Ascalapha Odorata – Fheluany Nogueira

 

Eu vou insistir sem descansar …
É uma história sem fim
Meu amor é sobrenatural
(Shakira)

Adela nunca esqueceu a verdade básica acerca da criação: o mundo não é o inimigo, tampouco é matéria inerte e muda. Enrustida e reservada, ela vivia sob um código:

— A Terra e todas as coisas vivas compartilham força vital. O universo é mais do que vemos, é uma teia de seres interligados, como irmãs e irmãos do todo.

Ninguém sabia quem Adela era. Quando questionou a madrinha sobre sua origem, ouviu:

— A vida gerou você. É uma mariposa, é da luz e é da noite… Ao completar a metamorfose vai entender tudo. Por enquanto fique no casulo.

— Ah, madrinha, se sou uma mariposa, preciso de cores, quero vibrar minhas asas. Veja: estou pousada em seu ombro — era a resposta da menina.

As duas mulheres moravam em uma chácara nas últimas ruas da cidadezinha. O riacho dividia o terreno, o brejo ao fundo, o sítio era infestado por sapos e rãs, lagartos e cupins. O cair da noite ficava fantasmagórico com a algazarra orquestrada pelos sons da mata bem próxima. Viviam isoladas, exceto por misteriosas visitas de mulheres da região que lhes pediam ajuda para situações indesejáveis.

Adela, em casa, aprendeu muito mais que matemática e língua com a madrinha, foi introduzida nas ciências da natureza. De início, ela frequentou a escola, mas era inquieta, impaciente demais para isto e depois as outras crianças mal a aceitavam. Era considerada estranha, buliam com ela:

— Filha da bruxa, bruxa é! — Essa fantasia, certo dia, virou realidade. Denúncia anônima levou a polícia até o misterioso habitat da bruxa. Vasculharam todo o quintal e exatamente onde as árvores secas e retorcidas, atacadas pela umidade, fungos e formigueiros, davam ao lugar um ar misterioso de pântano, foram encontrados diversos pequenos corpos putrefatos e muitos esqueletos. De cada sepultura aberta, minava água fétida. O mau cheiro, a podridão tomou conta do ar. A mulher foi acusada de matar os pequenos e usar o sangue desses anjos em magias. Antes que fosse presa, uma multidão enfurecida invadiu o local, mataram-na a pauladas, atearam fogo e queimaram tudo. Adela escapou… Era a crisálida que saía para a fase adulta já com resistentes asas, capaz de migrar milhares de quilômetros em busca de lugares mais quentes para se recompor.

 

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Júpiter, Saturno, Marte, Vênus e Mercúrio se alinhavam, na mesma região do céu, em um fenômeno que fora observado havia cem anos. Uma andarilha seguia na rodovia do interior para o litoral. O frentista mantinha seu plantão com dificuldade. O frio o incomodava. No canto esquerdo do posto, próximo ao eucaliptal, ouviu uma voz fraca. Seguiu na direção dela. Vislumbrou a velha caída no meio das folhas secas:

— Me ajuda… — estendeu os braços encarquilhados.

— Está doente? Como chegou aqui? Eu a levo para a loja e peço socorro. — Apoiou a mulher para que se erguesse. Quase não pesava. A velha passou os braços em volta da cintura dele, encostou a boca no ouvido e começou a murmurar uma ladainha em tom de oração. O homem deu um passo, sentiu uma fraqueza como se estivesse bêbado. Quis firmar-se, mas sentiu um frêmito percorrer por toda a medula, a dor era intensa. Não conseguia se mover, o zumbido no ouvido ficava mais forte, seguido de ardor. Ele não entendia, não conseguia se livrar daquele abraço que lhe sugava o viço. O padecimento avolumava, a pele secava, pernas e braços se enrijeciam. Ele cambaleou para o lado, tentando respirar; o abraço firme. Caiu, ainda notando as faces centenárias tornarem-se menos enrugadas, os cabelos ralos ganharem certo volume, os olhos com um pouco mais de brilho. A carne do homem foi o portal de grande influxo de energia.

A mulher canalizou toda a vitalidade dele para si. Restavam daquele corpo másculo apenas cinzas. Ela, com uma pequena pá, recolheu a poeira, depositou-a em um frasco que vedou com rolha. Adela observou as mãos menos trêmulas, sentiu-se menos velha. A madrinha estava certa, se bem que nas últimas décadas aprendera muito, estudou e vivenciou novas experiências, técnicas modernas, lidou com computador, com celular. O mundo era outro e era necessário adaptar-se a ele. Nascera sob a conjunção planetária. Teria dois dias para recuperar a mocidade. O conhecimento do que deveria ser feito lhe vinha espontânea e intuitivamente. O inverossímil logo se concretizaria. Não era sua primeira vez. Percebia o forte parentesco com a natureza, o vínculo com animais e plantas e, sobretudo, o poder que lhe chegava dos astros.

