A vida é feita de momentos. Hoje pode-se estar bem, amanhã, apenas pelo capricho do destino, tudo pode mudar.
Por pensar desta forma, todo ano Jörg aproveita suas férias ao máximo, da maneira que mais gosta: viajando. A cada ano, um país. Cada país, uma aventura diferente.
Aos dezoito anos, com o auxílio de sua mãe, Jörg foi obrigado a dirigir a empresa da família. Não decepcionou a memória do pai. Tornou-se um responsável empresário.
Aos trinta e três anos, depois de viajar para vários países, chegara a hora de aventurar-se pelo Brasil. Um homem sempre muito bem informado, tomou conhecimento de que o país, que já fora tão conhecido mundialmente pelo futebol, estava em crise. Vários escândalos, dentre eles um impeachment presidencial, acabou chamando a atenção do rapaz.
Chegando ao país, hospedou-se de hotel em hotel, cidade em cidade, norte ao sul. Conheceu vários pontos turísticos, fez diversas selfies ao lado de belas brasileiras.
Findando seu roteiro de viagem, parou em Brasília. Todos os anos, no último ponto de visita, caía sobre ele uma nostalgia que lhe invadia o peito, e ele gostava de ficar sozinho, fazer suas fotos solitário e tranquilo.
Por volta de meio-dia, Jörg chegou onde fica o Relógio de Sol no Parque da Cidade. Ele viu o local por fotos quando traçou seu roteiro em solo brasileiro. Tinha ficado encantado com a beleza de um parque tão grande, mas vê-lo ao vivo era ainda melhor. O Relógio lhe despertou emoções profundas e sinceras. Era lindo, de um modo rústico e perfeito.
O parque estava cheio, havia muitas pessoas tirando selfies ao lado do monumento. Ele também queria sua selfie, é claro. Mas não queria todas aquelas pessoas aparecendo em sua foto.
Esperou o grupo de pessoas distanciar o bastante e aproximou-se do Relógio. Naquela hora, a sombra estava um pouco mais alongada que antes, indicando treze horas. Ele ergueu seu iPhone e abriu um largo sorriso. Clicou. Não gostou da foto. Não realçava seus belos cabelos loiros, tão pouco seus olhos azuis. Clicou de novo, e de novo. Não gostou de nenhuma. Sabia que precisava de uma posição melhor, mas não com tanta gente olhando.
Jörg voltou ao hotel, tomou banho, dormiu um pouco, jantou e … esperou.
Quando o burburinho diminuiu, o silêncio o entorpeceu. Às três da manhã, vestiu seu fiel casaco marrom, que o acompanhava em todas as viagens, e saiu. Voltou ao Relógio.
Jörg olhou ao redor, certificando-se de que não havia ninguém por perto. O ambiente era pouco iluminado, mas daria para o que ele queria. Levou a língua úmida aos lábios ressecados, ansioso para ter uma boa selfie. Com cautela, contornou o Relógio e pulou, agarrando-se ao tronco de concreto um pouco inclinado, que sustentava o Relógio. Segurou-se como um macaquinho se agarra nas costas da mãe. Foi mais difícil do que ele imaginou.
Com calma, e muita força, ele foi subindo. O braço de concreto não possuía apoio para seus pés ou mãos. Chegou ao encontro das colunas, onde ficava apoiado a grande roda. Jörg passou as pernas, entrelaçando-as, e passou a mão esquerda por trás da roda cheia de números. Suas pernas e braços começaram a tremer, teria que ser rápido. Soltou devagar a mão direita, levando-a ao bolso interno da jaqueta, pegando o iPhone.
Jörg ergueu o aparelho, sorriu e clicou. Ele sentiu as pontas dos dedos da mão que agarrava o concreto, dormentes. Rapidamente devolveu o iPhone ao bolso e começou a descer. Faltando cerca de um metro, seus músculos se contraíram em cãibra, e ele não conseguiu mais se segurar, despencando no chão. Bateu com a perna direita dentro do espelho d’água do Relógio, reprimindo um grito de dor.
Com parte do corpo molhado, levantou-se trôpego e saiu mancando. Não queria ficar muito tempo ali, já que algum segurança poderia ter ouvido o barulho de sua queda.
O trajeto até o banheiro foi lento e doloroso. Entrou e fechou a porta. Sentou-se no chão e ergueu a calça molhada. O tornozelo já inchara. Pegou o iPhone e visualizou a foto tirada. O sorriso logo o fez esquecer a dor. A foto ficara perfeita.
Mas ainda não havia acabado. Faltava a última parte de seu roteiro pelo Parque da Cidade.
Do bolso esquerdo de sua companheira jaqueta, ele retirou um longo prego, e, olhando-o, Jörg agradeceu por sua queda ter sido pelo lado direito.
Esquivou-se pela lateral e passou a mão pela superfície da parede, admirado pela beleza daqueles azulejos que ele sabia serem verdadeiras obras de arte. Encontrou um que estava um pouco mais saliente e posicionou o prego entre eles. Começou a bater no prego, devagar, mas firme, com um tijolo que ele encontrou do lado de fora. Ao conseguir deslocá-lo um pouco, dispensou o prego e acabou de arrancá-lo com a mão. Soprou a poeira da superfície e sorriu satisfeito. Colocou a peça no interior de sua jaqueta e saiu mancando.
Quando estava saindo da praça, uma viatura despontou. Jörg sentiu seu estômago se contrair e os pelos de sua nuca se eriçaram. Nunca fora pego em suas aventuras pelos países que visitou, agora seria? Mas a viatura seguiu sua patrulha, com as sirenes piscando, silenciosa, indiferente a sua presença.
