O Pedido – Neusa Fontolan

 

Eu sempre tive grande veneração e fascínio pelas forças da natureza. Amo os elementos e suas demonstrações de poder. Claro que tenho medo, como qualquer ser humano com instinto de sobrevivência. Além do medo sinto arrebatamento e respeito, e como não respeitar? Quem é que pode parar um vulcão ativo, um ciclone, um terremoto ou um tsunami? O que para a maioria das pessoas é uma tragédia, para mim é uma coisa linda, uma pequena demonstração do grande poder desses Deuses. ‘Deusa Terra’ – ‘Deus do Ar’ – ‘Deusa D’água’ – ‘Deus do Fogo’. É assim que os chamo, são os meus Deuses.

Então, vamos a minha pequena história.

Morava no litoral e sempre que me aproximava do mar eu cumprimentava a minha Deusa. “Bom dia, minha Deusa, está linda como sempre”. Eu conversava com ela o tempo todo que ficava no raso molhando os pés, e ela mandava ondas um pouco mais fortes para me molhar inteira. Como se estivesse brincando comigo ou querendo me levar para seu mundo. Nunca entro mar adentro, ainda sou humana e o medo está presente.

Ficava atenta para saber se tinha alguma ressaca ou um mar revolto para que eu pudesse ir apreciar.

Certo dia de chuva, no outono, fiquei sabendo que o mar estava agitado. Com essa informação eu também fiquei agitada. Como chovia muito eu não conseguia sair, mas a tarde a chuva diminuiu e lá fui com meu guarda-chuva. Chegando no calçadão sentei-me em um banco, molhado mesmo, de frente para o mar. Não se via ninguém por perto, só a maluca aqui sairia na chuva para admirar um mar revolto.

Aquilo estava uma maravilha! Eram picos, enormes, de água azul que subiam e se quebravam em espuma prata! Fiquei admirando encantada, eu via como ondinas saltando em uma dança. Era uma festa no mar. Ri para minha Deusa, conversei com ela e agradeci pela beleza que ela me permitia ver.

Um pouco mais tarde, já se aproximando o crepúsculo, apareceram dois sujeitos, um homem vestindo uma capa de chuva e um rapaz vestindo trajes de surfista. Cada um deles empurrando uma bicicleta e pararam na rampa que dava acesso para a areia bem em frente a mim. Acho que não me viram e se viram não deram atenção, eu não era ninguém. No bagageiro de uma das bicicletas tinha um grande pacote, mais ou menos com um metro e vinte de comprimento e um metro de circunferência,  muito bem embalado e com fita crepe por toda volta.

Eles ficaram parados olhando para o mar, até que o rapaz com roupa de surfista falou.

— Não vai dar pra jogar no fundo.

Não ouvi o que o homem respondeu, mesmo porque aquilo mexeu com todas minhas emoções! Eles estavam planejando jogar aquele pacote no mar? Minha intuição foi ativada. Quem é que vem a praia, debaixo de chuva, com um mar nada calmo para desovar um pacote? Boa coisa não era! Meu coração acelerou, deu-me uma grande agonia, toda minha alegria se foi.

— Eu sei que você me pagou, mas isso aqui está louco! Não vai dar – falou o rapaz, o outro respondeu, mas continuei sem ouvir. E os dois desceram a rampa e foram para perto do mar.

Eu não sabia o que fazer! Enquanto os observava tirando o pacote de cima da bicicleta e os dois entravam na água carregando-o, coloquei as mãos no rosto e comecei a pedir. “Por favor, por favor, minha Deusa, se esses dois estiverem fazendo coisa errada, não deixe, tome uma atitude! Segure-os!” – Nem sei quantas vezes eu repeti, ou as palavras exatas que pronunciei, eu implorava mesmo! Não tirei os olhos dos dois. Vi-os carregarem o pacote e o soltarem em uma forte onda. Tentavam empurrar o pacote, que boiava, mais para o fundo, mas o mar não deixava. Notei o rapaz virar de costas e começar a voltar, mas o homem estava inconformado, queria que o pacote fosse para alto mar e tentou novamente empurrá-lo. Foi nesse momento que saltei do banco com a cena que só eu enxerguei, o rapaz estava de costas e nada viu. Dois seres, enormes, feitos de água, silhueta feminina, se elevaram, cada uma de um lado do homem, levantaram suas mãos e empurraram o homem pela cabeça para dentro do mar.

