Varal de Lembranças (Soneto e Conto) – Iolandinha Pinheiro

 

Ao longo desta tarde, uma vida passa
E leva junto lembranças de um dia
um dia de vento, vento que embaraça
os loiros cabelos da noiva que sorria

Ao longo desta tarde, a anciã recorda
se lembra e se perde entre passado e fantasia
sobre o colo, no tecido  que ela borda
as imagens daquilo o que viveu um dia

Lá fora o vento forte, balança o varal
E os lençóis flutuam sob o céu laranja
Como vestido de uma moça em esponsal

Nunca mais haverá noiva sorrindo
Nunca mais um vestido, o véu, e a franja
tudo findou, e a noite eterna vem surgindo.

ANNA estava perdendo a lucidez paulatinamente e sabia disso. Não podia fazer nada para impedir, então tentou se conformar. Era difícil. Uma pessoa como ela, cheia de afazeres e projetos, suportar aqueles vazios na memória, e aquelas incapacidades que iam se agravando dia a dia…

Contrataram uma enfermeira. O filho contratou. Sabia que era bem cara porque a nora comentava pensando que ela não ouvia. Ouvia sim , mas esquecia também. Esquecer às vezes era bom, pelo menos não ficava magoada por muito tempo.

A enfermeira era boazinha, paciente. Levava a velha senhora para passear, dava comida na boca e remédios. Mas era durante as quintas-feiras que os seus escassos dias ganhavam algum significado. Era nas quintas que a neta mais querida passava em sua casa e a levava para o sítio.

A neta era médica e nos dias de quinta-feira tinha folga, então levava a vó para passeios pelo velho sítio, onde a idosa havia passado a infância e boa parte da vida adulta.

Nestes dias, Anna pedia para rever álbuns. Ia pelos cômodos da casa, empurrada em uma cadeira de rodas, mexia na roupa da cama, nas toalhas bordadas que um dia foram usadas para cobrir as mesas de madeira maciça, abria guarda-roupas.

Mas o que ela achava melhor era ficar perto das janelas com seus bordados no colo, criando figuras já sem nenhuma precisão. Dizia que estava bordando o enxoval do casamento da neta. Carolina sorria, concordava. Havia se casado há cinco anos, mas a avó não lembrava. Então, apenas concordava e sorria.

Carolina a colocava perto de diferentes janelas, para que tivesse lembranças variadas. Naquela quinta-feira, em especial, estava sentada na sala.

Lá fora, havia um varal que não devia estar ali.

Os caseiros haviam passado um varal na frente da sala de estar da casa, a sua entrada principal. Anna se ressentia com aquilo. No jardim, onde hoje se viam roupas penduradas, ela havia casado.

Estava cada vez mais difícil pensar. Amanhecera ofegante, e cogitara recusar o passeio. Tentou falar, mas apenas balbuciou gemidos intraduzíveis. Sentiu uma dor na garganta. As lágrimas chegaram.

A neta a levou para o sítio, achando que ela gostaria. Agora estava sentada lá, olhando com desgosto para o varal.

Foi quando a D. Rosa tirou as roupas feias e colocou no lugar os lençóis brancos, recém lavados, quarados nas pedras do rio e alvos como coco, que os pensamentos ganharam novas feições. Eram lençóis de um algodão bem fino, no que dava o vento, levantavam muito alto, quase soltando das cordas. FOI AÍ QUE ELA SE LEMBROU.


O jardim voltou a ter flores. Suas preferidas: as margaridas. Sob o caramanchão, estavam ela e seu noivo. O tecido branco não eram lençóis voando, mas seu vestido de seda, de cintura bem marcada. O véu ficava caindo, o vento vinha e embaraçava o cabelo solto, loiro.

Na varanda o acordeon e a viola. Os convidados riam. A tarde passava do azul para o laranja. De repente caiu uma chuva e todo mundo correu para dentro. A cozinha ficou lotada e as crianças aproveitavam para descobrir os doces debaixo dos panos.

Logo estiou e subiu aquele aroma de sol com terra molhada. A carne estava encharcada e foi levada para o fogão à lenha. O cheiro da carne renovada encheu a casa de sabor.

O dia estava tão lindo que não se incomodou com aquela dorzinha no peito, aquele certo desfalecimento. Devia ser o vestido apertado, aquelas muitas anáguas, a barra com franjas um pouco manchada de lama.
O mal estar aumentou e a noiva pediu para recostar-se na cadeira. José, o noivo, trouxe água fresquinha do pote para que ela bebesse. Tirou o lenço do colete e passou em sua testa. José, quantas saudades! Não sabia bem porque, mas sentia saudades, como se ele tivesse voltado, naquela tarde, de uma longa viagem.

As ideias confundiam-se em sua cabeça. A mãe de Anna chegou perto dela. Um carinho enorme, uma vontade de abraçar encheu seu coração.

