O Navio da Esperança – Vanessa Honorato

Olhando para este imenso horizonte, me pergunto de onde vem tanta água. O céu, muito azul, passa a impressão de que o mar é ainda maior, que vai crescendo, chegando ao alto, ao infinito…

O barulho da onda quebrando está longe, como se meus ouvidos estivessem tapados. Mas a verdade é que o álcool deixa tudo em câmera lenta, inclusive o som. A garrafa de whisky repousa ao lado dos meus pés descalços. Até ela está suja de areia.

Meu estômago está pesado, sinto como se tivesse engolido uma pedra. Levanto-me e logo depois caio de joelhos, deixo todo o peso sair do meu corpo, tudo jorra por minha boca, cai em golfadas doloridas pela areia. O solo arenoso e quente consome tudo, traga para dentro de si aquele resto que eu expilo, entre contrações e tremores. O suor pinga de minha fronte, meu cabelo está grudado e pegajoso. Quando já não há mais nada em meu estômago, retorno à mesma posição de antes, sentada, observando o Sol que lentamente vai se escondendo detrás da imensidão de água.

Lembro-me daqueles filmes bonitos onde, do mar, surge, no horizonte, um imenso navio. Eu me imagino correndo e embarcando neste navio, feliz, sorridente, mas quando embarco e a entrada é fechada, percebo que todos os tripulantes são caveiras, encarando-me com as órbitas vazias e sorrindo diabolicamente com seus dentes expostos. Tento fugir, mas o navio já está em alto mar. As caveiras vêm andando em minha direção com os ossos dos braços erguidos e os dentes estalando. Não tenho outra alternativa senão pular do navio. Subo na escada de quebra-peito e olho para as águas: estão revoltas, espumas brancas formam-se na superfície. Está quase escuro, a noite se aproxima rápido. Meu coração está acelerado, a coragem vai se desfazendo, mas o som dos dentes das caveiras batendo sem parar me impulsiona e eu pulo. Tapo meu nariz com a mão e fecho os olhos. Sinto a pressão e a água fria a molhar meu corpo. Tiro a mão do nariz e começo a subir. Só aí lembro que não sei nadar. Luto para emergir, mas tenho a sensação de que só afundo. Meus pulmões começam a arder, bolhas escapam da minha boca. Vejo uma luz vinda lá do fundo. Ela me acalma. Relaxo. Toda a sensação ruim vai embora. Sinto-me livre, sinto-me leve. Sorrio e fecho os olhos.

Infelizmente, quando eu os abro, ainda estou deitada na areia da praia. Eu tinha sorrido, e aquilo foi bom. Olho de novo para o mar e o Sol já se foi. O céu não passa de uma brasa incandescente, parece que suas chamas cairão sobre a Terra. Pego a garrafa e a abro, dou um gole, porém meu estômago reclama. Hoje não embarquei em navio nenhum. Abro um buraco na areia e enterro a garrafa ali. Chega por hoje.

Ouço gritos. “Mamãe”. Ainda não sorrio, mas me levanto. Minha garotinha vem correndo em minha direção e me abraça. Seus braços estão gelados e sua pele pálida. Afago seus cabelos enquanto os molho com minhas lágrimas. Rapidamente ela me solta e corre, brincando e cantando, para o mar. Dou as costas para a imensidão de águas e caminho lentamente de volta para meu casebre. “Amanhã mamãe volta, e talvez amanhã eu tenha coragem de embarcar no navio com você”.

16 comentários em “O Navio da Esperança – Vanessa Honorato

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  1. O seu conto permite muitas interpretações, então não vou limitar a minha a uma delas. Prefiro falar da maneira tão autoral que a dona deste texto empregou para criar um conto sensorial e insólito, e, ao mesmo tempo, triste. Pensei nesta mulher e seus demônios, perdida em alucinações de desespero e imagino como ela chegou a este estado de consciência alterada. Ou serão apenas sonhos? Melhor não saber, a vida tem muitas portas, e o mais legal é não fechar nenhuma delas.

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  2. Olá, Vanessa!

    Eu vejo a premissa desse conto muito parecida com a do conto da Rose. Aqui a protagonista não tem coragem de embarcar na viagem de seus sonhos (assim interpretei), então, como num barco, ela afunda diante desse imenso oceano de possibilidades, permanecendo na areia, à deriva, à margem, sonhando ou delirando, acovardada de embarcar nesse sonho que acalenta, tão irreal quanto a realidade que a traga para o fundo de uma garrafa de bebida. Suja. Tão suja feito ela. Muito bom!

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  3. Um história forte, uma vida narrada em conotação tridimensional. A protagonista tem como referencial a angústia, por um lado; o desejo de superação do alcoolismo, de outro. Ela está envolvida nos emaranhados internos, desafiando-se na busca da clara luz. Parabéns por trazer essas emoções ao leitor de forma tão intensa. Muito bom trabalho! Beijos.

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  4. Um conto forte, angustiante, cheio de leituras. Tão complicada é nossa vida diante do que é maior, ou parece ser maior que nós… Mas somos isso mesmo: um emaranhado de indecisões, um tom desafinado na música, uma mistura que não deu certo, ou, ao contrário, deu muito certo, porque temos o universo dentro de nós, em sentimentos, em emoções, em infinitude. E nos acabamos todos os dias ao nos depararmos com nossas limitações, com nossas perdas, com nossas desventuras. Não temos coragem e, ao mesmo tempo, temos força e capacidades invejáveis. Somos uma grande e indecifrável criatura.
    Um grande e carinhoso abraço!

