Amiga, de verdade! – Fheluany Nogueira

 

— Eee turmaa!! Voocêexxx goostaam meexxxmo doo meuuu jeito, hein?!!! – Elisa entrou no Mormaai Surf Bar, com segurança e carisma peculiares. Sentia-se candanga verdadeira, de peito e raça, como se fosse uma pioneira na construção da capital, um símbolo da força do país…

A engenheira, vinda de uma família numerosa, optou por não ter filhos, nem animais de estimação. Sua alegria, como ela mesma reiterava, estava nas amigas – como a mãe fora, era amante das festas e reuniões regadas a muito vinho ou cerveja e conversas exaltadas. Gostava da guitarra e de versos românticos. Com o grupo, tornava-se falante, contadora de casos divertidos. O modo de falar era característico: arrastava as sílabas, as palavras ficavam alongadas, salientando as vogais. Mesmo sem vê-la, era reconhecida de longe pela voz grave e fala mole.

Dentre as amizades, havia uma especial – Tate. Amigas de infância, colegas do jardim até a faculdade, foram crescendo juntas, fumaram o primeiro cigarro juntas e até namoraram dois irmãos, juntas… Agora, Tate, que continuou no Rio, veio matar as saudades. Dias de festança: iFLY Brasilia, Escape Game, Cine Drive-In, Parque de Águas Claras, UBT Escalada, Carrera Kart e, os menos ecológicos, Pier 21, Velvet Pub (“Um bar sempre animado…”), Nacional Music Hall, Victoria Haus; enfim, uma maratona. Bastante cansadas, pois as donzelas não estavam acostumados a tamanha lida. A dupla veio àquele bar, para encontrar outros amigos, um happy hour…

Chegou essa hora da noite em que mais nada poderia acontecer, exceto o imprevisível. No ponto-equilíbrio do álcool, somando disparates, despediram-se e encaminharam para o estacionamento. Foi tudo acontecendo, sem pânico, sem remorsos, como a coisa mais esperada…

— Água limpa, vida aos peixes! Água limpa, já! — Tate não soube se foi a intimidade que criou com a capital, se foi pelas conversas, deliberadamente, sobre assuntos insolúveis, botando sal em carne podre, seus e deles, ou devido a fragilidade de argumentos, e a nudez de alma, que a conduziu a ficar também sem algumas cascas, revelando-se.

— Salvem o Pontão! Vida no Riacho Fundo! — em ímpeto, a visitante seguiu a passeata. Gritava, esbravejava em favor de um direito, que se não entendia bem, acreditava, naquele momento, que valia a pena. (Protestos e indignações, nunca foram a prioridade de Tate. Aguentava calada a vida, e ainda procurava gerar um tipo de satisfação para ir trabalhar todos os dias; não assistia aos jornais mais, resolvera vendar os olhos para os defeitos do mundo.)

— Não posso resistir, venha! Sempre quis fazer isto, nunca tive tempo, nem coragem, vamos? — Elisa quis suspeitar que a amiga poderia estar tendo algum surto. O álcool teria alcançado o ponto em que nada mais importa? Levou a mão na bolsa, guardou as chaves do carro, saiu em disparada atrás de Tate.

Era muita gente com roupas e saídas de praia (muito estranho, em Brasília), cornetas, bandeirolas, fogos de artifício. Elisa viu que teria trabalho, não enxergava mais Tate perdida naquela doideira de gente que queria chamar a atenção para a causa #LagoLimpo. Sentiu que a intensidade da consciência daquele grupo era tamanha que passou a ter vontade de gritar também, pedir solução. Afinal, vinha andando à beira do Lago Sul desde que decidira viver ali. Lembrou da areia, fezes de animais, até de gente, latinhas de refrigerante e cerveja, aves doentes comendo restos, diesel em meio à água. Judiação.

Elisa entrou em transe, caiu na frequência — bem-vinda ao universo das contestações… Entrou no clamor, tirou a jaqueta, amarrou-a na cintura, jogou o sapato longe, dobrou as calças, esqueceu Tate.

Depois de muito manifesto, sentada no chão, exausta, esquecida, inclusive, de que saíra para um encontro de amigos, olha para a pequena multidão, um aglomerado que via longe, que se dispersava.  Era, já, tarde da noite, então, como que arrebatada, percebeu Tate, nestas alturas, somente de sutiã e calcinha, descalça. O cabelo, amarrado todo para cima, com um embornal de couro dependurado, totalmente contaminada pelo frenesi da manifestação: quatro jovens do grupo, um pouco mais malucos do que ela, pegavam-na pelos braços, lançando-a para o alto, como criança no pula-pula…

Elisa gritou pela amiga! Deu alguns passos diminutos em volta dos jovens, que sacudiam Tate freneticamente para o alto. A moçada, quando ouviu aquele gritinho grave, na medida que olharam para ver de onde vinha a voz, soltaram a moça, que caiu, esparramando-se ao chão. O grupo saiu em disparate, sem ao menos olhar para trás, tomaram rumo do canteiro central da avenida, paralela ao lago, desaparecendo por entre as pessoas no calçadão.