-Mamãe…

Enquanto olhava as pessoas ao seu redor sentiu uma súbita leveza. Sua mãe e seu pai pegaram suas mãos. Eles a ergueram da cadeira. Sentia-se muito bem. Alguém chorava em algum lugar, uma criança talvez. Não quis ir ver, deixou-se levar, docemente. Sentia-se cheia de saúde. Tudo ao redor ganhava cor, força, aroma, viço. Tudo brilhava.

-Venha, Anna. – José a chamava. – Venha.

No quarto, onde a velha senhora estava deitada, a sua neta chorava. Estendeu o lençol até cobrir sua cabeça. Olhou para o relógio da parede. Anotou a hora: seis da tarde. A ambulância já fora chamada. Inútil. O coração de Anna havia parado, para sempre.

 

 

22 comentários em “Varal de Lembranças (Soneto e Conto) – Iolandinha Pinheiro

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  1. Morte, saudade e poesia… Bem escrita, envolvente, narrativa bem amarrada. A trama traz uma série de situações identificáveis ao leitor. Nessas cenas, sobretudo nas descrições da ação nos cuidados com a idosa, o ritmo calmo e constante usado não confere tanto impacto, pela naturalidade com que são apresentadas, pela empatia com a protagonista.

    Escrita competente, texto bem planejado, com estratégia que propicia ao leitor descortinar uma percepção de mundo que se forma nos interstícios, fora do alcance dos olhos comuns. A trama chega a ser um estereótipo, mas o ponto alto do texto está na técnica que o enriquece e dá-lhe dose de originalidade.

    A revelação final vem de forma mansa, sem surpresas e com certa previsibilidade, desde que se falou das dores no peito, mas as metáforas do varal e lençol que recordam o casamento emprestaram poesia e emoção ao texto. A ambientação tem papel fundamental nisso com alguns detalhes bem interessantes que nos coloca dentro da atmosfera como as figuras do marido e dos pais que a vem buscar. As informações finais deram um sentido conclusivo não só à trama, mas à vida — a cereja do bolo. Amei o soneto.

    Parabéns pelo trabalho de qualidade. Um forte abraço!

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    1. Querida, Fatima, obrigada. Parabéns por mais um primeiro lugar no Dtrl, vc merece. Este conto foi feito depois do soneto para explicá-lo, é uma homenagem aos meus avós paternos que se chamam Anna e José. Minha irmã mais nova tb se chama Carolina. O conto era para ser suave mesmo, todo ele. Não era para causar impacto, então acertei. Que bom que vc gostou é muito obrigada pela rapidez em vir comentar, como sempre. Beijos.

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    1. Obrigada, Neusa! É um conto sobre Alzheimer e despedida. Fiz bem suave e cheio de lembranças porque foi para meus avós falecidos, embora a verdadeira tenha morrido de Câncer. Anna de Lima Aragão Craveiro, grande mulher. Um cheiro do Ceará.

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  2. O soneto de abertura sugere a atmosfera do conto. As lembranças, o afeto, a transição suave para a outra vida. Os lençóis brancos, tratando-se de você a autora, me fizeram esperar certa fantasmagoria que acaba surgindo na forma das lembranças vívidas que tornam suave a partida da velha senhora. Escrevi recentemente um conto que dialoga bem com esse seu. Descreve uma morte que, assim como a que o seu conto descreve, todos gostaríamos de ter. Em breve vou publicá-lo aqui. Parabéns, querida! Sempre uma leitura inspiradora! Beijos.

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    1. Oi, minha querida! Obrigada pelo comentário. Era bem isso, uma transição suave, um olhar mais carinhoso e lírico sobre a morte e o Alzheimer. Quero ver este seu conto. Vindo de uma escritora com o seu talento, tenho certeza que deve ser maravilhoso. Beijos.

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  3. Um conto e um sonetos, casados num casamento que ao refaz na morte da ressurgida noiva, Está muito bom e muito bonito também. Há um balanço equilibrado entre uma poesia inicial que é quase prosa e uma prosa seguinte, toda ela eivada de um lirismo poético e doce. Gostei muito. Parabéns. Beijos.

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    1. Pois é. Comecei pelo soneto, Ana Maria, como ficou incompreensível para muitos, criei o conto. Minha avó se chamava Anna, mas ela era arruivada e não loira. E meu avô se chamava José. Tentei ser suave mesmo, porque havia muito sentimento real em cada frase. Obrigada por perceber e se envolver. Beijos.

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  4. Nada de conto de terror desta vez. Gostei da sua narrativa cheia de poesia e nostalgia de um tempo cheio de promessas. A aproximação da morte, a perda da memória, a mistura das lembranças com o que se passa no presente, tudo contribui para um grande desfecho. Que bom que a senhorinha, mesmo mergulhada nos males do Alzheimer, conseguiu reviver momentos tão lindos. No final, os pais vieram buscá-la e o marido a chamava como um noivo ansioso para dançar com sua amada. Lindo! Parabéns!

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    1. Obrigada, Claudia! Terror é meu gênero favorito mas também me aventuro em outras praias. 😀Que bom vc ter gostado. Estou vendo as fotos do lançamento do livro. Estão ótimas. Obrigada.

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  5. Oi, Iolanda,

    Tudo bem?

