Pobre Maria. Eu disse a mim mesma assim que senti o filete de sangue descendo pela coxa. Não sabe que o mundo te engasga com promessas de amor? Não sabe que são poucos que o receberão? Não sabe que a vida é feita de tragédias? Um covarde batendo na mulher, um vagabundo satisfeito com o incesto cometido, um patrão avançando em lençóis emaranhados no meio da noite, o cheiro de sexo incapaz de devolver a insipidez anterior. Não era ingênua. Tentei a todo custo parecer limpa, para não chamar a atenção da patroa. E assexuada, para não chamar a cobiça que já se estampava na face do patrão toda vez que cruzava a sala com balde e escovão. Limpar a sujeira que pairava nos cômodos. Um incômodo. Nem toda sujeira era fácil de sair.
Pobre Maria. Taí o resultado da sua fanfarronice, ecoando no ventre inchado de alguns meses que tentei disfarçar com roupas largas. Tragédia. Era o cheiro de carne mastigada, comida e magoada. Tragédia. Era o olhar que gotejava imundície, pingando em mim seu suor alvoroçado. No mês seguinte, a falta de regras. A desgraça. Se vira, ele disse, com as feições tão endurecidas que nem parecia humano. Um animal que só se importou com a esposa. O que ela poderia fazer comigo? O que poderia tirar de mim que ele já não tivesse tirado? Se ela souber, te manda embora no ato, adeus cama e roupa lavada, ele disse, como se fossem de graça. Dependiam de mim para organizar suas rotinas, trabalho de uns, escolas de outros. Ameacei contar. Então descobri que era o mesmo tipo de homem que meu pai, que grita e estapeia a face. Dinheiro para clínica não havia. Só para beberagens e mandingas. Com sorte.
Pobre Maria. Não sabe que os sonhos são tirados com violência? Que a vida acorda com mãos arrancando botões das calças, mãos de desconhecidos que passeiam por genitais, por cima da calça, em ônibus, mãos de desocupados atacando na calçada? Elas sempre me alcançam, veem em mim algo que já sei: não tenho poder. Não sou ninguém, menos que ninguém, sou uma mãe em vias de despachar um rebento. A decepção é fácil. O ódio é fácil. É dele que vivo enquanto meu filho escorre pelas pernas, se esvaindo em sangue. Sangue do mesmo sangue, carne da mesma carne, eu e meu filho caminhando em movimentos opostos, um por repulsa e o outro por acolhida. Que não vai acontecer. Uma cólica mal disfarçada no meio das entranhas, tingindo de vermelho o gramado verde do jardim. O pequeno morreu sem abrir os olhos, sem gemer ou chorar, como se já tivesse feito muito na vida, como se tivesse pressa em se desfazer.
Pobre Maria. O desespero maior que o ódio. Encravo as garras afiadas de dor na terra avermelhada, no silêncio feito de ausências. Tantas. A família tinha ido à praia curtir o feriado. Lavar as preocupações, relaxar. A mim, resta a indignação que nunca é pouca em mundo de poderosos. Chora menos quem pode mais. Eu choro. Muito. Fertilizo a terra com meus fluidos, exalo dor em frequência invisível e me prostro, fazendo do chão a cama que nunca é desfeita, cama que é cova. As unhas se embrenham dentro da terra fertilizada, alcançando minhocas. Tristeza maior que o desespero. É quando sinto meu cotovelo estalar feito asa de pomba. Um espasmo que não causa pânico, mas alívio. Posso esticar as penas um pouco mais para cima, como se me preparasse para alçar voo.
Pobre Maria. Alucino. A tristeza tomando conta, infligindo ao corpo o descompasso da mente. De outro estalo, e não sinto mais o peso da cabeça, só o peito avantajado, quase inflado. Orgulho ou coragem, não sei ao certo. É ele que me desequilibra e me tira do eixo. Olho para baixo e vejo penas brancas recobrindo o corpo, imenso em relação ao resto. A boca, agora bico, afunda na terra úmida à procura de minhocas. As que encontro são rasgadas em dois, de imediato, impedindo seu rastejar à superfície para que nunca busquem ar. Ou consolo. A superfície não lhes pertence. O alívio não lhes pertence, só o desespero. Que morram todas. Encolho minha cabeça ao corpo que agora me serve de ombro. Amigo. Aberto. Atávico. Sina sinistra da espécie que se autoconsola. E tudo aceita. Já não lavo, nem varro. Tudo vai passar. Tudo vai se arrumar. Tudo está no lugar como tem de ser. Vou repetir muitas vezes até me convencer. Desculpe se sonhei errado. Desculpe se vi bracinhos pequenos ao redor do meu pescoço, mãozinhas tímidas segurando meu dedão à espera de guia. Eu procuro uma guia. De repente, um vento fresco ferindo o ar. Um rufar de asas e uma vastidão de vontades, o sentido de orientação aguçado à procura de novas clareiras para se empoleirar. Harmonia depois do dilúvio. Varrer agora, só se for o horizonte. Rola da paz muitos queriam, mas poucos podiam ter.
