Regras do Mercado- Iolandinha Pinheiro

Histórias que se cruzam.

A família havia acabado de almoçar e as mulheres foram lavar a louça enquanto contavam piadas na cozinha. De súbito, ouviram gritos e alguém dando pontapés na madeira lá fora. Calaram-se de imediato, naquele lugar de tantas baixas e bombardeios, a morte nem sempre avisava, mas elas souberam, pelo tipo de abordagem, que daquela vez era ela que batia à porta.

O silêncio foi interrompido pelo estalado dos tiros. Rajadas sucessivas cortavam o ar espalhando pedaços de louça, fazendo buracos nas paredes de barro e nos móveis. Um pequeno aquário se espatifou deixando cair o peixinho sobre a mesa. Entre cacos de vidro e pequenas poças de água, o animalzinho se debatia num ritmo cada vez mais fraco.
Depois que a poeira sentou, alguns dos homens procuraram sobreviventes pela casa.

– E então?
– Todos mortos.

Um ano antes

Era a primeira viagem de Calvin para fora do país. Após alguns dias numa Bagdá em escombros, foi transferido para um bunker em Abu Kamal onde receberia um treinamento para confrontos de rua. Só havia aceitado entrar naquela carreira para agradar o pai, seguir seus passos. A estadia no quartel era uma tortura diária que só ganhou algum sentido quando ele iniciou o contato com a população local.

***

O pai da pequena Basmah Zulima assistiu à vinda das primeiras tropas durante a ocupação. A apreensão inicial com a chegada dos estrangeiros passou quando ele descobriu que o exército poderia ser uma bênção para o seu povo. Todas as semanas havia um dia para a distribuição de água, mantimentos e remédios, então ele estava sempre por lá com seus filhos na fila dos donativos. Depois de um tempo acabou fazendo amizade com alguns rapazes. Um deles, Calvin Stuart, passou a frequentar a sua casa nas folgas mensais. Era um jovem de bom coração que sonhava integrar as fileiras da Cruz Vermelha um dia. Nas visitas que o rapaz fazia, procurava proporcionar uma vida melhor para aquelas pessoas, então levava sacas com grãos, roupas e brinquedos para os novos amigos.

***

Do outro lado da cidade, o Tenente Campbell ouviu o telefone tocar. Nem precisava atender para saber quem ligava. O militar era um homem viciado em jogo. Seu salário já não dava mais para cobrir as dívidas. Para tentar saldá-las fez inúmeros empréstimos, e para pagar os empréstimos toparia fazer qualquer ajuste. Então surgiu uma oportunidade. Normalmente ele não entraria em algum negócio sujo. Mas depois de muitas conversas no melhor piano bar da capital ele achou a proposta irrecusável. No início a conversa girava sobre adoção informal. As crianças vítimas da guerra que tivessem ficado órfãs iriam ganhar pais e mães novos e ricos. Fazendo os cálculos, se fornecesse o transporte para umas dez delas usando o caminhão do exército, já teria dinheiro para pagar suas dívidas e ainda sobraria algum para diversão. No fundo, sabia que nenhuma criança seria mesmo adotada, mas preferia não pensar nisso.

– Tudo o que você precisa fazer é assinar estes documentos. Pense nas crianças, James. Serão americanos! Você não acha que é muita sorte?

***

Enrico Azolta era um homem de aspecto desagradável. Vivia suado e usava roupas sempre mais apertadas do que a sua compleição física exigia. Visitava periodicamente as aldeias mais pobres para comercializar crianças. A miséria permitia que ele fizesse excelentes negócios.

O dinheiro que oferecia não representava sequer dez por cento do valor que ele recebia do contato em Miami.

Jamal Zulima já conhecia o recrutador italiano de vista. Havia visto alguns de seus vizinhos conversando com ele. No dia em que bateu na sua porta oferecendo dinheiro pelos seus filhos e filhas, expulsou o homem de lá com empurrões. Era dia de visita do soldado americano. Calvin perguntou o que estava acontecendo e prometeu ajudar. Enrico saiu de lá jurando vingança.

