Existe uma teoria que suspeita o universo como uma bolha. Não o meu, não apenas, mas todos. Sim, outros, pois que para esta suposição, há tantos mundos no cosmos quanto bolhas em uma garrafa de espumante. Para ela, a tal teoria, meu universo, nada mais é que uma destas incomensuráveis e frágeis bolinhas, vagando errática, flutuando em um tipo de sopa cósmica, e densa o suficiente para que eu viva, inocente e desavisada, acreditando ser única, até o fim de minha existência. Ou melhor, até o fatal dia em que, outra dessas bolhas, entrando em rota de colisão com a vizinha mais próxima, eu, se fundirá a esta sem nem ao menos perceber que foi atingida, que desapareceu, que já não é, ou, que ainda é, mas outra, maior e totalmente diferente da original, de ambas.
Cada um dos multiversos habitantes de uma dessas estruturas flutuantes, assim pensam os cientistas, tem suas leis particulares e, cada qual se desenvolveu de modo diverso e totalmente independente dos demais. Somos únicos. Eu, a vizinha, minha bolha, as em meus pés, as demais, distintas e providencialmente protegidas por uma fina película que, talvez nem tão providencialmente, me impede de ver o que há lá, fora de mim.
Fora.
Eu andava pensando em saltos, naquele tempo em que eu vivia bem, talvez feliz em minha esfera. Em minha inocência, eu saltava e flutuava no cheiro da terra molhada da relva macia que me tocava os pés, enquanto tudo o que me interessava era o salto, e nada mais. E eu pulava e pisava a grama, pulava e pisava a grama, pulava… A cada novo salto, o prazer. A cada novo prazer, um impulso ainda maior, fazendo-me tragar o ar. Mais alto, mais alto, mais. Mais…
Mais.
Até o dia em que toquei o topo.
E parei.
Topo?
Topo?! Que coisa era aquela? Que coisa essa?
Estranha, a película elástica sobre minha cabeça era, no mínimo, o meu espanto. Aquela coisa-estranha-película-elástica me limitava o salto. Impedia que eu ultrapassasse um tipo de teto em uma redoma.
Eu estava presa.
O que me chamou a atenção, porém, o que não me saía da cabeça depois do choque, não foi a limitação, não o fato de ser surpreendida prisioneira, ainda que em uma agradável cela. Não. Ainda não. O que me tirou o sono, naquele momento de perplexidade, foi o vislumbre. A passagem súbita em um milésimo de segundos, da visão de uma sombra externa à bolha.
Naqueles dias, o que me impelia ao impulso do salto, já não era o prazer, mas a necessidade curiosa e obsessiva de rever, ainda que por uma minúscula fração de tempo, o mundo que orbitava fora do meu.
Um satélite? Seria um? Se assim fosse, um satélite a orbitar seu planeta, eu, certamente ele giraria em meu entorno e, assim, poderia ser visto de vários outros ângulos, com o tempo do girar dos dias.
Nada.
A cada novo impulso, a cada novo toque na película, a cada novo, lá estava ele. Estático, cinza e imenso. E, ao contrário de meu egóico conhecimento do universo, não era eu o centro.
Não a única.
Não mais.
Eu estranhava meu mundo, e passei a explorá-lo como se novidade, como se, e há muito tempo, não fosse a pequena redoma meu refúgio e habitat. Eu precisava saber. Conhecimento, agora, superava de agigantado modo o êxtase do prazer. Assim, caminhei resoluta ao precipício, canto de minha cela do qual eu cultivara o hábito de me guardar. A curiosidade me movia. Mais que isso, a fome. Uma fome incontrolável pelo conhecimento do todo, de mim, e, o que mais me apavorava, do lado de fora.
Fechei os olhos pronta para o salto do abismo. Agora era tudo ou nada.
Nada.
Não havia saltos, tampouco abismos, grudada à ilusão do precipício, lá estava ela, tal qual no teto. Lá estava. Em toda a parte.
Dali, grudada ao invólucro que me separava do todo, corpo solto sem o medo da queda, pude perceber que a coisa, aquela, a lua, a bola, como passei a chama-la, não se movia. Não. Nem ela, tampouco as imensas gotas que habitavam o entorno daquele céu.
Naqueles dias, eu odiava a película, a bolha, a mesma que me segurava nas mãos, criança tola e protegida, que me proporcionava o pequeno prazer de saltos e aromas de terras, era a que impedia de sair, de ser livre.