As antigas receitas dos ancestrais repercutiam no mais fundo da alma e ela compreendia que os longevos mitos eram verdadeiros. Era ser determinada e se orientar pelas antiquíssimas memórias daqueles que viveram em estreito contato com os ciclos naturais e apreciaram o poder que compartilharam com o cosmo.

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A lanchonete estava quase vazia. A idosa entrou manquitolando, nas faces a expressão de dor. Dirigiu-se à garçonete, pedindo ajuda para acompanhá-la até o sanitário, atenta a se alguém as observava.

— Posso apoiar-me em você? — indagou humilde deitando a cabeça nos ombros da jovem e iniciando a repetição do mantra em língua desconhecida.

— Está falando comigo? — a moça já meio entorpecida, não obteve resposta, apenas a cantilena que lhe subjugava a carga de humanidade. Sangue principiava a escorrer-lhe dos olhos, da boca e dos ouvidos. Os cabelos caíam, a tez acinzentada marcava-se de vincos… Ganhava em instantes o aspecto de anciã, nova transmutação estava acontecendo… Adela trancara a porta do cômodo e deitou, no piso frio, o corpo que se debatia em meio à urina e ao vômito; a torção da cabeça e dos olhos para um dos lados lembrava uma boneca de pano. A jovem ainda tinha forças para levar as mãos bambas à cabeça, como tentando retirar dali a dor que a afligia, enquanto macerava o rosto, em movimento pendular, contra o chão duro. As contrações musculares paralisavam por um instante e recomeçavam mais violentas. Era uma dança frenética ao ritmo de gemidos, do atrito dos dentes. O ritual macabro durou minutos e restava apenas pó no chão.

Duas décadas remoçada, Adela juntou os restos mortais com a pá e os adicionou ao mesmo pote já usado, enquanto dizia para si mesma: “Não sou uma velha, tenho a natureza das mariposas que não envelhecem nunca. Alguém já viu uma mariposa velha? Já? Garanto que nunca. E eu aqui estou, sou a mesma de sempre”. E gesticulava, recitando em voz alta, o suficiente para não ser ouvida do bar:

— A sabedoria eterna da alma sobreviverá. O saber enriquece o corpo, não apenas o espírito. Moldamos o ambiente para alimentar a Terra. O espírito dos tempos restabelece a ligação com a vida nos ritmos naturais da Terra, da Lua e dos mistérios da magia.

 

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Adela seguiu pela trilha do mato. O sol mortiço não a incomodava. Comeu peixe e frutas nativas. Conhecia costumes que podiam satisfazer as suas poucas vontades. Percebia-se uma mulher madura, sensual e atraente. Ao menos era o que lhe diziam os olhos do homem, entre as árvores, que a fitavam, banhando-se no rio. A água clara e parada refletia o sol, do céu que não tinha mais tamanho de tão limpo e tão azul. O vento soprando de leve, no estirão enorme e vago em que não existia viva alma, sem nenhum limite.

— Não quer tomar banho nessa água? — perguntou-lhe Adela como se estivesse mandando, com um brilho diferente nos olhos. Nadava à flor da água, de peito para cima. Foi o momento mais natural, a maneira mais simples de praticar o velho ofício. Nem foi preciso olhar, falar, fazer qualquer gesto. Foi desejo mesmo se misturando com prazer e juntando todos aqueles momentos. Os corpos nus se atraíram. Dentro da água, enroscados, livres, rendidos à natureza. Depois, Adela o atraiu para as margens, longe da lama. Ela precisava de lugar seco e limpo. Então, na clareira aberta, caiu em cima do homem que a encarou quase sem nenhum espanto, pensando que a mulher o queria mais uma vez. A mariposa aproximou-se dos ouvidos masculinos e repetiu o bizarro recital. Ele entreouvia, atônito, aquelas palavras místicas e ia se entregando. Em minutos o desejo se transformou em abandono, em transferência de fibras, em morte, em cinzas. A poeira derradeira foi guardada no mesmo recipiente anterior. A maga seguiu o caminho…

 

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Era quase meia-noite. Vestes brancas e ricas, ribombar de foguetes, ritmo embalador de música, bruxulear de velas e aroma de incenso, barcos de flores empurrados para o mar — era o cenário na praia. Mais uma pessoa misturada à multidão e despercebida dela, Adela seguiu até as pedras murmurando uma canção monótona. No alto, destapou o vidro e espalhou, no ar e nas águas, as cinzas recolhidas na viagem.