Que texto lindo, Sandra! E triste! Tão triste, com a tristeza de milhares de verdades que pesam sobre ele. Pobre Maria! E são tantas Marias…
Muito intenso e poético. Perfeitamente escrito e pensado. Parabéns!!
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Que bom que gostou, Priscila! Muito triste de fato. Que os incômodos nos desacomodem e ponham garras nas palavras! Forte abraço!
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Conto intenso, comovente. Maria representa um grupo de mulheres sofredoras, exploradas e abandonadas. Sua história é uma denúncia das injustiças vivenciadas.
A escrita poética, os jogos com palavras cognatas, as frases curtas encantam o leitor e impregnam o texto com dinamismo e realidade. A trama é crível, trazendo certo incômodo, no sentido positivo. Parabéns e beijos.
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Que bom que gostou, Fátima. Que os incômodos nos desacomodem! Há muitas injustiças a relatar. Um forte abraço!
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Que texto! Senhor! Engasguei, aqui. Mulher, não me faça chorar! Mas eu chorei. Uma poesia cruel, um poema sinistro, de vida sem sorte, de sonho sem voo, sem coisa alguma. Muitas, muitas estrelas para você! Um grande e carinhoso abraço!
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Cruel, sim. Mas tão frequente em tantos lares! Acho que a aproximação do dia 13 de maio – feriado correspondente à libertação dos escravos – me fez pensar em minorias sofredoras. Fiquei feliz que se emocionou, no bom sentido! Há muito a se contar das injustiças que nos acometem por aí.
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Um conto cheio de poesia e emoção. As frases revelam uma realidade dura, sem saídas para Maria. A escravidão dos menos favorecidos, dos que só recolhem nãos e perdem os sonhos até mesmo antes de tê-los. Fiquei ansiosa, lendo e tentando descobrir que destino Maria encontraria. Um jardim que não era o paraíso, transformando-se em pomba da paz à custa do sacrifício de sua vida e do seu filho. Triste, sensível, maravilhosamente bem escrito, seu texto brilha. Parabéns.
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Minha querida, Obrigada pelo comentário positivo. Tenho visto tanta coisa bonita no blog e tantas escritoras de talento que me inspiram sempre. Aprendo muito com vocês. Beijos.
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É triste, sim.Quando não é dado o conhecimento à pessoa de que não,ela não é nada e nem fraca. Tanta história sofrida por ae…
Teu texto é lindo.
Parabéns
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Olá, Anorkinda! Obrigada pelo comentário positivo. Como falei acima, tenho aprendido com vocês a cada rodada de contos. Ainda não me atrevo no terror, nem na fantasia, nem nos microcontos, mas já estou me arriscando na poesia. Aprendendo sempre com pessoas de talentos como vocês.
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Olá, Sandra!
Seu conto é bem triste, dramático e tem umas boas construções frasais e jogo de palavras “Limpar a sujeira que pairava nos cômodos. Um incômodo. Nem toda sujeira era fácil de sair.” Sei que isso ocorre com muitas mulheres. A perda dos sonhos, a vida tomando outros caminhos… Lembrei de uma passagem de um dos versos de Augusto dos Anjos “Acostuma-te à lama que te espera […] a mão que afaga é a mesma que apedreja.”
Bom.
Parabéns!
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Lindo mensagem essa. A vida sofrida é aquela que nos desacomoda e nos mobiliza. Aprendemos sempre, caminhamos sempre. Na esperança de lançar luz a alguns pelo menos. Beijos.
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Que triste… O mais triste é pensar que tantas mulheres passam por isso todos os dias 😦
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Olá, Vanessa!
Com certeza. ´Tantas vidas e tantas misérias e delatar, relatar, iluminar. Vamos em frente.
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Pobre Maria…
Queria saber escrever assim, um texto que a margem do feio, do triste do revoltante. há a beleza inquestionável das palavras, da poesia, da declamação. Seu conto tem construções frasais belíssima é o tipo de narrativa que é bom está com um post it ou um marcador pra grifá-las.
A beleza de sua narrativa mostra a feiura do mundo, da realidade crua de muitas pessoas, uma realidade vista e ignorada por todo mundo. Pois cada um que carregue seu fardo, não né? pelo menos é o jeito mais fácil de seguir a vida, esquecendo ou fingir não saber que isso acontece todos os dias e permanecerá acontecendo até os primórdios.
Maria não é só Maria, ela é muitas. Foi uma experiencia extremamente agridoce ler seu conto. Parabéns pela sensibilidade e habilidade inegável com as palavras.
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Olá, Amanda!
Obrigada pelo comentário. A Maria do conto são muitas. Tantas versões de mulheres que devem ser relatadas. Gostei do ‘sua narrativa mostra a feiura do mundo, da realidade crua de muitas pessoas’ , não tinha visto por esse viés, mas você foi doce de o enxergar assim. Sigamos, que nosso ofício é o de entreter, mas delatar muitas das vezes. Obrigada pelo retorno!
