Vida em Palavras – Vanessa Honorato

“Março, 2010.

Querido diário,

Não sei se gosto dessa casa. Ela é bonita e tal, mas é grande demais, parece um monstro que engoliu mamãe e eu. Aliás, por falar nela, ela parece mais alegre. Hoje nem precisei levar o café pra sua cama, ela mesma se serviu na cozinha. Nós duas sentadas à mesa me lembrou os velhos e bons tempos de quando papai estava com a gente. Acho que mamãe também se lembrou, porque nem mesmo terminou o café e voltou em silêncio para o quarto.

Tenho que ir, está na hora do colégio. Estou ansiosa para conhecer a escola nova e a professora. Só vou passar no quarto da mamãe para deixar um beijinho. Ela nunca diz nada, mas sei que é importante”.

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“Março, 2010.

Amada Laura,

É com lágrimas nos olhos que lhe escrevo esta carta. Peço desculpas por não atender ao telefone, mas ainda não me sinto segura para falar com ninguém. Não estou dizendo que você é ninguém, não me entenda mal, mas parece que minha garganta está fechada, não consigo dizer uma única palavra em voz alta.

O Pedro faz muita falta. Foi um choque grande para mim, você sabe. Ainda mais pela perda da nossa mãe, se pelo menos ela estivesse aqui para me ajudar…

Não vou ocupar seu tempo com reclamações, só quero lhe dizer para não se preocupar, vai ficar tudo bem. Hoje é o primeiro dia da Bia na nova escola e ela foi sozinha. Minha bebê está crescendo, Laura. Fico muito preocupada, mas ela tem se mostrado bem madura para seus tenros dez anos. Como Pedro costumava dizer, Bia é uma criança precoce, crescerá mais rápido do que imaginamos.

Se cuida, minha irmã.

Com amor,

Lourdes”.

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“Junho, 2010.

Querido diário,

A minha professora disse ontem que faremos uma apresentação para o dia dos pais. Paguei maior mico chorando na frente da turma. Não quero fazer peça nenhuma!”

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“Novembro, 2010.

Amada Laura,

Estou lhe escrevendo já não mais por falta de vontade de atender ao telefone, mas sim porque cancelei minha linha telefônica. Primeiro porque não estava a fim de vê-lo tocar toda hora e ter que retirá-lo do gancho. Segundo, para cortar gastos. O orçamento anda apertado. Desde que minha licença médica venceu e voltei ao trabalho, já fui notificada três vezes por desatenção. Da próxima me mandarão para o olho da rua. Não posso perder esse emprego, Laura.

A Bia anda nervosa, todo dia tenho que brigar para que faça o dever de casa, e ela sempre se exalta quando tem alguma dúvida, dizendo que era seu pai quem lhe ensinava. Eu tento, mas ando tão cansada…

Sinto sua falta,

Lourdes”.

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“Agosto, 2011.

Querido diário,

Hoje não fui pra escola. Era a segunda festinha dos pais sem meu pai. Com muita súplica, consegui convencer minha professora a me deixar de fora da peça. Não tinha sentido eu fazer essa apresentação. Apresentaria para quem? A professora tentou me persuadir, dizendo que ele continuava sendo meu pai, mas eu não quero mais saber desse papo furado.

Mesmo assim estou triste, porque está chegando meu aniversário…”

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“Outubro, 2012.

Querida Laura,

Quero lhe agradecer pela visita e dizer o quanto ficamos felizes com sua presença. Bia está encantada com o presente você deu à ela. Talvez essa foi a única coisa que lhe deixou feliz em seu aniversário. Ela chora muito à noite, eu ouço. Meu coração fica em pedaços. O pai lhe faz muita falta, sei disso, e não poderia ser diferente, afinal, Bia era muito apegada a ele.

Qualquer dia lhe faremos uma visita.

Beijos.

Lourdes”.

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“Dezembro, 2013.

Querido diário,

Tive uma briga feia com mamãe. Ela queria que eu a acompanhasse à Igreja, mas eu não quis. Rezar para quê? Ah, fala sério! Minha mãe acha que pode me mandar. Quero passar o réveillon na fazenda da minha amiga Carla, mas ela não quer deixar. Vou fazer greve de fome!”

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“Janeiro, 2016.

Querida Laura,

Sua ajuda foi muito importante. Consegui alugar aquele apartamento que você me indicou, o aluguel é bem mais em conta do que onde morávamos. Claro que Bia ficou furiosa. Ela está na fase de gostar de ouvir música com o volume bem alto, mas aqui é proibido. Comprei um fone de ouvido para que pudesse usar no mp4 que você a deu, foi a única solução que encontrei para que parasse de me encher a paciência.

Às vezes me pergunto se Pedro estivesse aqui, ela não voltaria a ser aquela menina doce de antes, ou se pelo menos eu não estaria tão exausta…

Minha irmã, obrigada por estar sempre ao meu lado.