Girava-se a Roda do Ano, estações passaram indiferentes à mera inteligência ou à sagacidade desprevenida. O que manteve viva a alma da bruxa foi o fato de saber que havia um centro de ouro onde seu espírito habitava e seu corpo poderia sempre se renovar — o ritual se completava.

Adela deteve-se aos dezoito anos, neste ciclo não sugaria vida de mais ninguém. Assim, não precisaria de madrinha para criá-la Estava pronta para outra etapa. No mais recôndito do seu íntimo, ela estava excitada, passara por uma limpeza profunda, desbloqueando energias ocultas, promovendo uma verdadeira libertação da consciência, abrindo caminhos para o verdadeiro propósito, aquele relacionado com a sua essência. A mariposa passara por uma encarnação mística. A mocinha lembrava a última recomendação da mulher que cuidara dela no período anterior, antes da fuga:

— Tome cuidado com o espaço. Existe muito tempo para você, aproveite-o para acumular riqueza. Dinheiro, joias, você sabe onde estão, sabe como conseguir. Seja natural! Adela já havia planejado a nova vida. Mantinha sempre o mesmo nome como se fosse filha, neta, dela mesma. Providenciara tudo na época adequada, documentos eram fáceis de ser conseguidos. Faria matrícula na Faculdade de Ciências Naturais e pretendia conseguir emprego em algum Instituto da área. Conseguiria tudo, nem que tivesse que remexer nas poções secretas. Desconfiar de tudo deveria ser regra, pois mariposas pousadas seriam sofisticadas armas em repouso ou, vibrando as asas com intensidade, gerariam várias possibilidades. Havia poder e fórmulas mágicas. O invisível sempre esteve perto, além dos círculos de pedra, do coração das florestas, dos invernos intermináveis, em dimensões de que a humanidade se separava por uma frágil barreira. E, em um século a bruxa se renovaria para outra fase. Tempo não era problema…

28 comentários em “Ascalapha Odorata – Fheluany Nogueira

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  1. Já conhecia este conto da primeira edição do CLTS. Então, acho que casou perfeitamente com a temática desta etapa do grupo As Contistas, já que a vida de Adela é um eterno recomeçar. Uma personagem que passa por etapas que se sucedem, a depender da força vital de suas vítimas. Um recomeço interessante, peculiar. Eu gostei muito do seu conto. Fico feliz de reencontrá-lo aqui. Beijos e abraços.

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  2. Muito bom esse conto! Gostei da Adela. Eu creio que a vida, sim, é energia pura. Somos energia materializada, cada um com suas características. A cena dela recitando próxima da moça me remeteu a boas histórias de terror envolvendo sugadores de energia. Acho que tem muita gente assim nesse mundo. Renovam suas energias através de outros. Parabéns! Um grande e carinhoso abraço!

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    1. Obrigada, Evelyn, pela leitura e comentário simpático! Todo recomeço exige muita energia; e, é comum quem consiga atingir os objetivos sugando o próximo. Triste, mas real… Que consigamos nos livrar de tal situação. Beijos.

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  3. Oi, Fátima,

    Seu conto me lembrou um filme do qual agora terei de recordar o nome. Uma babá aceita trabalhar para um casal de idosos e acaba sendo vítima de voodoo. Ao acreditar no poder da “bruxa”, ela aceita a maldição e toda a sua juventude e energia passa para os velhos. 😉 Sabe qual é? Vou procurar, é muito bom.

    Gostei do conto. Magia, energia, renovação.

    Renovação de todo um conceito. Afinal, estamos em um século onde bruxas já não são consideradas as mulheres do mal de antigas datas, onde ser bela e jovem era sinal de pura maldade, e, por outro lado, ser feia e com uma verruga no nariz também. Ou seja, aqui falamos do sagrado feminino. Do poder das mulheres, não é?

    Parabéns.

    Beijos
    Paula Giannini

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  4. Eu adoro histórias de terror, mas não consegui até hoje escrfever um conto do genero. Estava falando disso outro dia com a Iolandinha.
    Amei a sua história. Muito bem ambientada, os personagens bem construidos, a linguagem é misteriosa e flui como um rio. Fiquei presa até o fim. Me arrepiei toda quando a velha sai do mato e sussurra as mágicas palavras no ouvido do frentista. Deu pra ver a cena toda.
    Você tem outros contos assim? Gostaria de le-los.
    Muito interessante a forma como vc escolheu abordar o tema da renovação e do ano novo. Ou seria século novo? Ou alinhamento astral novo? rs.
    A mariposa também é conhecida como bruxa, e em alguns locais do Brasil significa aviso de morte próxima. Mas a morte também é renovação, em diversas culturas. É uma criatura de hábitos noturnos (por isso sua coloração escura), mas vive à procura de luz. A mariposa, junto com as borboletas, são associadas também ao feminino. Juntamos tudo isso e temos mulheres obscuras, bruxas, sábias, sagradas, profanas, muitas vezes mortas e já renascidas. Temos todas nós, as contistas, representadas pela Ascalapha Odorata do seu conto! Muito bom, parabéns!

