uma frieza que a traga para o ralo, feito a água azulada que corre no açude. A própria tormenta inundando os sentidos, perdida em seu próprio labirinto de amargura. Não foi sempre assim. Quando jovem era alegre e brincalhona, mas, depois que as irmãs arranjaram família, foi atravessada pela inveja, sem um fiapo qualquer de sanidade. Grudou-se ao pai e tratou dele com fervor até sua morte. E se Margarida ou Violeta o vinham visitar, Hortênsia as espantava feito moscas mal queridas, sol nos olhos cegando, febre de raiva ardendo no corpo, com medo de que as irmãs o roubassem em afeto e atenção. Uma praga que borbulhava em seu corpo maduro e a transformava em ferida viva, espinhenta, escudeira dos pais e da casa. Território fixo que ela achava por bem defender. Latindo. Latindo sempre com ganas de avançar.

– Descanse um pouco, Firmina.

– O latido não finda, o cão é persistente.

– Tome, beba um pouco d´água.

– Estou quebrada, Quirino. O cão saliva, pula no meu peito, investe suas garras afiadas, morde meu ombro e coração com a mesma voragem. Tenho medo que vá na minha jugular e acabe com minha vida, que já acabou faz tempo.

– Não precisa falar, Firmina. Ninguém lhe cobra nada.

– As mães são sempre cobradas. Por isso elas se entendem. Entendem os sinais. Entendem a linguagem dos filhos que nunca mudam. Se desejo a luz branca ao fim de tudo, devo continuar. Aproveito que Hortênsia saiu para a venda.

– Se lhe traz consolo…

– Margarida me tem um amor imaculado. Desde pequena, desde sempre, desde que veio ao mundo, presa a um cordão umbilical que nunca foi cortado e que nos preenche de certo modo. De tudo eu me lembro, Quirino. As lembranças nos fazem imortais. E quando eu me for, ainda não terei partido porque eu vivo nela, ainda que os traumas estejam amontoados, ainda que as brigas sejam relembradas e as injustiças tenham se acumulado.  Os netos se afastaram, surpresos com o grotesco da criação, da minha criação. A mãe deveria manter aberto o caminho para o retorno. Mas Hortênsia não permite, nunca permitiu nada às irmãs.

– E Violeta?

– Escreveu uma carta. Uma explicação servida de bandeja. Difícil engolir.

– Mas ela vem te visitar de quando em quando.

– Violeta se preserva, assim como seus filhos há muito aprenderam a se preservar. Roxa de raiva, mística em sua crença de que nossa família é um cancro que deve ser destruído. Essa acabou cortando o cordão umbilical afinal. Não que faça diferença porque somos muito similares, guardamos – cada uma a seu modo – a sensação insaciável de pertencimento que nunca se concretiza. Somos todos bichos entupidos por traumas, teimosos em prosseguir. O gosto amargo na boca já é um cheiro de pós-vida.

A sala caiu num silêncio, quebrado somente pelo encontro da madeira dos bilros. Um ruído estridente que ecoava pela casa vazia.

– A comadre está delirando…

– Ao menos nesse caminho de renda minhas filhas estão reunidas, cada uma com sua cor. Minha missão está completa, afinal.

Dona Firmina tentou se mover, mas já não havia pernas, apenas um par de asas gigantes que farfalhavam o ar rumo ao céu.

 

 

 

34 comentários em “Nó de Rendeira – Sandra Godinho

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  1. Oi Sandra, que conto poético!! Tão forte, intenso! Me lembrou muito a Amaranta do Gabo, tecendo sua mortalha. Não sei se essa foi sua intenção, mas não pude evitar, e a sua história é tão boa quanto a de Amaranta! Achei lindo cada filha representar uma cor e juntas formarem uma renda única. Essa ideia é maravilhosa e muito bem executada. Gostei muito mesmo! Parabéns pelo belíssimo trabalho!!

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    1. Olá, Priscila! Que bom que tenha gostado. É um conto com forte carga dramática, talvez porque seja um pouco autobiográfico, então tudo toma outra dimensão. Transformar a dor e os traumas em algo bom ou bonito. Talvez seja essa a lição dessa vida! Obrigada pelo comentário!

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  2. É Amaranta que tece a mortalha, é Penélope tecendo o sudário, é a vida se preparando para a morte. Sandra, que texto lindo, rico de imagens, de cores. Se a ideia é clássica, você a trouxe o para o nosso ambiente cultural com mestria, com elegância. O discurso indireto livre é um recurso que soube explorar e enriqueceu o texto de emoção.

    Parabéns, é uma alegria e um aprendizado ler seus contos. Eles denotam a existência de uma autora que sabe cuidar com seriedade e carinho daquilo que escreve. Beijos.

