A Árvore Que Emoldurava A Lua – Evelyn Postali

Felixiana morava numa casinha no pé do morro da Benedita, beijando o céu, perto do córrego do Boca. Um lugar nada propício para alguém que viajava o mundo nas páginas dos livros juntados no lixão.

Livros jogados fora, cujas imagens encantavam e conseguiam movimentar aquela vida mínima quando a roubavam da cama feita de estacas e a levavam para passear, dissipando a agonia da vida dura de filha de catadora e estudante assídua da escola pública do bairro.

— Onde já se viu jogar livro fora? Gente mais sem coração!

Costumava subir a picada contornando os outros barracos. Assentava-se nos galhos da árvore frondosa, dona de uma vista invejável dos outros morros apinhados de gente e desgraças. A planta era uma das remanescentes da grande mata que sucumbiu à necessidade humana, chamada por uns de miséria, por outros de morte ainda em vida.

A farinha-seca de tronco irregular, com muitas galhadas, velha e imponente, apreciava a vista e também a companhia da menina. Não se relacionava muito bem com as outras poucas da espécie, nem com os cajueiros-japoneses, mas com Felixiana era diferente.Trocavam ideias nas horas livres e mergulhavam juntas nas palavras impressas nas folhas; palavras que ora saltavam para envolvê-las, ora subiam até o alto do céu, ou se entocavam na vegetação rala, de arbustos esparsos, a ka’a  uera.

— Capoeira — dizia a farinha-seca e a menina ria.

Ambas, em noites de céu claro,observavam os astros do céu noturno. Felixiana costumava abraçar a amiga e admirar a passagem da lua por seus galhos, roçando de leve, fazendo cada folha cintilar. O vento assoprava de mansinho o ano todo.

Assim,  liam juntas as contações de viagens mirabolantes. A cada nova página, nova imagem a ser vivida. Outra vida a ser vivida. Palavra dentro de palavra. Ela pulava para dentro das folhas, para perto das montanhas ou vales verdejantes, junto a praias e cais graçapés, próximo o bastante de sóis dourados, aquecida em céus azuis, e encantava-se com outras luas de pura prata que chamavam os gatos para brincar.

Depois, repousava o livro em algum galho, porque a árvore emprestava suporte de estante singular e perfeita.Ninguém, no entanto, subia na árvore e tampouco lia. Quem, naquele amontoado de gente importava-se realmente com os livros?

Felixiana não pensava muito.Pensava, mas não queria. Afinal, não conseguiria enfiar na cabeça daquela gente que livros também eram importantes. Antes, pensavam nas necessidades básicas.Antes, era preciso pensar na comida, na água, no teto, na luz elétrica, no esgoto encanado. Não havia como pensar em ler, muito menos empilhar livros no chão batido com o estômago rugindo.

No aniversário da menina,amanheceu chovendo. A chuva penteava os telhadinhos miúdos, batucando no zinco uma melodia intensa, lambia a vegetação grudada nas casas e serpenteava para baixo, em tons pastéis, caquis e marrons. A chuva nunca se apresentava daquele jeito. Parecia enlouquecida, numa tristeza sem dó.

Naquele dia, Felixiana não foi para o lixão. Afinal, mesmo esquecido da família pingada, o aniversários era data especial porque viver era evento caprichoso. Voltou da escola e, ainda dentro da capa plástica remendada subiu o resto do morro até a árvore. Sabia da demora da mãe, porque nas terças-feiras tinha faxina grudada uma na outra, e o irmão, mais velho, fazia turno dobrado no lixão todos os dias.

Ao chegar ao topo, subiu na farinha-seca e lá, protegida por um galho grosso, prestou atenção no verde viçoso, molhado de dar pena. Nenhum pio de ave alguma. Nem os bichinhos minúsculos, sequer abelha, mosquito também não. Só o barulho da chuva a despencar em cascata.

De tamanha chuva, os casebres, um por vez, foram deslizando morro abaixo como se surfassem sobre a terra enlameada. A água ia carregou tudo. O morro desceu. Despencou, levando terra, água, gente.