Gelei! Mas continuei a observar, quem sabe meus olhos tinham me enganado.

O rapaz chegou perto das bicicletas e virou-se para procurar o homem, olhava com atenção, mas nada. Ainda ficou algum tempo olhando, porém o homem tinha sumido e também o pacote. Não se desesperou, calmamente apoiou as bicicletas, cada uma de um lado do corpo e foi embora, empurrando-as.

Agoniada, voltei para casa. Não conseguia pensar, andava de um lado para outro sem acreditar no que tinha visto.

Tudo nessa vida tem um preço, e sabia que o meu seria cobrado. Passei uma semana trancada em casa e sem conseguir dormir, quando fechava os olhos via seres (com aparência completamente humana e bonitos) que riam com deboche do meu desespero, mesmo com todas as luzes acesas.

Não estou pedindo para acreditarem, mas aconteceu comigo.

 

 

 

 

 

17 comentários em “O Pedido – Neusa Fontolan

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  1. Um relato do extraordinário na vida da personagem. Uma história instigante – quem estava dentro do pacote? o que aconteceu com o rapaz que foi embora? qual é a ligação da personagem com as ondinas? em que momento aconteceu essa ligação?
    Esse conto é, no meu entender, parte de uma história maior porque o mistério e a fantasia se misturaram para compor nosso imaginário agora.

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  2. “Tudo nessa vida tem um preço, e sabia que o meu seria cobrado”. Não acho que seu preço será grande, afinal, você não fez nada de errado, só quis proteger sua Deusa. Quem sabe você não vá viver com ela e ajudá-la a proteger a natureza? Gostei! ABS ❤ ❤

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  3. Deu-me calafrios só de imaginar o que tinha dentro desse pacote. Se a Deusa D’água achou justo levar o Homem e poupar o rapaz, o homem merecia. O rapaz foi apenas um surfista que foi pago para desovar um pacote, ele nem devia saber o que tinha dentro.

    gostei do conto.

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  4. Fiquei a pensar no que iria dentro do pacote, mas devia ser algo mau, uma vez que as ondinas vieram aplicar o castigo ao homem. Além disso fiquei-lhe grata por motivos pessoais: eu pensava que o meu conto estivesse excessivamente fora do chamado fantástico, mas se estiver já tem companhia, também achei que o seu pouco entrou nesse domínio e isso para mim foi agradável. Um abraço.

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  5. Conto que se baseou no elemental das águas – ondinas. Muito interessante a criação das imagens no mar, seres que atenderam ao pedido da narradora e ao mesmo tempo foram a causa do seu pavor. Narrativa que se desenrola como uma “contação de causo”, o que torna o seu ritmo ágil e facilita muito a leitura. Quando me dei conta, o conto já tinha acabado e eu cheia de perguntas aqui. O que havia no pacote? Para onde foi o tal homem? E o rapaz, nem se incomodou com o desaparecimento do outro?
    Parabéns, prendeu a minha atenção do começo ao fim.

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  6. Olá Autora!Como disse a Cláudia, seu conto é quase um causo, acredite ou não, aconteceu comigo…rsrsrsr Isso instiga muito o leitor, porque o faz imaginar se aconteceu com a autora ou só com a personagem… depois conte pra gente 😉
    Eu gostei bastante, é ágil, fluiu muito bem, não foi uma leitura cansativa, foi o exato retrato de algo maior, cada um que pense o que quiser, que resolva os mistérios como preferir! Muito bom! Parabéns!

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  7. Querida Contista,

    Mais uma conto lido e mais uma vez quero dizer o quanto estou feliz por participar desta dinâmica com todas vocês.

    Vamos ao conto.

