BALANÇO – Juliana Calafange

De olhos fechados eu inspirava, expirava, inspirava, expirava. E assim fui suavemente me entregando ao balanço. Leve. Volátil. Doce. A morte deve ser assim.

Embalado pelo mar da tranquilidade, abri os olhos devagar. Santa Maria, Pinta e Nina navegavam soltas pelo teto e meus sentidos lentamente percebiam a fria superfície sobre a qual meu corpo boiava, barriga para cima, braços abertos a espera de um abraço. Há muito tempo que eu singrava apenas por águas sujas, imundas, viscosas. Merecia aquele momento de conforto plácido. Algumas pessoas certamente condenariam minha extravagância, diriam que não tenho mais idade para brincadeiras lisérgicas. Mas o céu estava estrelado e a moça que me ofereceu o chá era tão bonita… Pra onde ela foi? Saiu correndo, dizendo sempre que estava atrasada. Isso não tinha mais importância agora. Tudo estava finalmente em ordem. À minha direita eu via o altar dos anjos caídos, confessionário de todos os bêbados – o reconheceria de longe. Quantas vezes confiei a ele minhas piores aventuras, revelei imperdoáveis segredos, admiti tudo o que tenho de desumano em mim. É ele quem sabe. Este depositário dos meus erros e culpas se encontrava agora bem embaixo de onde Nina havia decidido fincar âncora. Estiquei o braço, mas não consegui alcançá-lo, tão perto e tão inatingível. Quis nadar até ele, precisava me confessar de novo. Mas quando me virei pra baixo, não consegui mais desvirar, meu corpo estava muito cansado e achei que ia morrer afogado com a cara enfiada na água fria. Foi então que descobri que a água fria não tinha mais poder sobre mim. Eu havia adquirido esse dom de engatinhar sobre ela sem afundar. Diante disso, não era mais necessário admitir meus crimes, um bom banho de cachoeira bastaria. Fui engatinhando até a queda d’água, que ficava a poucos e longos centímetros dali. Santa Maria sempre à espreita, vendo tudo lá de cima. Que Deus me perdoe, pensei. A água da cachoeira era mais fria que a do mar. Tive receio, pois não sabia até quantos graus centígrados iam meus poderes sobre ela. Meus músculos se arrepiaram todos de dormência. Por que o prazer precisa doer assim? Por que é que a gente precisa fingir que é forte? Por que a vida dura tanto e o amor tão pouco? Por que a doença do mundo não tem cura? Por que o espelho não tem dois lados? Nunca gostei de espelhos.

Minha imagem alterada aparecia no reflexo fraco que circundava a cachoeira. Eu era agora um sujeito muito esquisito, de lábios roxos e olhos vermelhos. E Pinta estava flutuando bem na frente do meu nariz. Tive medo daquela pinta de miserável do sujeito esquisito no reflexo e precisei desesperadamente fugir dali. Me agarrei às velas da embarcação e logo logo estava alto, muito alto – céus, como eu estava alto! – flutuando acima da cachoeira gelada. Só então me acalmei outra vez. Inspirei fundo e entreguei-me de novo apenas ao rebolado do ar, movimento. E fui subindo, subindo…

Na varanda de cristal havia um jardim todo florido, com muitos cogumelos e alguns duendes. Pedi permissão às Caravelas e colhi alguns cogumelos para comer. Quase engoli uma fadinha sem querer. Espantei-a com a mão. Ela sorriu e mandou um beijo pra mim. Em seguida desmaiei. Ou dormi, não sei. Sonhei que estava brincando no balanço. Pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, o vento fresco batendo no meu rosto, um vento fresco e livre, disponível. Eu fui anistiado!

De repente, um estrondo enorme. O vento fresco num instante virou glacial. Ouvi vozes. Minha mãe e o zelador arrombaram a porta. Acudiam meu corpo inerte no chuveiro, eu vendo tudo lá de cima. Deram tapas na minha cara. Minha cara pra lá e pra cá. Era a vida voltando a mostrar quem é que manda. E eu sou aquele que apanha na cara da vida. Senti vergonha. De apanhar na cara, de estar nu – finalmente e por inteiro – diante dessa estranha que sempre foi mamãe. Só consegui pensar: Vá pra puta que pariu! Não consegui perdoá-la, nem me mexer, nem dizer nada. Deixei o corpo cair nos braços do zelador. Fechei os olhos e voltei a brincar no balanço. Leve. Volátil. Doce.

6 comentários em “BALANÇO – Juliana Calafange

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  1. Um conto bem interessante aproveitando a imagem da criança no balanço do cogumelo para nos levar a uma viagem (de caravelas aéreas) pelo mundo que mistura realidade sensorial e imaginação alucinante sob o efeito de um psicoativo poderoso.

    O contraponto fica a cargo da mãe do protagonista que chega com o porteiro do prédio na tentativa de salvar o rapaz do que parece ser uma overdose. Terá conseguido escapar? É a dúvida que fica no final.

    O virtuosismo da história fica por conta das imagens oníricas criadas pela autora, uma contista segura e que consegue em suas histórias sempre ir além do comum, capturando a nossa atenção por toda a trajetória dos atores de suas tramas. Parabéns, amiga, mais uma pérola para a gente descobrir entre as suas joias, beijos!

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  2. Olá, Juliana!
    QUE CONTO ESSE SEU!!! Falar de sua maestria em nos trazer imagens fortes, oníricas que falam de uma pessoa sofrida, um jovem tentando ser feliz, um jovem tentando amar num mundo cheio de regras e de preconceitos. A overdose sofrida é pungente porque nos toca. Concordo com a Iolandinha, uma pérola esse seu texto, digno de grande contistas. Parabéns!

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  3. Texto repleto de imagens surrealistas. O protagonista tomou um chá e deu início a uma viagem. Estava no banheiro de casa e foi socorrido pela mãe desesperada. O epílogo aberto ficou muito bom: o protagonista voltou à realidade, ou morreu de overdose?

    Muito inteligente e original cada metáfora com os nomes das caravelas e a forma como as amarrou às alucinações do personagem: Nina-mulher, Pinta no nariz, e Santa Maria, a que vê do alto.

    Texto bem escrito, vocabulário rico, leitura agradável e fluente. Amo seus textos, Juliana, pela criatividade e escolhas de abordagem. Parabéns! Abraço.

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  4. Querida Ju,

    Muito bom.

    Sob a premissa das drogas, uma viagem ao paraíso e ao fundo do poço (ou quase).
    Certos trechos fazem uma homenagem a Alice e seu país de maravilhas, ao menos foi a impressão que tive.

    Econômico com as palavras, seu conto é preciso, sem gorduras ou faltas.

    Muito bom. Eu já disse isso? Repito. Muito bom mesmo. rsrsrs

    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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  5. Muito bom, Juliana! Super imagético e ao mesmo conduzido pelo pulso firme e seguro da escritora talentosa que vejo, feliz, transbordar em alguns de seus textos. Parabéns, querida!

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  6. Uma fuga é sempre um risco. Risco de dar certo. Risco de não dar. Mas ficou a agonia, tanto na ida quanto na volta, porque entendo bem esses tapas na cara. A vida é sempre assim, uma senhora durona, querendo que se fique quando se quer partir, arrancando-nos do lugar quando queremos ficar.
    Parabéns pelo texto.
    Grande e carinhoso abraço.

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