— É aguaceiro, menina — disse a árvore e abraçou a pequena com seus galhos, querendo-a proteger do perigo. A menina apertou os olhos e devolveu o abraço.

Tudo deslizou. Menos Felixiana e a árvore que emoldurava a lua. Ambas subiram, ao invés de descer. Leves, carregadas pelas fantasias.

21 comentários em “A Árvore Que Emoldurava A Lua – Evelyn Postali

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  1. Um casamento caprichoso entre a ilustração e o texto. Parabéns! Sua história em tom de fábula que une amor aos livros e conexão com a natureza me agradou. Felixiana, a menina pobre que gosta de livros e Farinha-seca, a árvore que resistiu ao desmatamento. Um encontro entre dois seres que se acolhem em sua resistência à solidão e ao aniquilamento. Uma metáfora potente que, para mim, fez valer a leitura. Parabéns pelo tocante trabalho.

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  2. Meu comentário começa fazendo referência à bela imagem que ilustra o conto. Empregar uma árvore-conhecimento dá um toque peculiar à narrativa, estabelecendo uma analogia, a natureza que é conhecimento, que deve ser preservada, que poucos dão valor são algumas das leituras que podem ser feitas ao interpretar esse belo texto. Há belos trechos como […] porque viver era evento caprichoso […]. Há tristeza e melancolia, mas também poesia e sabedoria. Parabéns pelo texto.

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  3. Já comecei gostando do título. O conto é uma prosa poética sobre a beleza que há na miséria. Sim, a miséria também tem a sua poesia, um lirismo calcado na simplicidade, no libertar-se do luxo que nos afasta de sentir o pé no chão, do cheiro real das coisas. As personagens principais, menina e árvore, estão muito bem estruturadas e a autora nos transporta para os galhos generosos da farinha-seca. Ambientaçao nos transporta, as frases são bem construídas e belas. Parabéns pelo mimoso texto, beijos e sorte.

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  4. Creio que a relação entre a árvore e o conhecimento – porque ela guardava os livros em seus galhos e nichos – tem a ver com a própria constituição da árvore. Angico branco, ou farinha-seca, é uma árvore de madeira muito dura, resistente. Também é ornamental porque sua forma final como árvore adulta – fui pesquisar – é considerada bonita. Felixiana foge da construção geral de uma personagem infantil, apesar da situação de vida, porque aprende a ‘viajar’ nas páginas dos livros que junta.
    A questão final – o morro desceu, mas as duas subiram – remeteu-me a questão: o que realmente fica, no final? O amor e o conhecimento como fundamentos e ferramentas para sobreviver, ser mais humano?
    Um grande e carinhoso abraço!

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  5. O simbolismo mais conhecido da árvore é de ícone da vida, representando a perpétua evolução, sempre em ascensão vertical, subindo em direção ao céu. Nesse conto a Árvore da Vida está presente com toda a sua carga de significação: servia de esconderijo para a protagonista, guardava os livros e, ao final, libertou-a — enquanto todos afundavam na lama, Felixiana — aquela que é mais feliz — vivenciou uma ascensão. A modificação da gravura ficou linda, o título muito sugestivo e tudo bem amarrado ao conflito criado.

    A ideia de libertação, também está no pseudônimo. Dandara foi esposa de Zumbi e, como ele, lutou com armas pelos negros. Ela tinha objetivos que iam às raízes do problema e, sobretudo, não se encaixava nos padrões de gênero que ainda hoje são impostos às mulheres, assim como a menina não se encaixava no seu meio.

    O texto tem estrutura de um conto infantil, que auxilia as crianças a se desenvolverem em todos os sentidos, propicia uma forma lúdica de aprender, estimula o desenvolvimento psicológico, cultural e emocional, traz personagens exemplares, passa costumes e valores. A criatividade também é estimulada, ao desenvolver a imaginação e encarar os medos — Felixiana é esta criança.

    Essas características deram à narrativa um caráter atemporal e universal, concedendo a ela uma reatualização permanente, pois a história dessa menina poderia acontecer em qualquer lugar e tempo.

    A trama tem ritmo prazeroso. Um tema quase clichê foi arejado aqui, trouxe reflexões e linguagem inspirada, provocou afeto, repassou emoções, de forma que lemos e vemos, e torcemos para que aquele final aberto não seja a libertação da menina pela morte, que a lama seja apenas uma alegoria.