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    1. Na verdade,Fátima, eu tenho aprendido muito desde que entrei para nosso blog. Tenho lido bastante sobre como produzir uma boa escrita, tenho lido muito, textos bons e ruins, mas aprendendo com ambos. Estar aqui me motiva a buscar o aperfeiçoamento. Sou muito grata a todas. E o elogio só me faz ver que estou no caminho. Obrigada pela gentileza!

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  3. Oi, Sandra!
    Muito boa a cena e a narração dos problemas com as filhas.. me identifico e isso q tenho só uma!! Imagina no plural! Nossa, Deus foi bom comigo! :p
    É um texto que nos leva a uma densa reflexão e isto é bom
    Abraços

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    1. Olá, Anorkinda!
      É realmente difícil, aprende-se muito com os filhos, mas padece-se muito com eles também. Fico feliz que tenha gostado. Abraços!

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  4. Querida Sandra,

    Como quem encerra uma trilogia, você fecha o ciclo vida com chave de ouro, falando sobre maternidade em todos os três contos das etapas que trouxe para a “Vida”.

    Nas mãos da mãe os fios da vida de cada uma de suas filhas, cada qual com sua cor, cada uma delas com sua personalidade, sua intensidade. Mais que tecer, eis que a mãe admira sua obra, ainda que amarga, que dura, que difícil de concluir; através do bordado do tecido de sua renda de bilros, que, embora linda e delicada, possui a força de uma trama intrincada e única. Assim como é a vida de cada um de nós, do nascimento à morte.

    Parabéns.

    Muito bonito.

    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Olá, Paula!

      Fico feliz que tenha gostado! Como falei acima, tenho me dedicado à escrita ultimamente e ter um comentário favorável só me faz ver que estou no caminho certo, sempre com a ajuda de todas vocês, com os comentários pertinentes e proveitosos. Gostaria de comentar como vocês, um dia eu aprendo!

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  5. Olá, Sandra. A rendeira rendida, como você diz. Sim, mais tarde ou mais cedo rendemo-nos deixando para trás um emaranhado de bilros de que tecemos nossas próprias vidas. Neste caso, a vida das filhas – quatro. Quatro cores, quatro personalidades, quatro pessoas completas. Cada uma delas com sua cor, cada uma delas recebeu o nome duma flor: Dália, Hortênsia, Margarida e Violeta. Dália é Rosa, como a sua visão do mundo; Hortência, azul, fria, amargurada pela inveja; Margarida, branca, como o seu amor imaculado e Violeta é roxa, roxa de raiva. Muito bom.
    E Firmina, a que já foi firme, a mãe que ama, a mão que já enrugada como galhos secos, continua a tecer o caminho de mesa. Confessando-se, retirando-se.
    Gostei muito da parábola, Sandra. Parabéns.
    Um beijo.

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    1. Olá, Ana!

      Fico feliz com esse seu retorno positivo. Admiro sua perspicácia em tecer comentários, não só aqui como no Entrecontos, e sempre me surpreendo com as minúcias neles. Fico feliz de ter te agradado. Abraços, querida!

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  6. Olá, minha querida. Quantas histórias interessantes dentro da história de Firmina, e que interessante metáfora a do final do texto. Quando ela tira de si as mentiras sobre a vida das filhas, ganha asas, se liberta dos fios que a prendem. Os fios de cada cor, são as filhas com nome de flores. O texto é cheio de delicadeza mas não aquela frágil, que tudo aceita, mas uma delicadeza vigorosa, que não se furta aos obstáculos, porém de uma jeito leve, feminino. Gostei muito. Beijos, Sandra.

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    1. Olá, Iolandinha!

      Mães sofrem muito e se enganam às vezes, confiando em filhos que nunca voltam, em filhos que se fazem de santos, em filhos que querem voar do ninho sem olhar para trás. Foi um relato sincero dessa mãe que é um pouquinho de todas nós. Um abraço, querida!

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      1. Sim, exato. Mães fantasiam sobre filhos, que lhes parecem sempre perfeitos, embora andem longe disso. Foi bom para ela se libertar destas fantasias. Beijos.

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  7. Oh, compadre! Deixe dona Firmina falar! Ele não compreende que ela precisa disso… A alma precisa se refazer de tudo que passou e fez, para poder, enfim, descansar.
    Um conto tão gostoso de ler quanto fazer artesanato. Singelo, doce, triste… Lindo.

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    1. Olá, Vanessa!
      Deixemos dona Firmina tirar esse peso dos ombros, certamente! Que bom que tenha gostado. Ao fim do relato, ela se liberta. Triste, mas necessário. Nostálgico, mas verdadeiro. E sofrido.
      Obrigada, querida! Abraços.

