Bomba alienígena – Sandra Godinho

Tique

Taque

Uma célula dentro do cosmos de um universo qualquer que por acaso é o meu universo de tempo e espaço só universo de dentro e fora meu universo que só se multiplica só e você pensa vou morrer eu sei que vou morrer algum dia alguma hora mas não tem que ser logo mas não tem que ser já e eu sei que uma célula se entranhou nesse cosmos que não é um cosmos qualquer mas o meu cosmos em plena surdina sem fazer alarde sem fazer barulho e se instalou e estancou lá dentro e se estratificou nos meus extremos e estremeceu e me estremeceu e eu no meu universo de tempo e espaço penso que nada está bem porque tenho noção de que a célula se desenvolve anos-luz e só e as leis da física não se aplicam à nova célula e dois seres podem ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço e a célula se reproduz e se desenvolve alienígena e só é um corpo estranho no meu corpo de sangue e carne e é um corpo estranho no meu corpo santo estreitado de vida que agora está alienado e aliciado para gerar outras células e dar alicerce a um ser que eu ainda não sei o que é e nem quem é e o que vai ser porque eu ainda não sei ou sei que aqui dentro é feito uma bomba relógio que pode explodir a qualquer momento e destruir o meu cosmos e o meu tempo e espaço e eu entro na banheira cheia de água e quero submergir e é isso eu quero ficar debaixo da água até que a água me leve não da banheira mas dos olhos que se encharcam com o ser alienígena que cresce aqui dentro sem que eu tenha qualquer controle sobre ele e o tique e taque está correndo sem parar e dois corpos ocupam o mesmo lugar no espaço e cresce e se desenvolve e eu não tenho mais controle sobre nada e eu pareço enlouquecer e não consigo parar de pensar que posso explodir e posso implodir e o meu cosmos não será o mesmo se eu não conseguir tirar essa célula que já não é mais uma mas um nódulo maligno que se transforma em vários nódulos que começam a viajar no meu universo sem pedir licença e eu não quero pensar mas já penso e não quero morrer mas já morro e não quero pirar mas já piro e não quero morrer sem viver mas não sei viver assim com essas células alienígenas que se apoderaram do meu corpo e do meu cosmos sem que eu possa cuspi-las fora porque já não há volta e eu penso em cortar o mal pela raiz aqui mesmo nessa banheira cheia de água que não me lava nem me leva nem me lambe só lamenta e eu lamento as lâminas lambuzadas de sangue envenenado por células malditas que foram para o laboratório para a biópsia que me condena só e eu condenada já cumpro pena por meus pecados enquanto eu aqui dentro da banheira  cheia de água me lembro de andar de mãos dadas com meus filhos sem conversa alguma só com a mão na mão e me lembro de dormir de conchinha com o marido sem nunca me separar das suas mãos grandes demais e do seu coração grande demais que nunca me deixou na mão que eu espero que agora ele segure meu mundo que está querendo sumir aqui com os olhos salivando lágrimas com a hipertensão fodida e com as ideias orbitando fora da cabeça e então o marido bate de mansinho do lado de fora e o meu cosmo invadido e em guerra se desloca até a porta e abro e ele avança dentro do meu mundo em ruína e me aperta nos braços e me aperta nas mãos grandes demais e então sei que ele companheiro vai me segurar em suas mãos grandes e não vai deixar meu mundo desmoronar nem por nada nem por tudo e então eu sei que meu universo de tempo e espaço meu universo se multiplica fora como dentro numa paz também alienígena e sei que tudo vai ficar bem.

Tique

Taque

 

 

 

15 comentários em “Bomba alienígena – Sandra Godinho

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  1. Q forte. Adoro trabalho com fluxo de consciência. Se eu bem compreendi o alienígena em questão é o câncer. E essa mulher devastada pela notícia de um tumor q cresce dentro dela como um feto alien q vai consumi-la aos poucos. Muito bom, impactante. Parabéns pelo trabalho!

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    1. Olá, Juliana.

      Exatamente. Eu não consegui participar do Entrecontos porque estou escrevendo um romance, mas não queria falhar com nosso blog, então juntei uma coisa e outra e deu o conto. Feliz que tenha gostado! Estou em falta com algumas leituras, mas vou ver se ponho tudo em dia! Bjos

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  2. Amei conteúdo e forma. Muito original, profundo e reflexivo. O jogo de palavras, as repetições estilísticas compuseram uma linguagem experimental amarrada à ideia veiculada. Não sei se trata de prosa poética ou poesia em prosa. Até a ausência da pontuação tem um significado: o avanço, sem pausas, da doença. Parabéns e sucesso com seu romance. Beijos.