No dia seguinte, voltou para seu país, com o pé enfaixado, mas com uma foto, que ele emoldurou e colocou juntamente com outras, em seu “escritório secreto”. Jörg contemplou fascinado sua coleção. Da Grande Muralha da China levara uma pedra; de Burj al-Arab, levara uma toalha; da Pont des Arts levara um cadeado; e assim por diante. Do Brasil, um azulejo de Athos Bulcão, mal sabia ele, que, justo o seu precioso troféu, era uma peça falsa…
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Imagens:
Relógio do Sol (Foto: www.correiobraziliense.com.br)
Athos Bulcão – Foto de Arquivo Fundathos disponível em <http://www.fundathos.org.br/noticia/223> acesso em 22 set 2018
Ironias da vida, tanto esforço e risco para levar uma peça falsa depois. Acho é pouco, detesto quem depreda o patrimônio cultural, só tive pena porque o celular não caiu na água. Vc faz uma coisa que eu nunca consigo, Vanessa. Vc faz um conto que é só um conto mesmo. As minhas tentativas sempre ficam parecendo que foram apertadas para caber no espaço onde deveria existir um conto. Vou explicar: um conto é o retrato de um momento, de uma peculiaridade na vida de uma pessoa e o seu texto consegue isso de maneira muito inteligente. Sabemos que Jörg é jovem, sabemos que tem uma grande responsabilidade e sabemos onde consegue liberar a adrenalina de sua juventude – fazendo merda! Ele quer o risco e o troféu, mas não pensa que está prejudicando o arcabouço histórico de onde retira isso que quer. Gostei da ideia, nunca pensaria em escrever algo assim. Parabéns pela execução e pela criatividade.
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Jörg era de onde? Fiquei aqui pensando: norueguês, finlandês, dinamarquês, islandês, sueco?
O rapaz deveria ser mesmo um poço de frustração para ter como ponto máximo viagens solitárias e captura de fragmentos culturais alheios. Não gostei do personagem, o que credencia a narração, pois caracterizou bem o protagonista da sua história.
No fim, o rapaz se deu mal, levando para casa, além do pé enfaixado, um pedaço de azulejo falso.
Parabéns pela diferenciação do seu texto, tema original e alcance das palavras.
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Jörg era um desses adolescentes eternos. Apesar de conseguir dirigir a empresa deixada pelo pai, entendi que ainda vivia no antigo quarto na casa da mãe, com trinta anos e procurava aventuras pelo mundo afora, colecionando objetos com valor. Deu azar aqui no Brasil que, tristemente usava peças falsas em seu monumento histórico. Notei, aí uma crítica ao nosso país, hein?
A narrativa está muito bem desenvolvida, interessante, fluida e desperta a curiosidade do leitor. A linguagem é direta e com uma abordagem livre de preconceitos. O tema é incomum, oferecendo uma amostra do modo de vida de uma parcela da sociedade atual.Curti um texto descontraído e atraente que retrata um mundo moderno e ousado.
Parabéns pela ideia e execução. Beijos.
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Oi, Vanessa,
Tudo bem?
Uma vez, vi uma guia turística dizer e até já usei em um conto meu, “se cada um que passa por um local turístico levar uma pedrinha”, o local morrerá brevemente pois vai, aos poucos, se tornar vazio.
O conto narra a trajetória de um anti-herói, um turista vândalo que só consegue se satisfazer correndo riscos e destruindo os locais para onde viaja, e, a narrativa é muito bem sucedida em causar emoções em relação a este protagonista. Um personagem, diga-se de passagem, que, embora antipático, é extremamente bem construído pela autora. Personagens devem, sim, ser amorais ou vândalos, caso contrário, a literatura seria habitada apenas pelo politicamente correto.
Parabéns.
Beijos
Paula Giannini
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Olá, Vanessa!
Um conto cheio de significados é a leitura que faço dele. A escolha do país em crise porque ele também se encontra em crise existencial, um adolescente que teve de amadurecer rapidamente por força da morte precoce do pai, assumiu responsabilidades sem viver tudo no devido tempo. Então ele se encanta com o monumento, o Relógio de Sol no Parque da Cidade, que nada mais é que uma mão segurando o tempo. Tão significativo, não? E no final, seu troféu não passa de uma farsa, tanto com a coisa pública, história do país, quanto na parte pessoal. Esse é meu entendimento, numa escrita impecável e cativante!, desenvolvido com maestria.
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Eu só entendi que ele tinha tirado um azulejo no final. nao consegui entender o q ele fez com o prego. rsrsrs mas é divertido o conto, eu dei risada da “aventura” do rapaz. Parabéns!
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Olá, Vanessa! Uma sensação de estranheza acompanha seu conto da primeira à última linha. Embora a narrativa soe despretensiosa, os elementos me parecerem selecionados e organizados criteriosamente. Um turista com um nome estranho, em uma cidade estranha (essa não-cidade, Brasília, onde vivo), cercado de pessoas estranhas (obcecadas por selfies), um relógio de sol (há outros aqui em BSB), a peripécia sem sentido e narrada com riqueza de detalhes, o azulejo falso e por fim a coleção de objetos frutos dos vandalismo do jovem empresário. Achei seu conto escandalosamente bom e surpreendente! Parabéns!
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Eu fiquei surpresa com o roteiro, porque eu escrevi um conto para esse desafio – não me lembro do nome, mas as palavras chaves eram essas: alemão, azulejo de Athos Bulcão, o Parque da Cidade, o Relógio de Sol. Você participou do desafio? Eu não participei, mas escrevi um conto para testar: Os anões, o alemão e o azulejo de Athos Bulcão.
Eu gostei de como estruturou a história. Parabéns.
Beijos!
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