A menina olhou-a longamente nos olhos, sem problema, podia fazer aquele momento durar quanto tempo quisesse, o comando era seu. Por fim, a luzinha (chamemos-lhe assim) não aguentou mais e, ganhando autonomia, quebrou o silêncio: “por que me olhas assim?”; “Porque tento avaliar a tua essência: se o virtual pode ser realidade, se existes ou se és um personagem que eu crio, se és onda ou frequência, física ou ficção e essas reflexões despertam-me outras e fixar em ti o meu olhar permite-me continuar a alimentá-las e estou a gostar”.
Decidiu continuar: qual direção escolher? “– Oeste, sem dúvida.” Navegaria aquele obstáculo em forma de rio dentro de um caldeirão e aquela luzinha que emergia das águas, acompanhá-la-ia com a dança singular que usava para se mover, levitando naturalmente sobre as águas.
A ninfa seria a sua companhia e ajudaria a iluminar o percurso, naquele crepúsculo que se adivinhava desconhecido e propenso a surpresas. Decidiu dar início a uma amizade e convidou-a para esse papel, “… por isso escolho-te para amiga e companheira, vamos?”. A ninfa deu três piruetas luminosas com um grande sorriso e bateu palmas de contentamento.
Partiram. A menina, com a cabecita de fora, as pernitas encolhidas e as costas nas paredes do caldeirão e a ninfa num bruxulear azul e prata que induzia um sentimento de calmaria e paz que não poderia saber-lhe melhor, após as aventuras que acabara de viver e antes das dificuldades que sabia que ainda por aí vinham. A ninfa exalava um suave perfume a rosas e maçãs frescas e da floresta em redor desprendia-se um vago odor a mirra e percebendo os cheiros, a menina olhou os braços e viu os riscos desenhados pelas arranhadelas recentes, algumas ainda sangrando um pouco, recordou-se do que aprendera com a professora Áurea, sobre as propriedades medicinais da mirra e puxou os braços para fora do caldeirão, abrindo-os ao largo e expondo-os àquela brisa curadora.
Tal como tudo o mais, também esta viagem poderia durar o quanto a menina quisesse, o seu livre-arbítrio era total. Podia mudar fosse o que fosse a todo o tempo, bastava optar, algo tão simples quanto um mero clique. A menina decidiu que a viagem seria longa e calma, queria mesmo conhecer melhor aquela ninfa, conversar com ela, desfrutar o momento. Pensou que deveria dar-lhe um nome, sabia que era uma efidríade, mas isso é espécie, não nome; ela própria era humana, mas não gostaria ser tratada assim, queria ser chamada pelo seu nome e além disso não se pode ter amigos sem nome, os amigos têm sempre nome, têm tanto nome que basta ouvi-lo ou lê-lo para pensar no amigo e sentir logo uma batida diferente no coração. A ninfa precisava de nome, estava decidido. Lembrou-se dos nomes mitológicos mais comuns, mas sentiu o imenso peso que todos eles carregavam com as histórias mirabolantes a que estavam associados e a sua imensa diversidade de atributos, enquanto a sua pequena amiga luminosa precisava de um nome leve como ela. Pensou um pouco, fez uma pesquisa rápida na net e optou por Irene. Sim, ficaria Irene que é um nome de fada de outono, a estação da nostalgia e muito adequado a esta sua pequena amiga.
Irene revelou-se uma conversadora inteligente, sensível, atenta, animada, com todas as qualidades que a menina poderia desejar naquele momento. A conversa teve o efeito de um bálsamo e sem nem dar por isso Ana (assim era o nome da menina) deu por si a falar dos seus sentimentos, a explorar as suas emoções, a percorrer o seu mapa interior, falando de si, de amor, daqueles que ama e dos que amou, dos que ainda estão e dos que já partiram mas não deixaram de estar, família, amigos, colegas, conquistas e perdas, sucessos e arrependimentos, sonhos que se cumpriram e outros que não. Mas falaram de muitos mais assuntos, uns banais, outros sérios, a viagem foi prazerosa e Ana não sentia desejo de desembarcar e continuar a demanda que a trouxera até àquele momento. Irene pressentiu uma certa inquietação, sabia que Ana caminhava para a morte (sabia que era assim com todos os humanos) e quis agradecer-lhe pela importância e papel que lhe dera oferecendo-lhe uma maçã de ouro trazida do Jardim das Hespérides e que lhe conferiria a imortalidade. Ana não queria ser imortal, só desejava viver mais tempo, desejava isso todos os dias e sabia que iria continuar a desejá-lo sempre, mas a imortalidade não. Tentou explicar, mas não era necessário, Irene intuiu, percebeu que é o amor que mantém vivos os humanos e que Ana não desejaria sobreviver a todos quantos ama e amará ainda, mas a sua alma de fada prevaleceu à sua compreensão e insistiu: “Não a comas, então, mas leva-a contigo como um amuleto e para te lembrares de mim.” – Ana aceitou.