    Parabéns pelo texto comovente. Beijos.

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  6. A imagem trabalhada ficou linda e muito significativa. O conto transborda em poesia e metáforas que traduzem a ânsia por conhecimento de Felixiana. Felix significa feliz, então ela da sua maneira, era feliz. A sua relação com a árvore me fez pensar em Meu pé de Laranja Lima. A inocência da menina que se nega a aceitar o desprezo dos outros pelos livros. Ao mesmo tempo, ela compreende que a luta pela sobrevivência estipula outras prioridades.
    Quando o mundo desaba e o morro desce, ela se mantém firme, protegida pelo abraço do saber, da imaginação que a consola em um momento tão difícil. Acredito que a metáfora de árvore e menina subindo ao invés de descer signifique que Felixiana acabou morrendo, ou se transportou para um mundo particular em outro plano.
    Enfim, texto muito bem escrito, em tom de prosa poética, explorando elementos que criam imagens capazes de nos levar a um universo de beleza impensável dentro de uma realidade tão dura.
    Parabéns!

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  7. Olá, querida Contista.

    Tudo bem?

    “O morro desceu e elas subiram”. Esse final é primoroso, humano, cheio de dor e beleza.

    Gostei do conto desde o momento em que bati o olho na imagem (re)transformada com maestria. Isso mostra dedicação, carinho, um trabalho comprometido com o todo. O que, aliás, a maioria por aqui fez. Muito legal.

    O conto em si, traz várias questões, a do conhecimento, a da humanidade, que já citei e, para mim, a da perpetuação das histórias, da memória, da lembrança da cultura daquele local, através da árvore, como uma espécie de árvore do conhecimento e da vida, como no gênesis, só que com livros, no lugar de maçãs.

    Um trabalho realmente muito belo.
    Parabéns.

    Juntas, somos fortes e livres para criar e aprender a cada dia mais, neste nosso ofício de escritoras.
    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Talentosa contista,

    Aaaaaaaa que coisa linda… tão lindo, tão bem descrito, tão fluido.
    Primeiramente, parabéns pela habilidade com a imagem e também na escolha do título.
    A premissa é belíssima, conseguimos perceber as sensações do universo que circunda Felixiana e viver o momento ápice do conto, em que o horizonte revela a tristeza dos resultados da chuva no terreno erosivo, mas Felixiana se refugia em seus sonhos, em seu mundo colorido que o interesse pela leitura lhe proporciona, no seu lar, a árvore que lhe acolhe e cuida.
    A narrativa é muito bonita.
    E eu me arrepiei ao acabar de ler, literalmente.

    Parabéns!

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  9. Olá amiga,

    Seu conto ficou um primor. O título e o nome da menina são um espetáculo à parte. A prosa poética passeou sem sobressaltos pelo cotidiano contemporâneo.

    Gosto muito de contos com viéis social, desde que resguardadas suas singularidades como aqui.
    Tem outro conto neste desafio, que também se passa em um lixão com uma menina, que também navega por essas águas turbulentas das necessidades humanas. Acho que as contistas estão trocando energias similares. Senti também muita revolta e melancolia.

    Imagem forte: Ela pulava para dentro das folhas, para perto das montanhas ou vales verdejantes, junto a praias e cais graçapés, próximo o bastante de sóis dourados, aquecida em céus azuis, e encantava-se com outras luas de pura prata que chamavam os gatos para brincar.”

    Cabe uma revisão. Percebi alguns contos em que palavras se juntam, como aqui em “Amenina”. Acho que isso vem acontecendo quando se copia do word para colocar aqui, desconfigurando o troço.

    O final aberto saiu do lugar comum. Muito bom.

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  10. A vida, muitas vezes tão dura, desenhada em palavras poéticas narram a trajetória triste(?) de Felixiana. Na escrita de Evelyn as agruras da vida tomam outra dimensão, e é possível saber da beleza que se esconde, por trás do véu da matéria, da pobreza e da doença terrena.
    Lindo, Evelyn. Beijos.

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