Correr.
Mas para onde?
O que, afinal, existiria lá fora? Existiria? Sim, certamente algo, no exterior, além das bolhas e mundos que eu já mapeara mentalmente, quer acordada, quer não. Sim, algo além, insistia em se manifestar em sons distorcidos e longínquos, que se pareciam, ora com sussurros e músicas, vezes outras, com o digitar seco de furiosas batidas, quase ritmadas.
Quase…
Parei.
Assim foi.
Era.
Até hoje, quando cedo. Me jogara na relva como se tem tornado hábito, quando vislumbrei minha salvação na forma de espinho. O pequeno apêndice vegetal, diminuto o suficiente para se esconder, está agora entre meus dedos, robusto o bastante para que, apertado contra a película, eu finalmente a possa estourar.
E voar.
Ou cair.
Nascer metaforicamente livre, para orbitar o meu próprio planeta, ou para criar mundos. Meus mundos. Novos e cheios de aventuras, e romances, e…
Vida.
Por que foi que nunca pensei nisso antes?
Estou pronta.
Após estourar a bolha, o que virá? O quê? Talvez eu tome um pouco da tal sopa, a cósmica, e, quem sabe, me imiscua a outra bolha, outras, tantas… Todas. Uma a uma.
Talvez eu mergulhe, inexista e suma no instante mesmo em que ganhar o espaço. Ou, ao contrário, quem sabe agora, segura, eu me transforme em um universo novo, desconhecido como aquele tal, o da teoria dos multiversos. E então, talvez aos versos, eu me transmute em ideias. E, talvez, ainda, a partir desse dia, finalmente, eu não mais habite aqui, essa folha branca de papel, mas me materialize inteira em inspiração nas mãos de uma contista.
Um metatexto que fala de nós, contistas? Cada uma em sua bolha, juntas formando um universo-multiverso. Estou numa fase super meta interpretativa… Achei o texto brilhante, leveza na forma (como a das bolhas transparentes que evoca), profundidade nas reflexões que a leitura atenta provoca. As vezes é mesmo um espinho, uma tribulação, que nos faz romper a bolha egóica de isolamento que vivemos. O que mais dizer, autora? Encantada, aqui. Parabéns pelo texto primoroso!
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Não é um conto na forma tradicional do conto: começo, meio e fim, com direito a clímax e desfecho, mais se aproxima do ensaio, mas a metáfora que a autora utiliza para falar do mundo dos autores – em sua bolha, em seu universo e que somente ao estourar seu universo, ou ao atingir o cume, eles possam vislumbrar o todo com a curiosidade que os impele aos saltos – é soberba. Uma análise que evoca belas interpretações e ótimas reflexões. Um texto engenhoso cuja linguagem bem selecionada faz-nos enxergar o verso, o avesso do ofício de escrever. Um primor.
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Existe uma experiência única quando saímos da bolha. É o vislumbre do outro e do olhar diferenciado do outro, porque ninguém é só nesse universo inigualável. Cada vez que entramos em outro universo a dimensão dele se amplia e a volta ao estado ‘normal’ se torna muito difícil. É preciso muito desprendimento viajar poe entre universos. É preciso uma coragem diferenciada e, eu diria, um ímpeto quase primário.
Seu texto é algo muito bacana de se ler e me parece bastante intimista.
Parabéns!
Um grande e carinhoso abraço!
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Nossa! Parabéns, escritora criativa e surpreendente! Não vou contar o final para não dar spoiler, mas eu o adorei! Gosto de ser enganada, e o seu conto conseguiu isso, a trama que estava indecifrável para mim, fez todo o exato sentido e ganhou beleza, fazendo brilhar a sua autora. Meus aplausos!
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ignorei o título do conto e fui me deixando levar pela imaginação. Então, desenhei todo um enredo, que vinha de gametas se unindo, óvulo e espermatozoide, fundindo-se, formando uma bolha… e essa bolha unindo a outra mais e multiplicando-se. E dentro da bolha maior, a narradora, um bebê prestes a nascer que ainda sonha com o paraíso. Bem, a minha ideia até que não destoa tanto do que quis passar a contista. Inspiração que navega em uma bolha, isolada de outras tantas, até que um espinho (desafio) rompe a película protetora e traz o risco – subida ou queda?