Irene tinha todo o tempo do mundo, mas Ana não, só tinha o dela e precisava terminar a viagem para sair do caldeirão e seguir rumo ao próximo nível. Olhou as horas no cantinho inferior direito do ecrã, “meu deus! Que tarde! preciso desligar. Que pena, estava a gostar,” – suspirou resignada “mas tenho mesmo de ir dormir. Chega por hoje, amanhã há mais, não tem importância, é só um jogo de computador.
Não resistiu a não se despedir da ninfa, não teve coragem para sair sem dizer nada, mesmo sabendo intelectualmente que ao fechar o jogo este simplesmente acaba, não tem depois “Tenho de ir, até amanhã.” – tinha um sorriso no rosto. A ninfa ainda perguntou, nesse último momento de vida, em mais um vislumbre de identidade própria: — Que idade tens? “8 anos”, respondeu a menina, sorrindo agora para si mesma com a pequena mentira que o seu avatar acabara de dizer. Afinal, que diferença faz a uma criatura virtual, que tenha omitido o cinco antes do oito?
Adorei! Não é um conto fantástico onde a fantasia corre solta. A fantasia aqui é aquela que acontece a muitas de nós com o tempo, quando criamos mundos fantásticos para nosso prazer.
Amei seu conto.
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Um encontro entre a realidade e a fantasia, entre o novo e o velho. Um enredo envolvente traduzindo a magia da vida. Caminhos se cruzando e a possibilidade de um retorno, de novas construções a partir dele. Ao meu ver, tradução significativa da vida.
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Gostei muito. O conto é leve, reflexivo e não segue um clichê para falar da fantasia, isso me surpreendeu.
É doce, faz lembrar da infância, dessa capacidade de sonhar inerente aos inocentes.
Parabéns.
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Olá Menina, que fofo o seu conto!! Amei!! Uma mulher com 58 anos ainda é uma menina se assim manter sua alma! A fantasia, seja ela imaginária, virtual, produzida por livros, filmes e séries servem para alegrar a alma cansada e sofrida com a árida realidade. Ótimo uso das palavras, e perfeita capacidade de dar a voz infantil a personagem, imaginei mesmo que se tratava de uma criança! Muito bom! Parabéns!!
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Olá, Menina!
Demorei um pouco pra entender a história em si. Mas quando ela se esclarece sobretudo no final tudo fica encantador.
A menina joga um jogo online, onde ela é um avatar e vive aventuras… e esse avatar ganha vida enquanto jogam, elas conversam. Desculpe se essa não for a interpretação correta. rsrs
Gostei do texto, o final é doce. A fantasia aqui é diferenciada.
Parabéns.
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Um mise en abyme inovador onde vemos a personagem, seu avatar e o reflexo das duas na perspectiva da ninfa virtual. Na minha leitura, transpareceu certa reflexão sobre o processo de produzir o texto para esse desafio nos trechos em que fala da busca na internet do nome e das propriedades da ninfa. Histórias dentro de histórias, processo criativo e enredo entrelaçados. Um conto muito inteligente, brilhante, eu diria, amiga Contista. Parabéns! Uma delícia de leitura!
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Muito interessante o seu conto! A princípio, tive uma ideia bem diferente do que viria como enredo. Imaginei mesmo uma menina ganhando uma nova amiga, uma efidríade, uma fada, chamada Irene (que significa “paz”). No final da leitura, percebi que se tratava de um jogo de computador, e o elemento fantástico era um avatar. Um mergulho na fantasia entre o real e o virtual, a mulher madura(58 anos) e a menina(8 anos), que afinal são a mesma pessoa, uma não exclui a outra. Também me sinto assim muitas vezes. Parabéns pela narrativa!
