Beladona – Catarina Cunha

Beladona nasceu com um problema que carregou como uma cruz por toda a vida. Veio ao mundo proprietária inquestionável de beleza intoxicante; daí o nome.

Foi a bebê mais fofa da maternidade: sem ruga, amarelão, hematoma ou inchaço. Verdadeira top model do berçário. No parquinho sua companhia era disputada pelas mamães, papais, babás, bebês e até pelos cachorros. Voltava para casa toda lambida e com as bochechas amassadas. Passou a infância sendo assediada, bolinada e elogiada como uma boneca de vitrine. Lutou na adolescência por uma identidade própria. Quis ser professora, veterinária, bombeira, policial, atleta e cientista. Todo mundo achava graça nela desperdiçar tamanha lindeza. Nem pensar. Foi capa de revista infantil, modelo e, para ser atriz, bastou estar de corpo presente no estúdio para ganhar fama e fortuna. A família, orgulhosa, cobria a garota de mimos.  Eram tantos compromissos que Beladona desistiu de seus sonhos.

Com o tempo se acostumou com o cardume de gente feia circulando em volta de sua beleza. Beladona já não se incomodava – muito pelo contrário – com a áurea estelar. Era o confortável  preço a ser pago pelo sucesso. Fazia parte de sua vida, vivia disso.

No camarim ocorreu algo estranho com Beladona. De olhos fechados ouvia a conversa da maquiadora com o cabeleireiro. Falavam algo sobre os desconfortos da beleza e alguém disse: “Tudo que acostuma também adormece”. Imediatamente abriu os olhos diante do espelho descobrindo seu rosto distorcido. Era apenas um redemoinho de cores desconexas. Sabia que gargalhavam a sua volta, mas não conseguia distinguir as pessoas dos objetos desfocados. Ao tato tudo era vazio e um sentimento de perda absoluta misturou-se ao rímel derretido. Não gritou, mas a loucura chegara a sua casa encontrando a porta aberta e o peito escancarado. Os cardumes sumiram, a família apiedou-se e os fãs choraram. Beladona partira para dentro de si mesma.

 

 

 

29 comentários em “Beladona – Catarina Cunha

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  1. Puta merda, que triste!
    Tenho um conto de um catatonico em frente ao espelho.. acho isso tão triste…
    Foi uma morte em vida.
    Abração, Cat

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  2. Catarina. Que nome para dar à menina! Não lhe bastava ser bela, tinha que ser vítima de si mesma. A beleza é um fardo difícil de carregar para quem é algo mais que belo. Quem vê a beleza, não olha além, não procura a pessoa (não sempre, é certo, mas quase). E, com nome de planta venenosa, melhor fim não se poderia esperar. Beladona enlouqueceu, recolheu-se para dentro de si mesma, para onde provavelmente nunca ninguém entrou, morreu em vida. Pobre Beladona.
    Um beijo.

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  3. Vc já leu o livro Cem Anos de Solidão, Catarina? Lá existe uma personagem cuja beleza também´é uma maldição. Remédios, a Bela, que acaba voando para o céu e desaparece para sempre. Beladona é o nome de um veneno, e a beleza da moça, que era intoxicante para os outros, acabou por destruir sua alma. Pobre criatura. Deve ser difícil nascer com algo que foge muito ao comum, as pessoas desejam padrões, ela mesma jamais se aceitou. Gostei do seu conto, menina, curto mas com muito a mostrar. Beijos.

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  4. A pior das perdas, é a da sanidade. Perder a si próprio, a consciência, deve ser horrível. A mente humana é capaz de tudo, e por isso, tão fascinante.
    Um conto maravilhoso… e triste.

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  5. Entendi o texto como uma metáfora. A beleza da protagonista (uma bela dona) é, como a planta (beladona), extremamente tóxica, mas pode ser utilizada, com supervisão médica, como medicamento natural. Entre os efeitos colaterais, sobretudo se ocorre uma dose excessiva, estão os distúrbios psicológicos, as alucinações. Assim, Beladona se perdeu.

    A sugestão e a simbologia nas entrelinhas registram os altos e baixos do viver humano e despertam o leitor para sua mensagem profunda e sincera. Parabéns! Um conto reflexivo, marcante. Beijos.

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  6. Olá, Catarina!

    Neste texto curto, eu vejo que a personagem definhou por não se adequar aos padrões comuns. Aqui no caso, a beleza serve de metáfora a tantas outras coisas. O mais inteligente leva o apelido pejorativo de nerd, o gordo, de baleia, e por aí vai. Um retrato triste de uma sociedade que não admite o Outro quando ele foge ao lugar comum. Muito triste, mas muito bem retratado.

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  7. Porra, Catarina! Um dos seus textos mais pungentes! Um final totalmente inesperado, vc passa pelo humor e vai direto trombar com a nossa cara na parede de concreto! Estou encantada, e cheia de hematomas… rsrs Muitos, muitos parabéns!