Saudades,

Lourdes”.

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“Abril, 2017.

Querido diário,

Hoje encontrei você por acaso, encaixotado no meio de uns livros antigos. Nem me lembrava mais de ti e nem sei por que estou escrevendo nessas páginas amareladas. Reencontrar você é como reencontrar minha dor. Folheando-o, veio a minha mente todos os sofrimentos e tristezas pelas quais passei desde que papai foi embora. Há pouco descobri que mamãe está namorando. Claro que fiquei furiosa, mas agora, relendo esses escritos e recordando o quanto ela também sofreu, talvez precise mesmo de uma segunda chance.

Será ridículo uma garota de quase dezessete anos escrever em um diário? Não sei, mas me sinto mais aliviada”.

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“Março, 2018.

Amada Laura,

Fiquei muito feliz por saber que serei titia! Bia ficou empolgadíssima com a ideia de ter um afilhado. Espero do fundo do meu coração que esse bebê lhe traga muita felicidade. Que Deus abençoe sua família…

Amor,

Lourdes”.

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“Novembro, 2018.

Querido diário,

Esta é a última vez que escrevo em você. Como sabe, mês passado foi meu aniversário e advinha quem apareceu bem na minha frente? Sim, ele mesmo, o senhor Pedro, mais conhecido por você como papai. Quase não o reconheci. Ele estava diferente, mais baixo, ou seria eu que cresci desde que foi embora? Seus cabelos grisalhos e sua barba rala não me fizeram identificá-lo, mas quando olhei em seus olhos, aqueles mesmos olhos castanhos que eu tanto amava, senti um calafrio percorrer meu corpo. Fiquei estática, sem reação. Antes mesmo de começar a falar, ele caiu em pranto, se ajoelhando e pedindo para que eu o perdoasse por não ter aparecido antes. Ouvi tudo em silêncio. Disse que tentou me ligar várias vezes, mas mamãe nunca atendia o telefone, como se o erro fosse da minha mãe em não atender à ligação, e não dele, em ter nos deixado para viver em outro país com outra mulher. Mas claro, a culpa era da minha mãe que não atendeu o maldito telefone!

Sentei no meio-fio da calçada e fiquei olhando para a rua. Não perguntei como ele estava e nem fiz comentários acerca do inteligentíssimo do meu irmão. Quando ele me pediu um abraço, eu simplesmente me levantei e falei que passei muitos anos vivendo em luto pela morte do meu pai, mas que agora, eu já havia superado a dor e restara apenas a saudade. Aquele estranho na minha frente não era meu pai. O meu pai ficou enterrado numa cova imaginária no fundo da minha alma.

Colocarei fogo em você, querido diário, assim, simbolicamente poderei renascer das cinzas.

Adeus,

Beatriz”.

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13 comentários em “Vida em Palavras – Vanessa Honorato

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  1. Oi, Vanessa!
    Ótimo seu conto ❤
    Amei a personalidade forte de Bia, depois da grande dor emocional que foi a "perda" do pai, de todo o processo de luto, de lidar com a ausência, eis que surge a chance de voltar ao passado, "começar tudo de novo", e o que a menina faz? Não, obrigada, querido, não preciso.
    Excelente construção da personagem. Já Lourdes também teve força, a seu modo, um tanto quanto passiva, me perguntei aqui qual seria a reação dela, caso o marido reaparecesse pedindo perdão.
    talvez aceitasse….
    Enfim, muito bom, esqueci de dizer, no início pensei que o pai tivesse morrido (fisicamente), a surpresa da existência dele foi formidável.
    parabéns,
    Beijos

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  2. Oito anos de correspondência, as fases da vida de três personagens: muito bom trabalho, muita revolta e paciência – pura emoção! Fiquei imaginando que o pai havia falecido, como Renata; e, foi impactante saber que ele simplesmente abandonara a família e ainda reclamou que a mulher não atendia seus telefones. Gostei muito da trama inteligente e da escrita hábil e segura. Parabéns pela ideia e execução. Beijos

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  3. Já tinha lido o seu conto há um bom tempo, mas relendo o final mais uma vez me surpreendeu. Você fugiu da fórmula clichê do perdão e amor incondicional e mandou o “papai” às favas. Interessante apresentar a narrativa em duas vertentes: o diário de Laura e a correspondência da mãe com a irmã. Ficou bem encaixado e elucidativo. Gostei!

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  4. Querida Vanessa,

    Tudo bem?

    Gostei do modo como você desenvolveu o conto, com duas vozes narrativas. A principal, em forma de diário, da filha e a secundária, da mãe, em forma de carta. Esta estratégia oferece ao leitor dois pontos de vista distintos de um mesmo problema. Dois modos de encarar um problema em dois diferentes ritmos e tempos para lidar com a mesma dor.