    Adoro contos que falam de mar. Morei 2 anos em Itanhaém, à beira mar, e a experiência, para mim, foi incrível. Então, entendo bem sobre a sensação de mares revoltosos, cinzas, azuis, ressacas, calmarias… O mar me faz bem demais. A mim e para minha escrita. A proximidade com a água me inspira e, já que não tenho mais o mar, tenho muitas ideias no banho. rsrsrs

    Seu conto traz um segredo não revelado. Aqui, há a caixa, há aquilo que a protagonista vê, e, fica a cargo do leitor decidir sobre o conteúdo da caixa. Este trabalho me lembrou um conto da Lígia Fagundes Telles, de que não me recordo o título, O Dedo, acho. Em situação semelhante, a protagonista encontra um dedo com um anel na praia.

    Há muitas formas de se utilizar um segredo na escrita, contar ao leitor, mas não ao protagonista, esconder do leitor e depois revelar, ou, desta forma como você fez, deixar o segredo mantido, mesmo após a leitura. Gostei de sua opção. Na maioria das vezes, nossa imaginação pode ser bem mais interessante que aquilo que se detalha no papel. Não à toa, os livros são sempre mais interessantes para quem lê e depois assiste, não é?

    Parabéns, Contista.

    Espero que este seja mais um de muitos e muitos que compartilharemos.

    Beijos
    Paula Giannini

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  8. A narrativa tem um tom policial e o foco de primeira pessoa deixa a impressão de que o narrador é testemunha de um crime, além de dar certa credibilidade ao caso apresentado. O pacote pode bem ser um corpo e ser desovado no mar.

    As Ondinas funcionam na essência invisível e espiritual; como as marés, purificam as águas da Terra e as águas do corpo emocional de todas as almas. A água é o elemento da emoção, da intuição, além de ser essencial à vida e a narrativa trabalhou nessa mensagem com clareza e fluidez.

    “As Forças da Natureza”, de Clara Nunes traz a mesma mensagem do conto: “Quando o sol, / se derramar em toda a sua essência, / desafiando o poder da ciência, pra combater o mal. / E o mar, /com suas águas bravias, levar consigo o pó dos nosso dias, vai ser um bom sinal.”

    Parabéns pela ideia e construção do emocionante texto. Beijos. ❤❤

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  9. Um conto cheio de mistérios que deixa o leitor com muitas perguntas sem resposta. O que havia no pacote? Qual a relação do homem e do surfista com ele? O que teria sido o fenômeno que levou o homem e pacote para o fundo do mar? O que vai acontecer com a narradora-personagem? Esse recurso do mistério que persiste sem solução para o leitor após o térrmino da narrativa realista mas com apelo ao fantástico, aproximou seu conto do realismo maravilhoso. Gostei dessa sua saída para a tarefa tão difícil para algumas de nós (eu inclusive) de produzir uma texto de fantasia. Parabéns pelo trabalho! Beijos.

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  10. O tom intimista do texto, o mistério que envolve o pacote e os homens, a voz em primeira pessoa, tudo faz a história fluir. O narrador vai contar um caso, algo que ele presenciou, e já nos envolve a partir daí. O mistério do pacote e da relação entre os dois homens persiste até o fim, não interessa ao leitor, assim como não interessa ao protagonista. Só interessa a crendice nos deuses da natureza, sua culpa e o preço que vai ter de pagar mais cedo ou mais tarde. “Tudo nessa vida tem um preço, e sabia que o meu seria cobrado”. Será por ter permitido que o pacote fosse lançado ao mar como um sacrilégio a esse altar tão puro? Fica a pergunta. E o mistério. Muito bom, cativou a atenção.

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  11. Olá, contista!
    Conto jovial, uma menina e seu amor pelo mar e pela Deusa presencia um fato sobrenatural, daqueles que a gente ouve falar, e dá arrepio.
    A deusa pune um homem cruel (imaginei que havia um cãozinho no embrulho ) , mostrando que suas águas não são bagunça ☺
    Muito bom e direto. Gostei.
    Obs: uma revisão e ficará perfeito.
    Bjokas

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  12. Querida Contista!

    Obrigada por me propiciar mais uma leitura de um conto teu!
    Esse desafio foi ótimo, né!? Adentramos em um mundo verdadeiramente fantástico!

