Quando escapou… (Sandra Godinho)

Quando escapou…

Quando escapou-lhe as lágrimas ficou mais leve.

Ele sentiu de imediato a leveza no corpo frágil de inconfessáveis segredos. Fugiram-lhe à face, simplesmente, cansadas de rolar por bochechas que se negavam a sorrir, fugiram-lhe à causa de uma maturidade cansada que deixava sulcos profundos no rosto, traços marcantes de um mapa que somente ele decifrava devido aos anos de vivência. Secaram, desapegadas de posse, descuidadas de afeto. A tristeza quando é demais, reivindica a insensibilidade como couraça, um truque usado por muitos para continuar vivendo além das perdas que sempre são demasiadas num velho de 85 anos. Já tinha velado muitos, já tinha enterrado outros tantos, as velhas carpideiras não lhe faziam frente. Queria agora tratar do presente, mas o passado sempre vinha lhe cobrar o passe. A posse. E quanto mais se distanciava, mais perdido no passado ficava. Cansado, arrancou uma flor vermelho-tinto de uma campa próxima e sentou-se no banco para viver de memórias. Um pouco apenas, não muito. Permitiu-se ficar em abandono, como se assim se redimisse dos silêncios e então

Quando escapou-lhe a boca ficou mais leve.

A boca que engoliu sorrisos, esgares, micagens, trejeitos, versões infinitas dele mesmo, sem contenção ou saciedade. A penúltima vez que esteve no cemitério foi para enterrar o filho, um homenzarrão em eterna atitude de desafio, algo perigoso num mundo polarizado de opiniões. É de esquerda? Ou de direita? Que importância tinha isso agora que ele não estava mais lá? Queria que estivesse, a pousar sua mão sobre sua nuca, a dizer que tudo ia ficar bem, a apontar qual a direção a seguir. Nunca imaginou em seus muitos anos de vida que a escolha por um partido desencadeasse uma reação de desprezo vingativo que lhe tiraria a vida, seu único filho. Uma lâmina. Foi o que bastou para lhe ceifar a existência. Uma lâmina e muita intolerância. Uma lâmina, muita intolerância e raiva. Muita raiva das coisas que a vida faz com a gente. Casado, pai de um menino de oito anos, seu neto ainda ingênuo do mundo, ainda com tempo de consolo. Ele não o tinha mais. E logo mais

 

Quando escapou-lhe a pele ficou mais leve.

Ele sentiu a falta de peso de imediato, como se a dor tivesse destinatário inexistente. Não havia mais necessidade da couraça porque não havia mais ferida, lesão, arranhão, edema ou cicatriz que se alastrasse às extremidades, com abundância imerecida de sofrimentos que deformava e desfigurava o velho já tão desfigurado. Então o velhote quis transformar em ação sua passividade acumulada de anos, pôs-se a transitar pela velha casa – em pensamento -, deslocando móveis, abrindo espaços, erguendo caixas imensuráveis que cansou de ordenar sem que desse conta de todas. A caixa da solidão, a caixa da saudade, a caixa do amor, essa sempre mais pesada e difícil de deslocar. A gente a levava consigo por onde andava, por onde vivia, com destreza inigualável. Carregamos o amor às costas, um verdadeiro marco, o momento que se descobre que a dor do outro é mais sofrida que a sua própria. E é insuportável. Pior do que isso, é descobrir que apesar da dor, o mundo continua existindo à sua revelia. Ou à da esposa, que chorava a morte do filho, debruçada ao caixão que baixava à terra aberta em boca, pronta para o engolir, pronta para levar o corpo jovem ainda cheio de ideais, que sempre foram a chave da invulnerabilidade humana. Bobagem. O rigor da mente nunca é igual ao rigor do corpo. Padecemos. Mutilamo-nos. Vulneráveis. Foram necessários meses para o velho se recuperar, recuperar os ruídos de cadeiras rangendo na cozinha novamente, dos talheres se chocando à mesa. A esposa nunca se recuperou, foi definhando como as folhas de outono de uma árvore antiga, até que se tornou uma paisagem invernal: fria, distante e etérea. Só importou

 

 

Quando escapou-lhe a voz ficou mais leve.

Desapercebeu-lhe o canto, mas também o pranto. Aniquilou-se a palavra, mas também a lavra, o cultivo de verbetes que foram ficando cada vez mais escassos em sua boca improdutiva. Desapareceu o alarde e a bravata, a mentira e o conluio. A crítica, o insulto, a vaia, a ovação, a censura, o cumprimento, a advertência, a detratação, o sarcasmo e a reprimenda. Aniquilou-se a concretude de sentidos, só restou o silêncio e a solidão carimbando os ouvidos em atitude indignada. O velho foi se esvaziando de si, das conversas-fiadas e dos gemidos. Esvaziou-se das risadas da esposa à mesa, do ronco contido na noite, no choro silencioso pela madrugada. Nunca pensou que a morte fosse desse jeito, dessa vontade de não comer, de não dormir, de não existir. Dessa vontade de voltar no tempo. Dessa vontade de se desmanchar. Foi se perdendo de suas partes vazias sem se dar conta de que sua linguagem ia lhe sendo arrancada, sem que nada a trouxesse de volta. Na inércia das horas e na reclusão voluntária, o velho se deixou levar por olhos derrotados e saudosos. De repente

 

 

Quando escapou-lhe a memória ficou mais leve.

