Doença de Família – Sabrina Dalbelo

Primeiro lugar no vestibular na Faculdade de Medicina da USP 2007. Grande mérito, resultado de igual dose de responsabilidade. Isabela Alonso entrava na faculdade como a melhor da turma e logo se tornaria a preferida do professor de anatomia, Ricardo Pádua, um reconhecido médico paulista. As investidas, após as aulas práticas sobre o sistema cardiovascular, resultaram na entrega do coração ao mestre, vinte anos mais velho. Eram companheiros frequentes nos intervalos das aulas e logo o namoro engatou.

Isabela e Ricardo, apesar da diferença de idade, estavam apaixonados e comprometidos um com o outro.

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Maria Ofélia e Ernesto Alonso dispunham de uma fortuna para esbanjar com mordomias e mimar as filhas, Isabela e Marcela.

Isabela era a mais velha e também a mais centrada. Idolatrava arte em geral, influenciada pelo pai, e sonhava em se especializar neurocirurgiã, inspirada no avô materno.

Marcela, a mais nova, era rebelde e não gostava de estudar. Já tinha sido expulsa de duas escolas do Morumbi, a ponto de o pai decidir enviá-la ao exterior, o que amenizaria as fofocas de que “essa filha” não tinha dado certo. A manobra se mostrava ainda mais conveniente por que Isabela recém tinha recebido a aprovação no vestibular de medicina e estaria pronta para receber o foco social.

As irmãs não brigavam, mas não sabiam praticamente nada uma da vida da outra. Isabela fugia de confusão, focada nos seus objetivos, e Marcela não fazia questão de se abrir com a irmã careta.

A mãe não dava opinião sobre o distanciamento entre as meninas, desde que não lhes faltasse nada, e o pai viajava muito e não tinha tempo para isso.

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Isabela aproveitou com excelência os sete anos de estudos e graduou-se em Medicina, com ótimo desempenho. Lamentava o pouco tempo para exercitar piano, uma de suas mais antigas habilidades, mas dava o seu sangue pela carreira. Não era sacrifício dividir o tempo entre o hospital universitário, a faculdade e os plantões. O pouco que sobrava, destinava ao noivo, Ricardo.

Chegada a Formatura de Isabela, Marcela arrumou as malas para voltar a São Paulo e, entre outros compromissos, prestigiar a irmã. Nessa época, já era caloura em uma universidade americana em História da Arte, o que amenizava o ciúme do êxito da irmã médica. As responsabilidades tinham aumentado, mas Marcela continuava esbanjando a fortuna da família com futilidades e tratamento psiquiátrico contra a oneomania. Ela aterrissou na manhã do dia da colação de grau e foi direto para a casa dos pais.

À tarde, Isabela voltou do day spa pronta para a cerimônia. Estacionou o Mercedes, subiu de elevador até o terceiro andar e foi direto para o quarto largar a bolsa, pois queria fazer surpresa a todos com o penteado, que realçava seus cabelos ruivos e seus olhos verdes. Queria ver primeiro Marcela, pois estava com saudades. Ao aproximar-se da porta do quarto da irmã, sentiu que ela estava lá.

Isabela torceu a maçaneta e só conseguiu empurrar a porta ao imprimir um pouco mais de força. Ao olhar atrás do obstáculo, deparou-se com um amontoado de roupas que se sobrepunham umas às outras no chão. Levantou os olhos até a altura do movimento que vinha da cama e reconheceu Marcela, pelos cabelos loiros curtos. Ela retorcia seus dedos contra a própria nuca, enquanto cavalgava vigorosamente sobre… Ricardo. Ricardo?

Os músculos de Isabela perderam a estrutura. Os olhos verdes se encheram tão rápido de lágrimas que ela quase foi traída pelo que pensou flagrar.

Demorou alguns segundos da mais eterna decepção para a visão de Isabela se estabilizar e ela perceber que não era Ricardo que se lambuzava de Marcela.

Isabela saiu correndo do quarto e não apareceu na cerimônia de Formatura, alegando um mal estar súbito. Ela se trancou na sua suíte e não quis ver ninguém naquela noite. Marcela foi procurá-la e a fez jurar que nunca contaria o que presenciou. A loira esbravejou, bateu na porta da irmã até doer, mas Isabela não abriu, limitando-se a responder “Saia daqui! Eu tenho nojo de vocês!”, até que Marcela desistiu.

Isabela sabia que era melhor para todos que guardasse segredo do flagrante mais repulsivo da sua vida. Ainda que muitas atitudes e mágoas familiares agora fizessem sentido, era preciso seguir, mas longe daquela doença. No outro dia, telefonou para Ricardo e acabou o noivado, com a desculpa de que pretendia dedicar-se exclusivamente à Medicina. Na semana seguinte, foi morar sozinha. Em alguns meses, iniciou os estudos em cirurgia e, em seguida, em neurocirurgia.