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Mulher já nasce marcada pelo estigma divino. Não sei qual é o propósito disso, mas acho terrivelmente injusto. Sua personagem não representa uma pessoa, mas uma condição de injustiça perpétua, inata, com a qual temos que passar toda a vida lutando contra, mais um fardo a carregar além de tantos outros que a própria natureza nos deu. Seu conto é um hino, uma oração, uma bandeira fincada dizendo: Estamos aqui, lutaremos. Porque quem se conforma com esta postura de cidadão de segunda classe que querem nos impor já nasceu abortado, perdedor por convicção, derrotado por falácias as quais se apega para nao ter que se posicionar.
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Olá, Iolandinha!
Que comentário bacana, obrigada por enxergá-lo assim. Somos mulheres que fazem hinos e músicas e salmos. Vamos dar vazão a tudo! Nos aguardem! Obrigada pelo retorno.
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Espetáculo de texto, Sandra. Esse desfecho com a metamorfose da narradora/protagonista ficou de arrepiar. Incrível, amiga. Aplaudindo aqui de pé. Beijos.
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Olá, Elisa! Nossa, fico emocionada com o retorno tão positivo. Vocês são minha inspiração. Li seu conto do mês e ainda sou incapaz de escrever terror assim, com aquela beleza toda, com aquele suspense todo, mas vou lendo e assimilando. Mais uma vez, parabéns pelo belo conto!
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Conto muito triste, mas a linguagem usada é tão poética que o resultado é delicado, melancólico, apesar da violência dos atos e o sofrimento da protagonista. Repetindo a expressão “pobre maria”, além de dar um ritmo meio musical, me fez lembrar o famoso “e agora, josé?”, não sei por quê. Lindo trabalho!
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Olá, Virgínia!
Fico feliz que tenha gostado! Bem vinda ao grupo e sucesso para nós, sempre.
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Querida Sandra,
Mais um conto provando a sua verve madura e a cada dia mais precisa.
Quantas Marias há em nosso mundo? Em nosso Brasil? Quanta delas na situação que você retratou aqui? Alguns lerão e dirão que a situação é antiga, que mudou. Mas não, esse tipo de abuso acontece todos os dias em muitos lares brasileiros.
Parabéns, minha amiga querida, por mais essa joia que dosa a poesia e a dureza da vida na medida exata.
Beijos
Paula Giannini
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Olá, Paulinha!
Como falei anteriormente, tenho aprendido muito com vocês. Ainda há gêneros aos quais ainda não me arrisco como o terror, o miniconto, a fantasia, mas vamos seguindo e aprendendo. Muito feliz de fazer parte desse timaço de tanto talento. Beijos.
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Conto forte, apesar da delicadeza das palavras empregadas. Acho esse equilíbrio bonito, apesar da história. Essa capacidade de tornar o conto agradável de ler até o fim, apesar de ter uma história tão triste. Quem sabe, se fosse um noticiário, as pessoas trocariam de canal ou continuariam disseminando um ódio que não traz nenhuma atitude ou solução a favor de todas nossas Marias. Aqui, pelo contrário, lemos e absorvemos até o fim. Contos assim me fazem pensar muito no: e agora? Parabéns!
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Olá, Thata.
Também já pensei sobre isso. Acredito que delatar, relatar, iluminar situações assim já as coloca em certa evidência. E as minorias precisam dessa evidência. E os abusos. E a violência. Se ninguém fala, não se reflete sobre esse estado de coisas. E fecha-se os olhos ao que acontece ao nosso redor. Então, como nosso ofício é escrever, lançamos luz. Alguma. Se vai resolver? Bem, temos de ser positivos e aprender a criar empatia com nossos relatos, fazer um insensível sentir é o primeiro passo. Mas sem esquecer das histórias de humor, e de outras pérolas como o conto da Anorkinda que nos dá o contrapeso da corrente do bem. E assim caminhamos. O que acha?
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Sandra, a cada texto seu mais me considero admiradora da sua prosa; vc. nos brinda com mais uma narrativa crua, tipo tapa na cara, doa a quem doer, é isso mesmo, os incomodados que se retirem, pq. o mundo é habitado de Marias. Mas faz tudo isso com uma leveza, sem precisar afundar a caneta no papel, ao contrário, enche a folha de margaridinhas, de borboletas, pra mostrar o mundo dolorido e distorcido da protagonista. Bravo! Bjs.
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Olá, Rose!
Obrigada por esse comentário tão bacana e incentivador! Sim, um tapa da cara. às vezes é preciso para acordar. Noutras, apenas um afago que faz cócegas. E assim seguimos, equilibrando o mundo com nossa escrita. Um super beijo, minha querida!
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Olá, Sandra. Ainda teríamos mundo se não existissem os poetas? essas pessoas que, em prosa ou verso, conseguem emprestar uma beleza ao texto que essa mesma beleza conforta e permite engolir a própria revolta gerada pela leitura de realidades tão crueis e que se praticam. como?!, ainda se praticam, sim. Gostei imenso. Parabéns. Beijos.
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