***

James Campbell escutou com interesse o relato do seu ordenança. Juntos escreveram cartas às autoridades denunciando o tráfico humano. O tenente pôs as cartas em sua gaveta e, antes que o soldado Calvin fosse embora, perguntou quando o rapaz iria à casa dos Zulima novamente.

James precisava de uma ideia para resolver aquele problema.

***

No dia da chacina, Calvin jogava cartas com Jamal depois do almoço. Quando os soldados chegaram, o soldado ouviu seus gritos e correu até a porta avisando que havia sido um engano, que não havia nenhum traficante ali. A primeira rajada o calou, a seguinte deu cabo das crianças maiores. Em poucos minutos todos estavam no chão, entre o barro da casa e os pedaços de suas lembranças que a ninguém importavam.

***

Naquela mesma noite a televisão noticiava que mais uma ação de combate ao terrorismo havia obtido êxito no Iraque. Segundo a BBC, um grupo de fanáticos liderado por Jamal Zulima havia sido morto pelo exército americano após uma troca de tiros onde o Soldado Calvin S. Stuart havia sucumbido. Solidário, o Tenente James Campbell fez questão de acompanhar o corpo até a cidade onde os pais do rapaz moravam, e entregou a medalha à família durante o enterro.

29 comentários em “Regras do Mercado- Iolandinha Pinheiro

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  1. Triste…E infelizmente (eternamente) atual, embora a maquiagem esteja borrada há tempos, ainda há muitos Campbell por aí, não só nas Forças Amadas, mas na vida.
    Traidores que fazem da vida humana uma simples moeda, na maioria das vezes para garantir seus gostos asquerosos.
    Quantos jovens, quantos homens e mulheres continuarão sucumbindo por causa da ganância, quantas crianças órfãs, quanto de sofrimento ainda?
    Mexeu demais comigo, Iolandinha.
    Sempre impecável e exata nas palavras, no tema e imagens, você arrasa, dessa vez trazendo outro tipo de terror.
    Grande beijo!

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    1. Pois é, musa Renata, coincidentemente os nossos dois textos servem também como denúncias, e os dois envolvendo a fragilidade de quem está no lado desprotegido desta balança sempre tão desigual. Nem sei se existem de fato ações para encobrir crimes que depois se disfarçam em combate ao terrorismo, ou ao tráfico de drogas, mas dá para pensar que isso é perfeitamente possível de acontecer e muitos inocentes aparecem como criminosos na mídia, né? Obrigada pelo comentário atento e muito querido, beijos!

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      1. Sim, Iolandinha, notei esse ponto em comum entre nossos textos. Pois é, certamente acontece, e o tempo todo. Quantos inocentes presos, quantos culpados rindo e ganhando com a exploração de inocentes? Mundo triste. E vc que é minha Musa. 🙂 Beijos!

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  2. Muito bem escrito o seu conto, Iolandinha. Sem dúvida, abordou um tema sensível, mostrando uma realidade bastante crua e dura. A narrativa avança com bom ritmo e prende a atenção até o fim. Triste, mas um conto escrito com precisão. Parabéns!

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    1. Obrigada, Claudinha. Fiz um conto simplinho porque estou muito sem inspiração, ao contrário de vc que nos deu um banho de emoção; Coisa lapidada mesmo. Obrigada pelo comentário, minha linda. Beijos

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  3. Conto muito triste, porém realista… é impactante e faz lembrar das injustiças e violência que fazem parte do mundo, os inocentes pagando pela maldade humana. Muito bom!

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  4. A realidade batendo à porta no Blog das Contistas. Perfeito, linda! E triste. Costumo fugir dos noticiários de violência, guerra, é que sou muito sensível, sabe, mas do seu texto não deu pra fugir, ele me pegou, fluiu como uma rajada de metralhadora. Bjs, amada.

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    1. Obrigada, Rose linda (cada vez mais). Eu, simplesmente, amei o seu, que, ao contrário do meu, é cheio de humor e leveza. Um abraço.

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  5. Muito bom conto, ainda por cima caiu como uma luva para o atual momento que estamos passando. Há pessoas que não querem enxergar as verdades da vida e preferem acreditar em tudo que a mídia conta. O problema do mundo, é o ser (des)humano.
    Bjs ❤

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    1. Obrigada, Vanessa linda, o mundo é injusto demais para que as pessoas sensíveis consigam suportá-lo, talvez por isso mesmo os melhores morram mais cedo. Comentário muito bom, e seu conto, idem.