Abandonou os atos de resistência que ainda perduravam em algum lugar dentro dele, algum devaneio, algum sonho. Sua velha tinha se ido. Aquela que sempre foi lar, aquela que sempre foi mãe. A amiga e a amante o tinham abandonado num mundo desprovido de caminhos, ao menos um que o levasse até ela, a velha que nunca soube se desprender. A morte de um filho é o tipo de mágoa que poucos conseguem arrancar do peito. Só restou ele e seu tapete de cacos incapazes de se fazerem inteiros. Só restou ele e sua vontade de também se fazer alheio. O último fragmento de recordação que varreu da lembrança foi a coreografia de taças na comemoração das bodas de ouro, na época em que todos podiam celebrar sem resquício de tristeza ou saudade, na época em que o filho vivia. E o neto e a nora e o cachorro e o papagaio com suas mil vozes. Tudo tinha se ido. Só restou ele naquele banco despojado, cinzento de cimento, depois da despedida do neto e da nora, que iria voltar a morar com os pais numa cidade no interior do estado. Desabrigo insensível. Só restou ele ali, chafurdando em comiseração, quase na mesma atitude de desafio do filho. Desejando os chás curadouros da esposa, desejando os sorrisos de dentes imperfeitos, mas tão seus. Não ia para lugar nenhum longe de quem quer que seja, já não se lembrava mais. Alguém. A lágrima, a boca, a pele, a voz, a memória, perdidos todos. E a lhe embaçar a mente em troça. E lá estava

Uma sombra cobriu-lhe a face, turvando sua visão por um instante. À contraluz, a claridade lhe cegou até que distinguiu uma imagem, talhada no espaço defronte a ele. Uma velha com uma taça na mão, exortando-o a brindar, ele não entendeu bem. Um reencontro com a espoliação de tudo, ela disse. Algo que não fez sentido naquela paisagem pacífica e ensolarada. Ele não perguntou, tomou a taça de sua mão, brindou, deixando que os ruídos voltassem a ser ouvidos, distantes. Tudo ia ficar bem, sentiu quando escapou-lhe a alma. Então, ele voou leve, etéreo.

10 comentários em “Quando escapou… (Sandra Godinho)

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  1. Uma prosa poética bem trabalhada nas palavras. Confesso que bastante difícil de ler pela estrutura do texto. Eu, particularmente, tenho dificuldades em ler desse jeito, mas não desmerece a escrita. Coisa minha, que não retira a beleza contida nas linhas E entrelinhas.
    Duas coisas me chamaram à atenção: primeiro porque considero desleal a morte de um filho antes de um pai. A ordem natural é menos(?) dolorosa; segundo porque nossa contagem regressiva é recheada de paradas e elas são de uma riqueza de dar dó o simples parar de respirar, por mais leve que a alma seja.
    Parabéns, contista, pelo texto. Um abraço carinhoso.

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  2. O conto apresenta uma proposta artística, nem tanto uma estória — é a análise da vida daquele que já viu a família desbaratada e agora aguarda a morte como descanso, no momento em que visita o cemitério. A imagem está muito bem explorada e aparece já no prólogo.

    É muito mais importante, neste texto, a linguagem do que o enredo ou o protagonista, que, na verdade, é menos o condutor de uma trama do que instrumento da enunciação de um discurso estético. Por isso, a autora não se prende a detalhes descritivos ou narrativas de cenas impactantes e, sim, à dinâmica extensiva do texto, em geral, com imagens invocadas, um olhar lírico sobre a realidade.

    A palavra está esteticamente elaborada dos pontos de vista sintático, semântico e quanto às figuras de linguagem, e com isso provocando efeito poético, uma cadência calculada, na sonoridade das frases.

    A repetição como recurso de Retórica foi praticada, nesse texto em diversos níveis: para criar ritmo, para dividir a estrutura da trama, para enfatizar. Gostei muito. O título estendido em — “Quando escapou-lhe as lágrimas ficou mais leve” — e com alternância de palavras ao se repetir, produziu iconia, criou regularidade, ritmo, atmosfera, ênfase, enfim, melhorou a percepção do efeito. Se a repetição é periódica, ela cria a expectativa da próxima repetição, o que estimula a percepção.

    É muito visível o cuidado com a construção frasal, o personagem está muito bem construído, a leitura é leve e tranquila. O final não chega a ser surpreendente, mas é muito satisfatório.

    Parabéns pelo excelente trabalho. Beijos.