Tornou-se, em poucos anos, uma das mais prestigiadas especialistas de São Paulo, mas não voltou para o piano, nem para Ricardo, nem para ninguém.

Uma das médicas brasileiras mais bonitas e desejadas, e também uma das mais ricas, hoje, com 38 anos, ela tem orgulho de ser a mais dedicada. Isabela vive para a Medicina e não responde a nenhuma investida amorosa, desde o dia da Formatura dos Doutorandos em Medicina da USP, em 2013. É uma excelente neurocirurgiã, mas é incapaz de tratar a doença que corrói a sua família.

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Maria Ofélia Piva era filha de médicos paulistanos tradicionais quando conheceu o jovem Ernesto Alonso, seu pretendente. Os pais abençoaram o compromisso da filha com o ambicioso empreendedor da área automotiva, herdeiro de latifundiários baianos muito ricos que, ao trocarem a aristocracia escravocrata do nordeste pela economia cafeeira do sudeste, fizeram ainda mais dinheiro.

Eles se casaram e Ernesto tornou-se um ótimo marido para Maria Ofélia. Enquanto ela pudesse se fartar na riqueza, deixaria o marido à vontade para conduzir a educação das filhas e tomar decisões experimentais, sem questionamentos.

Ernesto orgulhava-se de Isabela, pelo esforço da primogênita em buscar os objetivos e realizar os sonhos. O sucesso prematuro recompensava a aplicação do capital da família. Com Marcela era diferente, ela nunca entendeu a necessidade de corresponder ao investimento do pai e de se preparar para o futuro.

Ernesto, há muito tempo, passou a cobrar, ele mesmo, uma compensação de Marcela, por todo o dinheiro investido.

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Personagem que inspirou o conto

17 comentários em “Doença de Família – Sabrina Dalbelo

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  1. Realmente um conto que nos pega de surpresa. Que segredo, hein? Os personagens estão muito bem delineados na medida de suas funções, havendo o maior foco na principal e aos demais o que é devido. Queria mais da história mas entendo que o limite do próprio desafio não permitiu este mergulho. Mas quando a gente quer mais é sinal que estamos curtindo, né? Parabéns e boa sorte.

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  2. Como comentar sem spoilers? Desde o título suspense e curiosidade, satisfeitos apenas no final. Personagens e trama construídos na medida certa, ambiente bem cuidado e adequado. Parabéns à dupla, autoras de um conto interessante! Gostei de tudo. Beijos.

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  3. Nossa Senhora dos Contos Impactantes, o que foi isso? Tudo parece estar seguindo uma linha normal, dentro dos padrões, a filhinha prodígio e a caçula rebelde, mãe alheia, pai interessado nos investimentos feitos.
    Não tinha entendido muito bem o porquê da existência do tal do Ricardo, mas no final, tudo tem sentido. A narrativa prende a atenção e o desfecho causa impacto pela surpresa. Eu não imaginava isso: a doença de família. Ficou bom. Parabéns, contista, por fazer de uma simples ficha, um conto surpreendente.

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  4. Trama bem construída, mantém o suspense proposto pela personagem. Uma trama que vai nos conduzindo, quando a gente acha que vai, não vai, quando a gente acha que sabe o que vai acontecer, a coisa muda, enfim, as características de um bom suspense, bem desenvolvido pela maestria da autora em contar histórias. Confesso que lá pelos penúltimos parágrafos já supunha que o pai fosse o personagem flagrado por Isabela. Aí pensei: não, ela vai colocar a mãe, só pra quebrar a minha expectativa. E daí acabou quebrando, porque era MESMO o pai… rsrs
    Muito bom, parabéns!

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  5. Olá, querida amiga contista!
    Para mim, essa era uma das fichas mais difíceis, tem muitas coisas para inventar e resolver e você conseguiu fazer tudo que ela pediu! Parabéns!!
    O enredo está bem pensado, tudo se encaixa perfeitamente, os personagens foram bem explorados e estão devidamente aprofundados, eu só achei a escrita meio dura, como se fosse uma biografia ou um texto jornalístico,
    Que segredo, heim… É capaz mesmo de destruir uma família e fazer qualquer pessoa se fechar para tudo e todos. Parabéns pela criatividade!
    Um abraço!!

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  6. Impactante! Não sei bem o sentimento que ficou em mim, mas não foi bom, e isso é muito bom! Amei a forma como foi amarrando a vida dos personagens, de como foi conduzindo a trama, da solução do conflito proposto. Parabéns pelo ótimo conto!

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  7. Um conto repugnante, no bom sentido, é claro! A autora explorou bem as características dos personagens, incrementando com seu segredo doentio de família. Apesar de ser apenas um conto, me pergunto de quantas coisas bizarras o ser humano é capaz de se submeter para conquistar o que deseja, lamentável…
    Bjs ❤

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  8. Olá, Contista querida,

    Essa é uma ficha que lançava um grande desafio. Segredos são doídos de guardar e difíceis de revelar.
    Achei que o conto seguiu a proposta da ficha e nos surpreendeu com a revelação do segredo da família da personagem principal, o que trouxe o encaixe do título ao conto.