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  8. Sandra… É uma poesia. De um profundo entendimento do que é ser mãe, de vida, de morte. Tudo misturado nessas palavras, por entre mulheres, cada uma a sua maneira criada para enfrentar o turbilhão do mundo a seu modo. São preciosidades que temos nesse conto, na voz de Firmina.
    Parabéns!
    Um grande e carinhoso abraço!

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    1. Olá, Evelyn! Mães são mulheres reforçadas em certo sentido, sofrem mais, aprendem mais, o que as torna mais tolerantes com os defeitos alheios, as fragilidades e seu cortejo de horrores. Obrigada pelo comentário carinhoso.

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  9. Muito bonita a parábola que vc criou, o desenho da renda que tb é o desenho da vida e da morte. Belas imagens. Eu, particularmente, tenho uma relação muito profunda com a renda de bilro, passei os melhores dias da minha infância no nordeste, onde meus avós maternos moravam. Convivi muito com essas rendeiras, sempre me encantou essa habilidade delas com os bilros, a velocidade com que constroem a beleza da trama. É impressionante como conseguem fazer isso com os dedos tão cansados, é uma arte que se aperfeiçoa com o tempo e as grandes rendeiras são também as mais velhas. A renda, vc percebeu muito bem, é como a vida, cheia de nuances, curvas, nós, linhas retas, cores, tramas, que vamos tecendo até que chegue o fim. Seu conto me emocionou. Parabéns!

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    1. Olá, Juliana! Fiz uma viagem recentemente a Natal e me encantei com a renda. É como você falou, cheia de tramas, curvas, nós, uma gama repleta de metáforas prontas para serem desencarnadas em palavras. As rendas me seduziram tal qual a cidade. Amei cada dia que passei lá. Serviu de inspiração. Agradeço o comentário.

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  10. Oi, Sandra!
    Que divino, que comovente….essa união de tristeza/reflexão/início/fim é imensamente cativante.
    Nó de rendeira é habilmente rendado, m conto que soa como um canto de redenção, uma explicação única e generosa de alguém que vai alçar o voo derradeiro.
    emocionada, aqui.
    Meus parabéns, você é “o” Talento.
    Beijos

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    1. Olá, Renata! Eu fui seduzida pela renda quando visitei Natal recentemente e me inspirei nas suas tramas e tranças. Tenho aprendido muito com nosso grupo e a capacidade das colegas que sabem transportar tanto sentimento e emoção num conto que, às vezes, mais parece um poema. Muito feliz de estar com vocês nesse caminho. 🙂

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    1. Olá, Neusa! Com certeza, Dona Firmina é o retrato das mães que se fazem de fortes, que são a força e a base de tantas vidas que põem no mundo. Feliz que você tenha gostado.

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  11. Os Sandra! Já tinha lido seu texto antes e o reli agora a pretexto de comentar, mas na verdade para mais uma vez me encantar com a parábola primorosa que você construiu, Sem mais o que dizer, um texto impecável. Narrativa elegante, história tocante, final perfeito. Parabén! Repito, um texto impecável. Beijos.

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    1. Olá, Elisa!
      Fico feliz que tenha gostado. Não é fácil colocar sentimento em um conto. É um desnudar-se sempre, não é? Obrigada pelo retorno.

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  12. Olá Sandra,
    Seu texto me propiciou um raro prazer. Tenho carinho especial pelas rendeiras. Sou de Maceió e, com seu conto, voltei no tempo e no espaço.
    A narrativa crua e dolorida foi muito bem construída. O final mágico, em contraste com a realidade dura da vida, ficou lindo.

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    1. Olá, Catarina.
      Fico feliz que tenha gostado. Existe uma mágica nas rendeiras, não é mesmo? Mãos gastas que tramam, trançam, dão nós e encantos aos olhos. Eu fui seduzida, completamente. Tenho aprendido muito com todas vocês.

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  13. (O conto é um delicado bordado em tecido frágil de lembranças. As quatro filhas com nomes de flores e com as suas cores, também fazem parte desta trama tecida pela vida. Linguagem elaborada, quase poesia, tudo muito bem alinhavado e sem pontas soltas. Parabéns pelo belo trabalho.

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    1. Com tantas poetisas aqui no grupo eu só tenho que me inspirar e tentar fazer sempre um pouco mais, na tentativa de superar tanta coisa bonita que se produz por aqui. É essa a mola que nos impulsiona sempre. Fico feliz que tenha gostado!

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  14. Sandra, fiquei na dúvida se o seu conto encerra o Ciclo Vida ou se abre o ciclo Morte. Na verdade eu que estou encerrando as leituras do último ciclo e me deparo com essa poesia pura do seu conto. Vida e morte se misturam. Fala sério! Isso é texto pra concursos literários, as palavras sendo lapidadas, bem diante dos olhos do leitor. Parabéns, bjs.

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