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  3. Olá autora! Começando por aqui a leitura dos contos do desafio.
    Um texto muito triste. A linguagem impõe que seja lido lentamente. O uso de recursos próprios da linguagem poética – assonâncias, aliterações, figuras de linguagem – indicam ao leitor a atitude diante do texto: abandonar-se à atmosfera de melancolia estetizada habilmente construída pela autora. Gostei bastante do efeito. Há algumas construções belíssimas. O final me agradou muito por inverter a perspectiva da narrativa. Parabéns pelo ótimo trabalho!
    (ainda restam alguns probleminhas de edição)

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  4. Um conto para ser absorvido em pequenos goles, para que o bouquet de sabores e texturas que ele traz possa ser degustado em toda a sua plenitude.

    A forma é inusual e sensorial. No momento em que o personagem admite chorar, esse entregar-se à emoção, provoca uma série de efeitos nesta pessoa, e estes efeitos desenvelopados pela autora é que são o cerne do texto.

    Sem dúvida, a autora é uma pessoa com domínio do idioma, e com sensibilidade para construir uma prosa poética plena de beleza. A ambientação é primorosamente trabalhada e o final fecha o conto com um brilho a mais para este prisma de sensações com que nos presenteia.

    É isso, parabéns.

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  5. Talentosa Contista,

    Eu realmente admiro textos que descrevem momento de morte, ainda mais quando a descrição traz elementos metafóricos que te auxiliam a “ver” a morte, a acompanhar a transição.
    O texto é bastante descritivo e, creio eu, por isso, pode ter ficado mais denso do que o mote já lhe exigia que fosse. Eu li duas vezes, em dias diferentes e, com isso, ele ficou mais claro.
    Contudo, é bastante rico em vocabulário e, como já disse, a descrição é belíssima.
    Essa imagem do desafio também me remete a algo triste e acho que a usaste muito bem, ao descrever todas as coisas que fazem parte da gente (muito além do corpo e da alma) que vão se desprendendo no momento do adeus definitivo.
    Parabéns!

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  6. Um belo conto costurado e rebordado com a mais fina prosa poética. Apesar do tema triste, real até os ossos, a narrativa traz uma leveza que nos faz compreender a morte como alívio de cargas tão duramente arrastadas por uma vida inteira.
    O protagonista do conto, um senhor de 85 anos, senta-se em um banco, abandona-se inerte diante do desenrolar de passagens guardadas na memória. Quanto mais idade se tem, mais risco de sofrer perdas. Quanto mais idoso, mais amores a deixar partir, mais arrependimentos a guardar, mais dores a acalentar. E a autora trata de algo muito assustador aos pais: perder um filho, pois foge à lei natural. Muito bem descrita a ausência do filho, a falta de significados quando se perde alguém tão mais jovem e amado. Como absorver essa realidade?
    A linguagem empregada revela habilidade com as palavras e talento para formar imagens limpas e plenas de simbologia e delicadeza.
    A leitura transcorre impondo seu próprio ritmo, envolvendo o leitor com suas camadas de metáforas e detalhes de uma vida que poderia ser a de qualquer um de nós.
    Parabéns pelo trabalho realizado com tanta elegância e entrega.

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  7. Um conto de uma melancolia que comove. Concordo com a Cláudia que traduz uma bela síntese: “compreender a morte como alívio de cargas tão duramente arrastadas”, por isso o protagonista se entrega e se deixa levar. E, em se deixando levar, ele também se eleva. Um belo efeito a autora obtém na repetição da sentença que também lhe emprega o título. Um toque especial falar da morte do filho, depois a morte da mulher. Quando se perde as referências, o que nos resta, não é mesmo? Um texto que diz respeito a todos nós.

    Curtido por 1 pessoa

  8. Olá, Contista querida,

    Tudo bem?

    A imagem da alma saindo (escapando) é algo que me intriga muito. É uma imagem que me persegue artisticamente e talvez até na vida. Em que momento deixamos de ser? Em que instante, em que átimo? Assim, a premissa já me ganhou de cara… Foi tipo… “Quando lhe escapou” e eu “Ahhhhh”. 😉

    O grande trunfo deste conto é a busca do formato, da linguagem. Clarice Lispector se dizia lutando com as palavras e também sinto isso aqui, uma busca obstinada na batalha da autora, por imprimir o que sente (o que suspeita) em seu(s) conto(s).

    Parabéns por seu trabalho.
    Juntas, somos mais fortes e crescemos muito em nossos ofícios de escritoras.

    Beijos
    Paula Giannini

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  9. Olá amiga,

    Seu conto me mareou os olhos. Ando meio úmida.

    Imagem: “Cansado, arrancou uma flor vermelho-tinto de uma campa próxima e sentou-se no banco para viver de memórias. ” – Bela tradução.

    A profundidade dos sentimentos de dor é latente e a força motriz deste conto, que de alguma forma estranha, é extremamente leve na essência, o que torna o título e as frases “Quando escapou..” um bom truque de conteúdo.

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