Conto muito bem escrito, com pausas suspeitas de tomada de fôlego de certa contista. O ritmo é bastante agradável e a narrativa flui de modo denso, mas guiado pela curiosidade que nos desperta.
Belas imagens que nos permitem viajar em nossa própria concepção de um mundo novo. Mistério tecido com as linhas coloridas de alguém muito habilidoso com as palavras.
Parabéns!
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Na simbologia das formas, o círculo traz um significado bem definido e aceito, é associado ao ponto e ambos são considerados como sinais supremos de perfeição, união e plenitude pois não tem princípio nem fim. O círculo é o símbolo universal do infinito, do universo, do todo. Conhecido, também, como “o olho fechado de Deus”, sinônimo de movimento, expansão e tempo. Representa ainda o céu, o firmamento e a ordem cósmica, é a representação simbólica da primeira manifestação divina, ou do princípio criador. Assim, simboliza o início do Universo, a união dos elementos. É a forma do paraíso e do ovo primordial. É o cosmo, o satélite, a placenta, a película plástica, o invólucro — é a bolha — que rompidos permitiram o nascer.
O texto, então, tematiza o ciclo da vida; e, acredito, que pela sugestão da imagem modificada e pelo pseudônimo, refere-se em particular ao nascimento de uma história.
Concordo com Elisa, quando fala no metatexto; com Sandra em “metáfora que a autora utiliza para falar do mundo dos autores – em sua bolha, em seu universo”, com Cláudia em “gametas se unindo, óvulo e espermatozoide fundindo-se” e com todas as comentaristas ao considerarem esta prosa poética de excelente qualidade, ao explorar as imagens temas do Desafio e do nosso blog de forma tão brilhante.
Ah! Essa construção estrutural e frasal, parágrafos curtos e reiterativos são bem típicos, hein contista? Texto bem planejado, multissignificativo, leitura extra prazerosa, mensagem rica. É um texto cheio de emoção e com uma representação psicológica fantástica – uma alegoria.
Parabéns para a Contista, tem muito talento com as palavras. Abraço.
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Olá Contista querida,
Tudo bem?
Um texto que busca romper a quarta parede e se comunicar diretamente com um leitor bem específico, cada uma das contistas escritoras desta página. É importante, entretanto que um texto, além das camadas ocultas e dos “recados” específicos, possa ser lido, entendido e sentido, pelo público leitor em geral.
Gosto muito de teorias sobre universos múltiplos, e dos mistérios do que há entre o visível e o invisível. Em minha adolescência, ue era viciada em Revista Planeta, fã de Carl Sagan… Então, este texto me lembra muito de tudo isso.
Parabéns por escrever.
Juntas, crescemos muito em nossos ofícios de escritoras.
Beijos
Paula Giannini
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Talentosa Contista,
O texto flui em movimentos limpos, leves, mas não singelos. Somos levados pelas idas e vindas dessa persona que nasceu livre, mas, ao mesmo tempo, aprisionada pela imaginação de quem a perceba e, até, pela dela mesma.
O texto é executado de uma forma brilhante, muitíssimo bem escrito, sem retoques.
Pode ser que, inicialmente, não saibamos reconhecer de quem se trata a personagem, pela alta dosagem de poesia na narrativa, mas o final nos brinda, de uma forma bem alinhavada, com o trecho que exprime que o universo em que ela habita é a folha de papel branco. Isso, alinhado ao título, “Musa”, me trouxe um sorriso contente no rosto. Tudo fez sentido, tudo se aveludou.
Entretanto, estive livre para me colocar no lugar da personagem e voar e cair e nascer e tocar a relva e…
Parabéns!
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Olá amiga, seu conto caiu como uma luva em meus desesperados dedos sobre uma tela do word em branco.
Imagem: “Naqueles dias, o que me impelia ao impulso do salto, já não era o prazer, mas a necessidade curiosa e obsessiva de rever, ainda que por uma minúscula fração de tempo, o mundo que orbitava fora do meu” – sim, estamos presas a esse vício: o mundo à nossa órbita.
Embora em uma linguagem simples, o final encantou pela identificação imediata. Foi bom reler sabendo quem era a “musa.”
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Conto que aborda o próprio conto é fantástico, ainda mais com uma linguagem singela e, ao mesmo tempo, lírica. É ótimo quando nós leitores terminamos de ler um conto desses com um sorriso satisfeito de quem leu um texto gostoso como o seu, que atiça nossa curiosidade!
Parabéns, Paula!
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