A sorte de Joaquim foi aquele assalto. Não tivesse alguém assaltado a casa de Francisca e roubado o precioso mealheiro e nunca estaria prestes a celebrar os cinquenta anos de casados.
A verdade é que Joaquim desesperava por casar enquanto Francisca protelava indefinidamente porque entendia que eram ambos muito jovens e ela queria um enxoval primoroso (que dia após dia ia nascendo das suas mãos de fada), uma casa mobilada e um casamento abençoado, não só pelo padre mas também por um certo sentido místico de proteção. Por esse motivo (além do seu labor com os bordados e as rendas) estava disposta a juntar no mealheiro as mil moedas de tostão necessárias à compra da “colcha da felicidade” – e isso levava muito tempo.
Tendo regressado à estaca zero do seu mealheiro já tão adiantado, Francisca acedeu a casar sem comprar a colcha que só seria da felicidade e abençoada se fosse paga por mil moedas de tostão.
Acabou por ser esse pequeno acidente que a levou a compreender que essas crendices não tinham qualquer fundamento, uma vez que o seu casamento com Joaquim funcionava na perfeição sem necessidade de qualquer bênção exterior a ambos. E dentro da compreensão desta verdade simples, Francisca foi iluminada. Iluminada não pela fé, mas pelo entendimento de que a felicidade é tão mais fácil quão mais fácil seria assumir o destino como coisa sua e ir por onde a levasse a associação harmoniosa entre a razão e o coração. Esta constatação levou-a à busca pelo conhecimento e pela cultura como ferramentas de aprimoramento pessoal.
E foi assim que no início da década de setenta, casados quase de fresco, sedentos de viver e aprender, Francisca e Joaquim se mudaram para Lisboa, onde ambos conheceram o sucesso profissional, criaram os seus filhos e foram felizes.
A primeira vez que sucedeu foi assustador. Francisca deu por si no supermercado, sem saber como fora lá parar e, pior que tudo, não fazendo ideia de qual o caminho para regressar a casa. Telefonou ao marido pedindo-lhe que fosse ter com ela, ele percebeu algo de errado na sua voz e foi de imediato. Quando lá chegou já ela estava um pouco menos assustada e mais segura de si, embora ainda presa dum certo torpor.
Ao jantar falaram sobre o assunto. “Não vale a pena darmos excessiva importância a isto” – disse ela, “sei lá, deu-me uma branca, ou desta vez distraí-me demasiado”, sorriu, ambos sabiam como era distraída, “se voltar a suceder, prometo que vou a um neurologista”. Joaquim quis acreditar que ela tivesse razão, Francisca desejou profundamente que fosse isso mesmo, mas o bichinho do medo insinuava-se-lhe por cada poro, sabia que era possível.
E sucedeu mais vezes, muitas mais e cada vez piores. Enquanto as suas ligações neuronais se desligavam, Francisca ia criando outras, frágeis, de aprendizagem rápida, para conseguir viver com a doença sem que ninguém notasse. Bilhetinhos em sítios estratégicos onde saberia que iria mas ele não (seria difícil explicar o porquê daqueles recados), recordando-a de lavar os dentes, despir o pijama, mudar de roupa antes de sair e outras coisas assim; a morada de casa (e mais tarde também o seu próprio nome) bem à vista ao abrir a carteira, e-mails com alertas programados nos momentos bons, para lhe serem enviadas a certas horas de certos dias. Francisca fazia, não pensava, fazia; assim como na juventude (num passado muito distante) bordava e tecia na perfeição, assim agora montava a sua teia pelos fios sobre que se orientava e com que se enganava a si e a todos. Esta necessidade de negar a doença, como se dessa forma pudesse iludi-la e barrar-lhe a passagem, levava-a a comportar-se como um alcoólico ou outro viciado qualquer.
Pode parecer estranho ou não, mas a verdade é que estas práticas lhe permitiram viver mais alguns anos numa seminormalidade suficiente para que Joaquim não se apercebesse do progresso da doença.
Francisca quase podia olhar-se no espelho e ver nele a doença piscando-lhe o olho com cumplicidade: “bom trabalho, continuamos a enganá-los a todos”.
Para Joaquim e os filhos, a descoberta da verdade foi dura e a doença já ia adiantada. Francisca perdera finalmente todos os ténues fios de contacto com a realidade e de nada lhe valiam os papeis que continuava a encontrar e as mensagens que recebia; mesmo quando conseguia ler não compreendia e os seus comportamentos descontrolaram-se ao mesmo ritmo que os seus subterfúgios iam sendo encontrados pela casa e pelas suas coisas em que antes ninguém pensara vasculhar.