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    1. Olá, Fátima!
      Sim, foi meio experimental. Quis caminhar por outros efeitos da linguagem e fico feliz que tenha passado o desejado. Pelejando no romance ainda, minha querida! Mas foco e fé, não é? Bjos

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  3. Sandra! Este seu conto poderia perfeitamente ter entrado para os contos do Desafio Alienígenas! Fiquei com pena de que vc estivesse envolvida em um projeto maior. Geralmente eu não gosto de fluxo de consciência, mas este seu conto está tão bem escrito que o formato escolhido não me incomodou nem um pouco. Achei experimental e finamente construído, coisa de quem sabe o que escreve. Parabéns, querida!

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  4. Olá, Iolandinha!
    Você sabe que o retorno de As Contistas têm embasado muito das coisas que escrevo. Se o retorno é positivo, é meu incentivo para continuar no caminho, se não, eu procuro outras perspectivas. Fico feliz que tenha gostado! Um bjo e vamos seguindo com força e fé.

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    1. As Contistas é um projeto excelente, não pode parar! Vc é uma escritora com qualidade profissional, é uma pérola entre nós. Felicidades e sucesso.

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  5. Nossa Senhora da Escrita, que conto foi esse?
    No começo, o fluxo de consciência me assustou um pouco. Não sou lá muito fã dessa embolada de pensamentos, mas aqui funcionou muito bem dando agilidade ao texto. Não poderia ser de outra forma, já que em um momento tão crucial, os pensamentos tornam-se uma cachoeira de águas turvas e pesadas, que ganham velocidade a cada instante. Uma experiência alucinante e viciante, eu diria.
    Primeiro, pensei que a narradora estivesse se referindo ao seu bebê como alienígena, como algo que cresce dentro de si e compartilha o mesmo espaço. Depois, percebi que se tratava de células cancerígenas que se espalhavam pelo seu corpo, um tumor que crescia maior do que a vida. A referência às lembranças dos filhos e do marido foi bem encaixada. Nossa, li de um fôlego só.
    Concordo com a Iolandinha, você deveria ter participado do desafio do Entre Contos. Eu daria 5 (nota máxima) sem pestanejar.
    Parabéns!

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    1. Obrigada, pelas boas palavras. Tive algumas experiências em família com essa doença. Foi a primeira coisa em que pensei quando veio o tema do Entrecontos, mas pelo amontoado de coisas, não pude participar. E o fiz no nosso blog. Que bom que gostou. Bjos

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  6. Oi, Sandra,

    Tudo bem?

    Certamente o conto foi feito para ser blogado aqui. No desafio, talvez houvesse a polêmica do tema. Em minha opinião, a abordagem ao tema seria perfeita. O único texto que fugiria do que todas fizemos por lá. Não sei quem está participando, mas quem está falou de alienígena no sentido de algo indo de outro planeta. E não é.

    A coisa alienígena dentro dela, a está matando aos poucos, invadindo aquele espaço que é seu e só seu, seu corpo, seu sangue, suas entranhas e medos.

    No início, achei que se trataria de um bebê. Um bebê inesperado e até indesejado, mas logo percebi que não. É a doença quem mina esta mulher narrada aqui com uma prosa poética experimental ímpar e que já se tornou sua marca como autora.

    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Olá, Paulinha!
      Sim, alienígena no sentido do que nos é estranho, estrangeiro, externo e acredito que no outro desafio suscitaria polêmica quanto à adequação ao tema. Feliz que tenha gostado. Aprendendo com vocês sempre. Temos uma equipe maravilhosa de grandes contistas por aqui! Bjos

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  7. Maravilhoso, Sandra! Forma e conteúdo funcionaram perfeitamente nesse seu conto. Nada sobra, nada falta. A leitura escorrega num fluxo de consciência envolvente e bem construído. Escrita de mestre, amiga! A metáfora do câncer como um alienígena, achei brilhante. Parabéns! Beijos.

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  8. É um conto emocionante… Entendi que trata-se de um câncer, todavia, li-o também imaginando o ‘alienígena’ como um bebê fruto de um estupro. É exatamente assim que mulheres nessa situação se sentem… Muito bem pensado e escrito, parabéns!!! 🙂

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  9. Ninguém escapa desse alienígena… Sonho com o dia em que teremos notícias de cura, quando a ciência vencer a doença e pudermos ter um prolongamento da vida. A própria palavra se torna quase impronunciável pela crueldade com a qual arrasa vidas.
    Um texto reflexivo, ininterrupto, num crescendo como nas situações mais devastadoras.
    Parabéns.
    Forte abraço.

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