Tate caiu meio que desacordada, suja, com a blusa amarrada na cabeça; parecia um pirata da modernidade.

— SOU MULHER VALENTE. NÃO TENHO MEDO DE NADA! CANDANGO! POLÍCIA! PODE VIR QUEM QUISER!! — Tate radicalizou. Teria ingerido alguma droga enquanto a perdera de vista? — Elisa se indagava, chacoalhando desesperadamente o corpo suado da amiga.

Um policial olhava para as duas, na tentativa de reconhecer quem estava assim alterado. Deu alguns passos adiante pensando que não havia problemas ali…

— VIRAM O MEGANHA! SÓ OLHOU E FOI EMBORA. NINGUÉM ME PRENDE. SOU A MAIORAL! — enfrentava a polícia, exaltada, em sua imaginação. Elisa calada só ouvia a companheira. Xingatórios e atrevimentos em crescente. O militar não teve como não intervir para manter o controle.

— Vamos, moça. Vamos descansar na cela. Está perturbando a ordem pública. Está, quase nua… Está presa…

Elisa ia ficando para trás. Inconformada observando sua amiga levado pelos policias:

— VOOCÊES PREENDEM É EESSAS COITAADINHAS. QUEERO VEER PREENDER É EEU. SOOU DE FAAMÍLIAA INFLUUEENTE, POODEROOSA. QUEERO VEER É PREENDER EEU!!!

O sargento não teve dúvidas! Voltou o trecho até a outra arruaceira:

— Vamos lá, valentona de família importante. Vai também dormir no xilindró para se acalmar…

— EU NUUM FALEI, TAATEE! OONDEE VOOCÊ PUUSER SEEUS PÉÉS EEU POONHO OS MEEUS JUUNTOOS — com os olhinhos apertados, como criança que acaba de tentar salvar o bichano de água quente, a heroína falou para a amiga, ao se aproximar.

— Sargento! Sargento! Fico responsável por elas, são minhas conhecidas… Não sei o que houve, mas são moças educadas, trabalhadoras e estavam comigo no bar… Que preciso fazer para que o senhor as libere? — Pronto! As comparsas tiveram sorte. Tudo foi acertado e as, incontestavelmente, amigas foram levadas para casa, não antes de um café forte e muita água.

 

Passada a ressaca e minorada a vergonha, Tate se despediu de Elisa. Conversara com o marido pelo celular, mas nada lhe contou. Não saberia que explicações dar pelo ousado comportamento. Já no aeroporto do Rio, quando os olhos se encontraram, foram eles que levaram a primeira impressão: Beto havia descoberto a malfadada aventura. Pensou rapidamente: como?

— Que história é esta de sair de sutiã e calcinha em manifestação pela rua, defendendo causa alheia? Perdeu o Juízo? Pensei até que era miragem. — o olhar circunspecto, havia adiantado aquele atropelo das palavras, que cravaram certeiramente no juízo de Tate. —  Está no You Tube, não um vídeo, uma dúzia! Você toda serelepe, com os olhos até fechados, gritando como louca “Pontão limpo, já!”, no meio daquela corja de desorientados. Não sabe que o mundo perdeu os freios, que não tem jeito de esconder nada? Acorda, Tate! Acorda! Pura libertinagem de quem não tem o que fazer, sair para as ruas arrumando desculpas para o vandalismo, para a pouca vergonha, para o despudoramento. O que vai dizer para os nossos filhos?

— Não tenho desculpa! Pode pedir divórcio. Acham que o pessoal me deu alguma droga. Só pode ser — a mulher ajeitou os óculos, deu uma fungada e fez beicinho para chorar!

— O pessoal da empresa ligou aqui, pareciam querer lhe falar com urgência — o homem deu mais uma bufada profunda de desaprovação e começou a andar para a saída, resmungando palavras baixinho. Tate o seguiu cabisbaixa, sabia que seria perdoada… Eles se amavam. E… pensou em Elisa, que não lhe cobrou nenhuma explicação e ia ser presa com ela. Isso sim era uma amizade perfeita.

 

 

 

 

 

 

3 comentários em “Amiga, de verdade! – Fheluany Nogueira

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  1. Eu ri! ahahaha Que coisa mais maluca. Onde já se viu “sair de sutiã e calcinha em manifestação pela rua, defendendo causa alheia”? Imaginei as cenas todas. Um conto leve e divertido e no fim das contas amigas são para essas coisas.
    Beijos e abraços carinhosos!

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  2. Parabéns a ambas! Texto muito bem escrito e divertido sobre a Elisa. Vcs são mesmo duas figuras, ótimas escritoras, queridas, finas e junto como resto do grupo trazem textos excelentes. Beijoxxxx

    Curtido por 1 pessoa

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