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  5. Olá, Vanessa. Não quero nem tentar imaginar o que possa ser a morte de um filho. Mas acredito que nos roube a vontade de viver. Não haveria álcool possível para afogar semelhante mágoa. Continuará a ser necessária coragem para, nessas circunstâncias, ter coragem de embarcar junto? assim parece, tanto no seu conto, quanto na vida real, onde já conheci muitas mães que perderam filhos e continuam vivas, ainda que, no geral, apenas parcialmente. Muito bonita esta história que nos surpreende com a revelação final. Parabéns.Um beijo.

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  6. Oi, amada!
    Como diz meu pai, os filhos nunca deveriam morrer antes dos pais.
    Mas há que se superar, entendendo mais da vida e da morte. Ma a sua personagem entregou-se ao alcoolismo e sente vontade de suicidar-se, não encontrando, porém, coragem…muito triste.
    E teu texto está muito, muito bonito, profundo, gostoso de ler e de ‘ver’ a cena.
    Parabéns.
    Bjs

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  7. Querida Vanessa,

    Tudo bem?

    A última frase do conto é um nó na garganta. Ela não só contém a chave para decifrar o conto como um todo, como nos leva ao entendimento da profundidade da dor de sua personagem.

    “Amanhã mamãe volta, e talvez amanhã eu tenha coragem de embarcar no navio com você”.

    A mãe que perde seu filho morre mil vezes, morre com ele, morre todos os dias, a cada lembrança, a cada momento tentando reerguer-se, no sentimento de culpa, enfim. É algo tão forte que não podemos sequer pensar em imaginar.

    Assim, sua personagem entrega-se ao nada, ao álcool, aos delírios, à impotência de não ter coragem de, ela mesma, embarcar no navio da morte em busca de sua criança. Assim, você não só nos apresenta o ponto de vista da mãe e sua dor de perda, mas, também, a de uma suicida potencial nos momentos de seu delírio em busca de uma tábua de salvação que a leve para o fim de todas as coisas. Um dia, talvez, a mãe consiga dar termo ao próprio sofrimento. Talvez não. Talvez ela, de alguma forma, apenas se puna todos os dias, torturando-se diante das próprias memórias, da própria dor, da própria incapacidade para seguir a filha até o nada. De algum modo, é justamente essa dor que a mantém viva.

    Interessante notar como o tema morte nos remeteu ao mar, às águas. Você percebeu?

    Parabéns.

    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Oi Vanessa! O final do seu conto me deixou com os olhos marejados… Tenho uma garotinha e não gosto nem de imaginar como eu ficaria se algo acontecesse com ela…
    Seu conto é forte, pesado, impactante e aoesmo tempo simples e direto, sensível. Gosto do seu estilo! Parabéns!!

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  9. Que conto, Vanessa! Fiquei aqui sem ar… Eu amo a praia, o mar, a areia. Adoro andar de barco. Mas tenho pavor de naufrágio. Tenho pesadelos com isso. Pra vc te uma ideia, eu nem consegui assistir aquele filme com o Tom Hanks, O Náufrago… rs
    Vc constrói a sua história muito bem, o ambiente vai sendo descrito e nos mostrando a realidade daquela personagem. Eu me vejo claramente nessa praia, já totalmente sem esperanças, após ter sido a única sobrevivente, e perdido até minha pequena filha para o mar. Após tantos dias de desesperança, sol forte, sal, muito sal, o horizonte e o peito vazios, de companhia apenas uma garrafa de whisky, resto do naufrágio que a deixou ali tão sozinha. Economiza-se o álcool, porque junto com a insolação e a inanição, formam o trio perfeito para escapar pela fantasia, fantasia de uma realidade melhor, menos terrível, ao lado de sua amada filha, finalmente liberta – a morte.
    Um contaço-aço-aço! Parabéns!

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  10. Oi, Vanessa!
    Excelente seu conto, e eu aqui interpretei de uma forma tão dolorosa que lágrimas rolam loucamente, agora, pelo meu rosto.
    O mar, a bebida, o delírio, o sol inclemente, a areia e o abraço gélido da menina e o talvez da mãe, que quem sabe, amanhã irá, no barco…ui, é muita emoção, meus parabéns!

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  11. Que Conto, Vanessa! Assim mesmo, com maiúscula. Muito forte e imagético. Todas as sensações da personagem descritas na medida e o final melancólico, brusco e surpreendente valorizou ainda mais o impacto do conto. Parabéns, mesmo. Gostei demais. Beijos

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  12. Vanessa,
    Nada é mais mortal do que a perda aliada à culpa. Uma morte lenta através do autoflagelo em luta contra a covardia. Muito latente essa dor. O enterrar da garrafa foi extremamente significativo. Excelente.

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  13. Interpretei que a narradora está sofrendo pela perda da filhinha que se foi. Talvez, a criança tenha se afogado no mar. E a mãe pensa em morrer também, mergulhando na sua última viagem, mas ainda não teve coragem para deixar a sua vida desgraçada.
    Conto curto, denso, que não desperdiça palavras. Enredo muito bem construído, tendo a caracterização do sofrimento da mãe como o ponto alto. Parabéns pela sua habilidade ao descrever tão bem essa angústia materna e nos conduzir ao mesmo pranto. Não chorei porque sou dura na queda, mas sofri um tantinho ao ler. 🙂

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  14. Vanessa, a lindeza do conto já começa pela imagem, um primor. Narrativa angustiante, melancólica, e o texto imprime o viés de dar enes interpretações. Fiquei com a pior delas, a de uma mãe afogada no álcool e em culpas, pela perda da filhinha, e o desejo de consumar a dor mergulhando na imensidão do mar. Isso não se faz com uma mãe rsrs. Parabéns, bjs.

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