Milagres acontecem.
Milagres acontecem.
Milagre é o nome genérico que damos a acontecimentos excecionais e que se supõem impossíveis, mas que acontecem, aqui aconteceu o improvável “canto do cisne”.
Francisca morreu em casa, dias antes de perfazer os cinquenta anos de casada com Joaquim. Estavam sozinhos, ele sabia que o fim estava a chegar e isso era sobretudo um aconchego que finalmente viria para todos. Após a perda de controlo de Francisca sobre o seu eu, a progressão fora anormalmente rápida, mas profundamente dolorosa.
Foi no sossego dessa suave manhã de primavera que Francisca abriu os olhos, perfeitamente lúcida, olhou Joaquim e proferiu: “Sempre soube que foste tu quem roubou o mealheiro. Obrigada.”
FIM
Li este conto em outra plataforma e adorei. Uma narrativa doce e ao mesmo tempo bem humorada que nos envolve pois nos familiarizamos com os personagens de forma imediata. Que bela história de amor, de tolerância e de companheirismo! E no final, a revelação: ela sabia de tudo, o tempo todo e agradeceu ao marido por dar fim a uma espera que já torturava os dois. Parabéns mesmo! Gostei imenso, viu?
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Um texto lindo que nos traz emoções misturadas em um a história muito bem contada que nos conduz pelas mãos. Seu conto tem uma fluidez perfeita. O investimento quase todo na protagonista, deixou o conto fácil de ler, além da escolha de uma linearidade da trama. Sem dúvida, um dos preferidos dos seus que eu já li. Gostei muito e ressalto que o arremate foi perfeito. Abraços.
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Querida Ana,
Boa tarde.
Tudo bem?
Os temas abordados neste conto me atraem muito, aqui se fala de vida, amor e morte em um desencadear doce e extremamente verossímil. Assim é a vida, nela há momentos leves, engraçados até, e outros, que guardam a dureza de se perder de si mesmo, daqueles que amamos, e tudo ai ocorrendo aos poucos, como a areia que corre em uma ampulheta…
Destaco este trecho maravilhoso: “Francisca quase podia olhar-se no espelho e ver nele a doença piscando-lhe o olho com cumplicidade: “bom trabalho, continuamos a enganá-los a todos”.” Fez-me lembrar minha avó, que se maquiava toda para me receber em seus tempos finais de câncer, assim enganava-me e não parecia tão mal. Um modo de enganar aos outros e, metaforicamente, também a ela, a morte.
Parabéns pelo belo trabalho.
Beijos
Paula Giannini
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A demência choca a grande maioria das pessoas e você a apresentou de forma doce, no romance do casal de protagonista; esperta e bem-humorada, na tentativa de Francisca de enganar aos outros e a si própria e no fato de saber o segredo do marido, guardá-lo por tantos anos e não esquecê-lo, mesmo com a doença.
Essa história me trouxe emoções especias, pois acabo de completar cinquenta anos de casamento; mas, felizmente, estamos bem, os dois.
Resumindo: narrativa cativante, reflexiva, fluida, prazerosa, bem estruturada. Parabéns! Abraços!
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Ah… Ana! Como me emocionei com essa história! De uma riqueza enorme e sensibilidade pontual. Me senti abraçada por esse amor que compactua com o tempo, que vence as tramas externas, que persiste capaz de soletrar cada letra da palavra amor com o mesmo sentido do primeiro encontro de almas. Obrigada por me proporcionar essa leitura. Um grande e carinhoso abraço!
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Que lindo texto! Deixa-nos com uma sensação boa, de cumplicidade, de felicidade, inclusive, por ver que, apesar da doença de Francisca, os dois foram felizes, se encontraram e viveram o que deviam mesmo viver. Do que mais gosto em textos, contos e romances, é ser cativada pelas personagens, porque assim elas terão tudo o que quiserem de mim, rs. E posso dizer que me derreti por Francisca e Joaquim. ❤
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Olá, Ana! Seu conto me remete a uma doença comum na minha família, então cativou-me de imediato. Como não se emocionar com uma história de amor que nos resume a vida? Tudo vale a pena ser vivido, inclusive as pequenas mentiras, especialmente se o amor é a grande recompensa. Um texto suave, bem-estruturado, envolvente e de alta empatia porque nos fala de vida. Muito bom!
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Este conto é bem triste. Não tenho medo da morte, mas tenho um medo absurdo de perder a consciência de meus atos, seja por qual doença for. Um final bonito, encantador, de deixar os olhos úmidos.
Bjs ❤
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