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  6. Porram… conto bom pra cacete, Iolandinha! Eu li e fiquei pensando: como ela consegue criar essas histórias? Depois refleti e percebi que, infelizmente, não falta inspiração para uma historia como essa no mundo hoje… Imaginei que uma manchete de qualquer jornal atual poderia ter te dado o start para criar esse conto. Há sempre tantos pontos de vista nas notícias de jornal. O ponto de vista do interesse político do editor e seus investidores, o ponto de vista político (e militar) dos governos responsáveis por cada lado de qualquer guerra, e há o ponto de vista das pessoas, seres humanos anônimos que se encontram no meio dessa loucura que a humanidade chama de civilização, e apenas levam suas vidas, fazendo o que acham que precisa ser feito, sem refletir muito sobre que todos os caminhos levam ao mesmo lugar. Lindo conto, gostei mesmo!
    Vc já viu um filme (americano) chamado Drone? É um filme despretensioso, quase ruim, mas que me cativou pelo roteiro, porque fala, de certa forma, sobre esses pontos de vista tão variados, e sobre as consequencias das atitudes tomadas por cada ator da história, levando a uma situação inesperada e surpreendente. Se não viu, procure, acho q vai gostar.

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    1. Obrigada, Ju linda! Agora que eu descobri que a minha interpretação do teu conto está correta, vou analisar o próprio conto. Obrigada pelo maravilhoso comentário no meu aqui. Vc é uma linda!

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  7. Querida Iolandinha,

    Então, cá estou eu em seu conto Africano, ops, da favela do Rio de Janeiro, ops, de Bagdá, ou seria no Acre (vi esses dias que a coisa na fronteira por lá, está feia)?

    Seu conto é muito bom. Ele tem uma estrutura dinâmica, com ações rápidas e entrecortadas, desvelando a triste trama aos poucos. Porém, a cereja do bolo consegue ser ainda mais triste. A realidade é dura e atemporal (tristemente atemporal) e, mais que isso, esta história poderia tanto acontecer ao lado de nossas casas ou, como é o caso, em Bagdá.

    Essa capacidade de falar do macro e do micro ao mesmo tempo é o seu ponto forte. A ambientação é de uma cosmopolita, mas o coração do conto é o quão humano e familiar ele pode soar. Até onde vai a falta de escrúpulos de um ser humano? Não sei. Ainda temos muito a evoluir e o seu pobre protagonista é prova disso.

    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Paula de minh’alma! Já estava com as beiradas dos olhos caídas de tanto esperar que alguém comentasse meu conto, e aí: sorte minha! Veio logo vc de quem eu tanto gosto! Pois é, mudei um pouco meu estilo para criar este continho econômico. Como vc falou é um conto que pode se adequar à qualquer país, porque injustiça e mentira são coisas democráticas, acontecem a todo tempo e hora e destroem vidas, famílias, sonhos. Muito obrigada pelo comentário, candura. Beijos!

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  8. Uma ótima trama que discute a atualidade, a luta entre povos, minoria e maioria, divisão de bens, preconceito, segregação e busca pela superioridade, o tráfico humano. O tom de guerra, de revolução incomoda (no bom sentido) ; gostei de como retratou a época, trazendo um final triste e até desanimador pro leitor, pois o mal sempre acaba vencendo, na vida real. Por mais que se criem revoluções que vão contra o poder, o ser humano sempre acaba perdendo…

    Parabéns, Iolandinha, pela construção de um estilo maduro, repleto de facetas que se complementam. Beijos.

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    1. Obrigada, Fheluany, saiba que vc, para mim, é muito mais que uma colega contista, mas uma amiga com quem eu sempre posso contar, que nunca me decepciona, e é uma pessoa leve e querida por todos. Num mundo cheio de gente pesada, mal humorada e desagradável é um bálsamo encontrar alguém feito vc! Sou sua admiradora como pessoa e como escritora, quero ser assim como vc um dia, beijos!