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  8. Olá, Catarina,

    Tudo bem?

    Li seu conto há uns dias, ando meio afastada, mas já de volta! Li também os comentários das meninas. É interessante notar como o assunto mexe conosco, mulheres obrigadas (ainda que muitas fujamos disso), todas, aos padrões sociais que nos são impostos.

    Seus textos, como sempre, nos fazem refletir

    O que é o belo? O conceito de beleza, sobretudo a feminina muda de acordo com a época e parece, sempre, trazer sofrimento aos que buscam seguir o padrão imposto por este. Mulheres se mutilam em nome da beleza, tiram costelas, injetam-se de botox e por aí vai. Gueixas costumavam ter os pés esmagados pelo uso contínuo de pequenos sapatos para mantinham seus pés como os de uma boneca dentro das vestes.

    É interessante, no entanto notar que, ao passo que a sociedade e os indivíduos buscam desenfreadamente satisfazer os padrões de beleza de sua época, o “belo-perfeito” parece sofrer fortemente com uma espécie de bullying. “O belo é mau. O belo é vazio e superficial. O belo encerra-se em si mesmo. É egoísta.” Esse arquétipo parece-me um tipo de paradoxo. Odeia-se no outro aquilo que se busca para si mesmo.

    Já convivi com o tal “belo-perfeito” bem de perto. Conheci uma cinderela moderna que sofreu todos os danos que a beleza-social pode causar a uma mulher. O excesso de plásticas, quando a beleza começa a se esvaziar, o casamento com o sapo, e por aí vai… O belo-perfeito, no entanto, como bom representante do tal paradoxo, não existe. Todos somos belos-belos, belos-feios, feios-belos, perfeitos-imperfeitos. Por fora e por dentro, e, quem “compra” a falácia da beleza a todo custo, paga um preço muito caro.

    Seu conto, para mim, funciona como uma espécie de fábula. Beladona foi seduzida pelo alucinógeno de sua própria natureza. Sua beleza, sua perfeição, sua droga, o modo como aprendeu a conviver com o mundo. Uma espécie de Narciso feminino.

    Parabéns pelo trabalho.

    Beijos

    Paula Giannini

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    1. Fico feliz quando consigo despertar um efeito tão analítico do que escrevo. Somos sim escravos de nossa imagem, seja ela bela ou não. Paula, você me chamou a atenção também para essa terrível natureza destrutível da humanidade: “Odeia-se no outro aquilo que se busca para si mesmo.” Muito obrigada, Beijos.

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  9. Um conto triste, uma metáfora, sem dúvida. Intensa, dolorosa, a vida é mesmo uma loucura. E nós mergulhamos de cabeça. Muitas vezes, mergulhamos para dentro de nós para fugir do oceano que nos cerca. É preciso ter muita coragem e força, tanto para uma coisa quanto para outra.
    Um grande e carinhoso abraço!

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  10. Oi Catarina, esse conto é muito interessante, tem várias camadas. Não é só a história de uma moça bonita que ficou louca, é muito maior que isso! A beleza em excesso matou a personalidade ainda em formação, ela nunca soube quem era além de um rosto bonito, não tinha identidade, nem firmeza de caráter. Bastou uma constatação sobre se acostumar e adormecer e ela descobriu que dormiu a vida toda. É difícil escrever um texto e tão curto, com tanto conteúdo, mas a grande Catarina conseguiu! Parabéns!!

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    1. Priscila, estou mais para uma Catarina, a grande pequena. rsrsrs. O objetivo maior está nas entrelinhas mesmo. Fazer nós, mulheres, pensarmos no quanto vale a beleza externa e qual o preço que estamos dispostos a pagar por ele. Muito obrigada, Beijos.

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  11. A beleza de Beladona (gostei do trocadilho do nome) é tóxica para os outros e para si mesma. Luz demais incomoda a quem vive nas sombras. Beleza acima do padrão também deixa os outros desconfortáveis. A maior vítima acaba sendo Beladona, envenenada pela atenção recebida, pela ilusão de um lugar entre os deuses.
    Um conto curto, perfeito. Passou a ideia completa, sem se perder em palavras desnecessárias.
    Parabéns!

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  12. Oi Catarina! Eu costumo gostar de tudo que você escreve mas esse conto, em especial, me agradou demais. A escolha do nome da personagem, a concisão que acentua o caráter alegórico da narrativa, a linguagem, em especial no último parágrafo. Muito bom, garota! Beijos.

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  13. Catarina, veja só, Beladona é uma planta medicinal de grande toxicidade, e seu uso indevido pode até causar a morte, que foi o que aconteceu com a sua heroína. O conto começa leve, com humor que é característico da autora e no final faz o leitor engolir o riso. Muito apropriada a temática para um mundo viciado em selfies e o culto à beleza. A morte diante do espelho. Show! bjs

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