    Você sabe que sou sua fã, mas, este é um dos melhores contos seus que já li, verdade verdadeira. Falei há pouco da habilidade da Elisa em fazer narrativas sobre a terceira idade, mas esta aqui também me ganhou e fez chorar. Não sei… A mescla de linguagens, poesia e conto. A perda gradual da memoria e então, súbito, tudo volta. Como se voltasse, mas não volta, Anna já se foi e já pode, novamente, voltar a ser ela mesma.

    No final você ainda nos brinca com uma bela história de amor.

    Parabéns, minha querida.

    Beijos
    Paula Giannini

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  6. Olá, Iolandinha! Esse seu conto me abismou pela leveza e nostalgia de uma época que vai nos afetar a todos, de um jeito ou de outro. Começo pelo belo soneto, mais um bordado ritmado com cum colorido sutil, depois a explicação que nos remete a reminiscências pessoais. Quem não tem um caso desses na família para recordar, não é mesmo? Você deve se arriscar mais vezes por esse estilo, saiu-se bem, com maestria contagiante. Parabéns!

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    1. Querida Sandra. Obrigada pela palavras gentis e muito generosas. Não parece mas, pessoalmente, eu sou muito mais suave como este conto, do que sinistra como os demais. O sitio existe e pertence hoje ao meu pai. Um dia foi da mãe da personagem Anna. Que ficou viúva do pai da minha avó aos 21 anos. Aí ela casou e teve mais uns oito filhos. A filha mais nova herdou o sítio e vendeu para o meu pai em 2006. Quando escrevo sobre coisas baseadas em lembranças, sempre há muito mais sentimentos impressos em minhas palavras, daí talvez consiga transmitir esta emoção para vcs. Um abraço.

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  7. Agora que já chorei até entupir o nariz, posso comentar.
    Minha avó chamava-se Ana; meu avô, José. Ela foi-se primeiro, ele, dois anos depois. Ela não assistiu ao meu casamento. Ele não chegou a conhecer a primeira bisneta que já estava à caminho. Ainda não me recuperei destas perdas, e acho que nunca vou, principalmente agora que já não tenho muitas ilusões com vida após a morte. Um conto lindo, ainda mais com o soneto.
    Bjs ❤

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    1. Também meus avós paternos eram Anna (de Lima Aragão) e José (Albuquerque Craveiro). O conto é mesmo muito tocante. Fico feliz quando consigo imprimir este efeito em minhas linhas. Isso quer dizer que consegui me comunicar emocionalmente com o leitor. Um abraço..

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  8. Oi, Iolandinha! Então era para ser só o poema, o conto foi criado depois? Pois olhe, vim para ler o soneto, um tipo de poema que eu adoro e, de repente, vejo o conto começar logo em seguida (não vi no título que estava “soneto” E “conto”, é o sono, rs). E é mais uma leitura hoje para me arrancar algumas lágrimas… Eu espero não sofrer disso na velhice, quero me lembrar de tudo, tudo, até o último instante… A forma como narrou me deu um alívio, como se lendo eu tivesse a certeza de que era apenas o ciclo da vida. E é, na verdade… Infelizmente não estava perto de minha avó quando ela se foi, tanto que nem sei a data certa… mas quando temos uma ligação maior que a vida, acho que isso não importa, também, a coisa se torna atemporal… Obrigada pelo conto!

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    1. Boa noite, Bianca. Foi sim. Eu fiz o soneto e ninguém entendeu. Só elogiavam a forma sem compreender o conteúdo. E nem poderiam, porque o soneto estava muito inacessível. As referências eram apenas minhas, estavam dentro do meu coração. Aí senti a necessidade de dar esta explicada. Minha avó paterna se chamava Anna. Morreu de câncer em 87. Meu avô morreu dez anos depois.

      Obrigada por ter lido e fiquei feliz que tenha gostado e sentido. Quando consigo despertar emoção no meu leitor, sinto que estou no caminho certo. O aprendizado jamais acaba, e o bacana é que possamos aprender até o último respirar.

      Um grande abraço e boa noite.

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  9. Estou muito sensível nesses dias, mas não é só por isso que engasguei. Esse conto é de uma sensibilidade tamanha! E o soneto? Sonetos são difíceis de construir. Precisa atenção, cuidado e, de novo, mais sensibilidade. Você, Iolandinha, sabe como dar rasteiras nas fortalezas do dia e fazer despencar a água represada na alma. Obrigada pela leitura. Lembrei-me de coisas que aquecem, mas também de uma saudade muito minha.

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    1. Minha querida amiga. Que emocionante comentário, e que conexão entre o que foi escrito e seus próprios sentimentos. Esse conto foi criado para explicar o sonero, dar uma história para ele. No meio do processo me peguei vendo minha personagem como a minha vó, Anna de Lima Aragão Craveiro. Acho que este texto despertou emoções e lembranças em você, porque foi escrito com emoções reais, minhas. É sempre muito bom ter leitoras com a sua sensibilidade e ver o texto indo muito além do que um dia imaginei que chegasse. Beijo e boa noite.

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