    A premissa, o abandono encarado como uma forma de morte, é também muito boa. E, ao menos para mm, tem seu ponto alto justamente no momento em que a menina resolve “crescer” e deixar a dor para trás, recomeçando das cinzas.

    Parabéns!

    Beijos
    Paula Giannini

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  5. A medida que Lourdes vai escrevendo menos, Bia vai escrevendo mais. Enquanto Lourdes se cala, Bia vai ganhando voz. Acho que é um balanço muito bom esse que você desenvolveu. Os conflitos em uma separação talvez sejam os piores, mais do que se os personagens estivessem literalmente de luto. Parabéns pelo conto. Um grande e carinhoso abraço!

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  6. Fiquei com pena do diário, ainda guardo todos os que tive, acredita? Sou muito apegada. Vc escreve cada vez melhor, Vanessa! Suas personagens estão muito bem delineadas, são verossímeis, e aquela parte do pai ficou bem real, inclusive o pai ficar se gabando do filho que teve com a segunda mulher. Isso de gabar filho e neto é a cara dos meus parentes. Amiga, parabéns e sucesso. Beijos!

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  7. Olá, Vanessa!
    Um conto muito bem escrito com duas vozes narrativas que expõem cada uma seu mundo de decepções e amarguras. Linhas que gotejam um universo abalado, cada uma a seu modo. Muito bem concebido! Parabéns pelo texto.

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  8. Oi Vanessa, adoro diários, até hoje escrevo, sério! Ainda vai virar um livro. Gostei muito do seu conto, do artifício de usar a irmã Laura para o leitor conhecer o mundo denso de Lourdes e sua filha, a volta do pai, que achei que estava morto, mas as separações também provocam lutos, né; as fases da menina, a rebeldia da adolescência, permeada com a dor da perda. Muito bom, guria. Bjs.

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  9. Olá Vanessa! Seu conto ficou muito bom. O amadurecimento da Bia por meio dos registros no diário, a superação de Lourdes, o apoio da irmã, e principalmente a surpresa com a revelação de o pai ter abandonado a mãe, quando você havia conduzido o leitor a crer que ele havia morrido. Achei a indiferença de Bia com o pai ao final um ótima solução, mas, confesso, não gostei muito de ela ter queimado o diário. Sabe quando dá uma frustraçãozinha no final do conto? Pois é, foi o que senti. Beijos, querida.

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  10. Muito gostoso de ler o seu conto. A estrutura que você criou, que vai revelando aos poucos o que acontece na vida da Bia, e também de sua mãe, e em terceiro plano da tia e do pai. O final, para mim foi surpreendente, eu achava que ele tinha morrido. A decepção da Bia com esse pai que antes era meio idealizado e agora é bem real, e bem diferente do que ela tinha na lembrança, é justamente o que a faz amadurecer e segurar as rédeas da própria vida nas mãos. Se libertar da imagem idílica do pai e da mãe, e perceber que, afinal de contas, são apenas gente como tudo mundo, com seus erros e acertos, é o primeiro passo para podermos dizer que viramos adultos de verdade. Muito bom mesmo, parabéns!

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  11. Olá, Vanessa!

    Gostei bastante da forma como você conduziu essa história, o começo a gente lê e vai já esperando um tipo de final, e você saiu do padrão e deixou aquela grata surpresa. Gostei do desenvolvimento da personagem, a forma como a vida dela vai caminhando naturalmente e ela vai deixando de lado algumas coisas, amadurecendo, enfrentando seus medos, suas mágoas.

    A relação da mãe com esse abandono também é bem interessante de acompanhar, pra ela parece ser pior… e na verdade é né, a responsabilidade se criar a filha em meio a esse baque deve ter sido difícil de carregar mesmo.

    Será que seria mais bonito perdoar e seguir a vida? é o que aconselham né? mas nem sempre é o que a gente precisa, tem coisas que levam tempo, tem coisas que levam a vida inteira e ainda não é o suficiente. Eles são apenas dois estranhos com laços de sangue e mágoa congelado, pra saber o real desfecho dessa história teríamos que acompanhá-la por muito mais tempo.

    Parabéns pelo texto!

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  12. Olá, Vanessa. A alternância de vozes e meio de comunicação está muito bem conseguida. A menina, fala para si mesma, para o seu diário, a mãe desabafa com a irmã. Essa do pai regressar, apanhou-me completamente de surpresa e, até por isso mesmo, foi óptima. Você não teve contemplações sentimentalistas e isso deu muita força à história. Bia cresceu e quando o safardana do pai regressou com as suas lágrimas de crocodilo, deu de caras com Beatriz. É assim mesmo! Gostei imenso da abordagem. Parabéns. Um beijo.

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  13. Olá Vanessa, sempre gosto dos seus textos, com esse não foi diferente! As personagens estão muito bem demarcadas. A Bia está com voz infantil e a mãe com voz adulta. Pensei que o pai havia morrido, me surpreendi com o final. Muito bem escrito! Parabéns!!

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