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  9. Olá, Iolandinha!
    Seu conto é uma história de muitos. É uma história de tantos perambulam aqui e ali em busca de sobrevivência. E o ser humano, caricato de si mesmo, cruel a mais não poder, hipócrita e desumano, nos afronta com suas vilanias. É uma história que poderia acontecer em qualquer lugar do globo. E acontece. É uma história que poderia delatar os universos paralelos e delata.
    Parabéns pela escrita fluida, a sequência de ações bem relatada e a contundência do tema.

    Algumas observações:

    As mulheres foram lavar a louça enquanto contavam piadas na cozinha, de súbito ouviram gritos >
    As mulheres foram lavar a louça enquanto contavam piadas na cozinha. De súbito, ouviram gritos

    Do outro lado da cidade o Tenente Campbell ouviu o > Do outro lado da cidade, o Tenente Campbell ouviu o
    No fundo sabia que nenhuma criança > No fundo, sabia que nenhuma criança
    Nas visitas que o rapaz fazia procurava > Nas visitas que o rapaz fazia, procurava

    Do outro lado da cidade o Tenente Campbell ouviu o telefone > Do outro lado da cidade, o Tenente Campbell ouviu o telefone

    E vários exemplos assim sobre o adjunto adverbial que não vou relacionar. Ok?

    Parabéns pelo texto!

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  10. Oi, Iolandinha!
    Nossa, que ideia!! E bem pode ser possível uma trama dessas ser maquiada no noticiario, não é? Afinal, imaginação para os jornalistas não falta haja vista as barbaridades q eles inventam todo dia 🙂
    Gostei muito, e percebo q se você rechear isso ae tudo com muitos diálogos, dá um livro bem bom, hein!!
    Abraços

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    1. Obrigada, minha florzinha! A vida tem tantas mentiras que quando a gente vai se informar tem a impressão que está assistindo um filme feito por um diretor do mal, como no filme O Show de Truman, lembra? Obrigada pelo adorável comentário e ainda esperando vc lá pelo CLTS. Beijos!

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  11. Quase um documentário. Um texto que consegue deixar-nos indignados e que, infelizmente, tem alta probablidade de ocorrer. A vida imita a arte…

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  12. Oi Iolandinha, esse conto poderia virar um filme, e o pior é que a realidade é ainda mais cruel, quantas vezes coisas assim acontecem?? Mas escrever sobre isso ajuda a abrir os olhos né… O conto rendia muito mais, mas entendo sua posição de deixá-lo compacto. Real e intenso. Triste e impecável. Parabéns!

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    1. Obrigada, Priscila. Eu criei este conto pensando nas ideias pré- fabricadas que temos sobre aquilo que conhecemos muito pouco, como achar que todo muçulmano é terrorista, que todo nordestino vive de bolsa família, etc. Porque a gente tem que reavaliar nossos conceitos e ver as coisas sem o filtro dos preconceitos. Obrigada pela sugestão de o conto virar um filme, acho que a história acabou ficando muito plástica mesmo. Sempre bom ler a sua análise sobre o que escrevo, vc tem um olhar muito interessante e mostra coisas que nem mesmo nós conseguimos ver.

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  13. Valeu, Cat! Gosto deste estilo de criar vários palcos para depois jogar todos os personagens, já delineados, na mistura da história. Beijos, e obrigada

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  14. Os filtros… Sempre aqueles a nos fazer sofrer menos, ou pensar na certeza de estar do lado certo. Um conto triste e real. Não pude deixar de ler seu penúltimo comentário. É bem isso. Porque nem todo gaúcho é machista, separatista ou gosta de chimarrão. Nem toda pessoa de pouca fala é pretensiosa, arrogante ou antissocial. Quando realmente vivemos a realidade do outro temos propriedade de falar. Parabéns pelo conto. Um grande e carinhoso abraço!

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    1. Olá, Evelyn! É isso, vivemos sob o véu da irrealidade fabricada, dos filtros que nos colocam sobre os olhos desde a mais tenra idade, e assim aprendemos a julgar aquilo que não conhecemos a fundo, pois para isso seria necessário se colocar no lugar do outro e não temos tempo. Fico feliz em ver que todas vcs captaram a mensagem que eu quis transmitir. Deus a abençoe, linda

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