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    1. Obrigada, Ju! Um comentário assim é que nos faz tentar seguir. Você percebeu que fiz uma pesquisa sobre a mariposa para usá-la como símbolo no texto – a mulher que luta e se renova a cada dia, mês, ano, etc. Não sei se já vi o filme a que se refere; vou procurá-lo porque deve ser bom mesmo. Muitos beijos para você.

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  5. Olá Fátima!
    Adorei seu conto. Rico em simbologia. Linguagem escorreita e agradável de ler como costuma ser seu estilo. Uma sofisticada história de bruxas que me agradou muito. Parabéns! foi uma ótima leitura. Beijos.

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  6. Oi, Fátima!
    E aqui temos a história da bruxa Adela, representando de forma bastante poética o que, de certa forma, tememos, desejamos, sonhamos….poderes que talvez algumas de nós possuam. Quantos renascimentos, quantos reinícios, vida afora?
    Poderosa e solitária, a mariposa segue seu caminho sombrio.
    Ótimo e verdadeiro.
    Beijos

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  7. Uma boa história de terror sobre o eterno recomeçar. Adela que a princípio parece ser uma vítima do destino, revela-se uma mariposa sugadora da energia vital. Conto bem escrito que prende a atenção do leitor e dá medo! 😁

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  8. Olá Fátima!

    Muito bom texto e a analogia com as mariposas. Um recomeçar de exige uma renovação de forças, nem que seja à custa da energia alheia, sugando de onde não se tem para continuar e sobreviver. Muito bom texto. Obrigada pelo belo texto!

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  9. É preciso ser bruxa para renascer? Seu texto veio para mostrar-nos que para continuar a existir, é preciso estar sempre se renovando, enfrentando as batalhas e mesmo que sejamos chamadas de bruxas, renasceremos sim! rsrs. A ideia por trás do conto é ótima, mas toda a história, a pegada de terror, é ainda mais interessante para mim, que adoro o gênero. Muito bom! Abs ❤

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  10. Oi Fheluany, tive uma identificação muito particular com a sua narrativa, amei toda a bruxaria, e em “uma limpeza profunda, desbloqueando energias ocultas, promovendo uma verdadeira libertação da consciência, abrindo caminhos para o verdadeiro propósito, aquele relacionado com a sua essência”, por acaso vc. leu os meus folders? Trabalho com terapias holísticas, rsrsrs. Parabéns pelo toque de magia, mistério e fantasia no texto, bjs.

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  11. Olá, Fátima. Gostei do seu conto; uma escrita segura e simultaneamente leve e carregada de metáforas. Como sou muito terra-a-terra, nunca olho histórias de bruxas ou sobrenaturais conferindo-lhes qualquer semelhança com a realidade dos personagens retratados (quero dizer com isto, que não acredito em bruxas, demónios, magia nem nada dessas coisas). Então o que li? uma mulher que se alimenta da energia alheia – como tantas. Um vampiro humano (como lhes chamo) oferecido numa roupagem simpática, bela e por vezes até poética, mas ainda assim um vampiro humano que se renova sugando a energia que não lhe pertence. Recomeço após recomeço, Adela, acredita-se mariposa, mas na realidade é o retrato daquele tipo de pessoas de quem é aconselhável manter distância. Gostei muito. Parabéns. Um beijo.

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    1. Grata pela leitura e comentário gentil. Também não acredito bruxas. São figuras usadas para justificar o que não conseguimos entender, são símbolos que conferem certa magia e poesia aos nossos textos. Não é conveniente mesmo estar perto de pessoas como Adela. Beijos.

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  12. No creo em brujas pero qué las hay, as hay! 🙂
    Sim, acredito em bruxas, magia, encantamentos e o etecétera todo!
    Li o texto como a ver um filme de terror, muito boa esta personagem, me deu vontade de vê-la ampliada, pormenorizando os atos dela que não sejam os de matar para rejuvenescer… será q ela só faz maldades? fiquei curiosa.. vou tentar um contato telepático com Adela! hahaha
    Abração, .Fátima!

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