    Sobre o teu conto, adorei a atmosfera de desabafo sobre uma experiência real da personagem-narradora. Ficou muito interessante porque a dúvida do leitor é acreditar ou não na história dela, que pode ser fruto de medo, arrependimento ou um simples sonho.

    Minha crítica, se permite, é a de que pode ser feita uma revisão no conto quanto à pontuação e alguns acentos. Nada demais.

    Parabéns!

    Grande beijo,
    Sabrina

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  13. Olá,

    Um conto com uma pegada um tanto ingenua, no caso a personagem tem essa aura um pouco infantil acredito se tratar de uma menina. O conto instiga e o segredo do pacote não é revelado, mas dado ao fato de quem as ondinas puniram o homem boa coisa não devia ser. A narrativa é linear, bem simples e sem entraves. O texto curtinho foi bom nesse caso, pois o conto parece um ” causo” algo assim. rs

    Parabéns.

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  14. Menina do céu! Ou, nesse caso, menina da água! Isso não se faz com uma leitora curiosa como eu, hahaha, vou tecer mil hipóteses sobre o que tinha naquele pacote. Ou será que você faria o favor de desenvolver mais essa história com jeitinho de causo pra nós, hã? Quanto suspense! Parabéns, no mais só seria bom dar uma revisada.

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  15. Fortíssimo!
    Não dá pra não ficar agoniada!
    Mas que cena linda dos seres se levantando da agua!!
    Apesar da tragicidade é um conto belíssimo de comunhão da narradora com as forças da Natureza e isso por si só é enriquecedor.
    Parabéns, Contista!

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  16. Vamos tentar desvendar este mistério? Vocês podem acreditar ou não, mas este episódio se deu realmente comigo. Ou será que é fruto da imaginação de uma velha?
    Com exceção das ondinas, que eu coloquei só para se encaixar no tema, tudo foi real. O que eu vi não foi ondinas e sim duas ondas enormes parecidas com mãos, elas se levantaram uma de cada lado do homem, desafiando toda lógica, e o afundaram. E sim, eu converso com meus Deuses, sempre. Talvez eu seja mesmo uma menininha no corpo de uma velha. A todas aquelas que me chamaram de infantil, vou dizer que adorei. Pena que não sei colocar figurinhas aqui, senão ia colocar um monte agora kkkkkk.
    Aquele pacote tinha algo que o homem queria que sumisse, ninguém arriscaria a própria vida, entrando num mar que era um convite para a morte, só para se livrar de algo que não fosse extremamente acusador. Não pode ser lixo e nem mesmo um animal, pelo tamanho do pacote e seu formato, nada me tira da cabeça que era o corpo de uma criança.
    Pelo que eu vi e deduzi, o surfista não sabia o que era, ele foi apenas alguém que deve ter sido pago pelo homem para fazer aquilo. Quanto a indiferença dele com o sumiço do homem, ele não devia ter ligação com o fulano e está acostumado com os desaparecimentos no mar.
    E sim, eu fiquei mal, muito mal, mas não pelas razões que pensam e sim por me sentir responsável pela vida de um ser humano, mesmo ele sendo a pior escória da face da terra.
    Eu tinha aberto uma porta e depois paguei por isso.
    Passei uma semana vendo seres rindo do meu desespero, fiz e depois não aguentei e eles achavam graça nisso.
    Mas o tempo passa e você começa a pensar melhor. Hoje eu penso que foi merecido. se minha Deusa atendeu o meu pedido aquele homem merecia mesmo.
    Bem meninas, obrigada por lerem meu “conto”, e se tiverem alguma dúvida é só perguntarem.
    Beijos a todas.

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  17. História maravilhosa, Neusa! Que louco! Ainda mais sabendo que algo muito parecido com o descrito aconteceu mesmo com vc, amiga. E que perigo! Imagina se os dois caras tivessem-na visto? Super instigante, bem escrita e envolvente. Eu só queria saber o que havia dentro do embrulho, mulher, mas nunca saberemos, né? Sumiu no mar junto com o sujeito. Adorei, viu? Parabéns! Neste desafio vc veio para arrasar, beijos.

    Curtido por 1 pessoa

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