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Querida Contista,
Este é o último conto que leio em nossa dinâmica. Que lindo ver o quanto cada uma de nós se esforçou para fazer parte desta deliciosa brincadeira.
Vamos ao conto.
Haverá algo mais próximo ao que chamamos de fantasia que o mundo virtual? Alie-se isso à imaginação humana e os limites serão infinitos.
Gostei demais de seu conto. Ele fala de não envelhecer, não efetivamente, não em nossa capacidade de criar o lúdico, e, traz uma pitada da solidão doída necessária a um bom texto. Quem é a amiga da personagem? Uma inteligência artificial que “morre” ao se desligar o jogo. Que belo paradoxo para as nossas próprias vidas, que, igualmente se acabam em um piscar ou, quiçá, em um apertar de botões, onde um jogador celestial, talvez brinque conosco.
Se havia aqui uma dificuldade para trabalhar com o tema fantasia, creia-me, a autora se superou com maestria.
Parabéns, Contista.
Desejo que este seja apenas mais um de dezenas de novos textos que virão.
Beijos
Paula Giannini
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Criar seu avatar, fazer novos amigos e jogar em divertidos mundos virtuais! O mundo virtual criado no conto possui caráter lúdico, com um ambiente imersivo, nos sentidos literal (a água) e figurado, que permite a interação dos seus usuários através de avatares.
Avatar é uma manifestação corporal de um ser imortal segundo a religião hindu; em informática, é um cibercorpo inteiramente digital. No texto, parece-me que tem os dois sentidos, pois a representação da protagonista, de 58 anos, busca atender à imaginação, ao que ela sente e quer se sentir — uma menina de oito anos, que vai vencendo o envelhecimento. E a ninfa, é claro. São personagens simpáticas e bem construídas.
Uma escrita poética, muito agradável de ler. A trama é simples, com fantasia diferenciada que cativa e emociona o público.
Parabéns pelo bom trabalho. Gostei demais das narrativas encaixadas e, assim, a função metalinguística predominando no texto. Beijos. ❤🌺
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Um conto magistral. O elemento fantástico que inicia o texto – e que nos causa um estranhamento no início – reverte-se depois, e daí partimos para as nuances do texto. É a menina que detém o controle nesse universo mágico, num revés magnífico. Somente no sonho, ninfa e menina vigoram contra a morte, unidas contra a realidade cruel que se dá ao final do jogo, quando a ninfa morre. É a luzinha que as iluminam, é a fantasia que suporta a realidade da vida.
Parabéns pelo belo conto!
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Olá. Um conto bem interessante, que mistura a realidade com a fantasia dos tempos modernos. Nada melhor do que se fazer de manina e, as vezes, se perder num mundo imaginário. Ótimo!! Abraços.
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Querida Contista!
Obrigada por me propiciar mais uma leitura de um conto teu!
Esse desafio foi ótimo, né!? Adentramos em um mundo verdadeiramente fantástico!
Sobre o teu conto, eu achei muito bonito! As amizades não têm idade e nem ambiente, né?! O mais legal dele é o ânimo da personagem de 58 anos permitir-se sentir e viver, dentro da amizade construída virtualmente, como se tivesse 8. Achei de que deixar isso para o final foi uma ótima sacada.
Parabéns!
Grande beijo,
Sabrina
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Adorei a narrativa, principalmente pelo desfecho, veio contra o que eu achava que podia ser até aquele momento e a coisa que eu gosto demais é que a autora me surpreenda e isso aconteceu positivamente, de forma que terminei a leitura com um sorriso nos lábios, de satisfação.
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Hahahha adorei.. tb eu sou amante de joguinhos de computador! nao me importando se tem um 4 antes do 7 :p
Muito gostoso de ler teu conto e as personagens são umas fofas!
Parabéns, Contista!
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Ana Maria, brinquei por um tempo com um jogo chamado The Simms. O mais legal do jogo era criar o personagem e construir uma casa. Daí perdia a graça e partia-se para um novo avatar. Acho que nós, escritoras, somos criadoras não apenas de avatares, mas de universos que existem dentro dos limites de nossas imaginações. Muito além de uma simples história de fantasia,vc nos fez enxergar a nós mesmas em sua história. Vivemos e morremos com nossas personagens, mas são as nossas histórias que, afinal, nos eternizam. Parabéns pelo conto.
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