    Inicialmente, eu não tinha ideia de onde isso tudo ia parar… e aí… BUM!

    Parabéns! Eu gostei bastante, está bem escrito!

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  9. Olá, Contista. Sua ficha de personagem era uma das mais difíceis porque deixava vários elementos em aberto. O segredo inconfessável do latifundiário que vem cobrar seu tributo, de uma maneira ou de outra. A gente vai seguindo num conto de fadas, tudo se encaixando até que vira um conto de terror e tudo desanda. Com maestria, soube construir o suspense na dose certa até a indignação, ao final. Muito bem concebido e emocionante.

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  10. Olá Contista. Este era um ótimo personagem rico de possibilidades, mas também difícil de trabalhar por trazer demasiadas regras agarradas e eu penso que você sacrificou um pouco o conto em benefício da forma como o segredo está pré-delineado. Então, quando a irmã mais velha apanha a irmã na cama com aquele homem, a reação não podia ser mais desadequada; mesmo a irmã mostrando prazer no que está a fazer, isso não significa que ela não foi usada e abusada da pior forma desde demasiado jovem. Não, nojo nunca poderia ser a reação duma irmã mais velha e, mais ainda, médica. Este conto, que está um primor, precisa libertar-se de alguns elos que o personagem trazia em excesso, se isso suceder ficará muito melhor. Parabéns. Um beijo.

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  11. Puxa… Eu não teria me saído bem aqui. Taí uma coisa que não pensei ao ler a ficha. Haha!
    Então, Contista! Gostei do texto. Vc tem muito controle e segurança no que quer passar o como quer. Deu a entender o segredo,sem grandes descrições desnecessárias. Acho esse recurso de sugerir muito melhor que mostrar tudo de mão beijada.
    Achei as duas personagens bem demarcadas,mas, talvez pelo tamanho do conto, desejei um pouco mais.
    É um texto com uma trama densa mas com escrita rápida, sem muitas firulas (o que é bom,mas deixa um gosto de quero mais)
    Parabéns!
    Abraços.

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  12. Ola, Contista! Obrigada por participar do nosso desafio. 🙂

    Seu conto foi conduzido com bastante segurança, levando o leitor de forma ágil e certeira. Muito fiel a ficha que já meio que deixou tudo pré disposto ao desfecho. Gostei bastante da forma como desenvolveu os personagens, ricos, cheios de camadas há bastante identificação. Eu de alguma forma imaginei que a doença de família seria essa. Quando apareceu a cena do flagra soube que era o pai, ainda assim teve o impacto necessário, uma cena dessas não tem como, né? rs

    Acho que o noivado foi pouco desenvolvido, o rompimento abrupto.

    Parabéns !

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  13. Uma ficha desafiadora! Um enredo criado a partir dela, desafiante para o leitor!
    A história é ótima, embora eu ache que precisaria ser mais desenvolvida, foi entregue um texto rápido, um relato.Mas a forma como a autora fez o leitor desvendar o segredo de família foi ótimo.
    A criatividade das contistas continua me deliciando!! 🙂

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  14. Olá, autora! Fiquei no maior suspense sobre qual poderia ser aquele segredo. E quando ela encontrou a irmã e o Ricardo, fiquei pensando “Não, tomara que não seja!” Porque seria muito simples, e a autora não me decepcionou. Lembrei do filme “Damage”, protagonizado pela Binoche e o Irons, uma situação parecida. Gostei bastante e acho que foi um ótimo trabalho, em virtude da ficha que recebeu (eu não sei o que faria tendo que pensar em um segredo a ser desvendado!), mas fiquei com um gostinho de que poderia ter mais enredo pra gente acompanhar desse conflito. Parabéns!

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  15. Olá, Contista! Achei que você se saiu muito bem com essa sua ficha desafiadora. O segredo que você concebeu é realmente inconfessável. Embora você tenha conduzido a trama com precisão e desenvoltura e construído o suspense de forma hábil, a história me pareceu um pouco corrida. Talvez mostrar um pouco mais como os relacionamentos se desenrolam no seio dessa família tão desajustada pudesse ter sido uma estratégia interessante para enriquecer a história. De qualquer forma, um ótimo trabalho! Parabéns às duas contistas!

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  16. Esse conto me pegou de um jeito que me arrepiei, tensa e com vontade de esganar (sem spoilers) alguéns no conto, uma sensação de “eita, pô, carai!”.
    Você escreve com maestria, acho que resumiu em poucas linhas um conto que daria um romance, e se saiu muito bem.
    Desejo muito boa sorte no desafio e meus parabéns!!

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  17. Querida Sabrina,
    Parabéns por sua criação.
    Personagem difícil (ao menos para mim), criado pela Cláudia, mas, o resultado ficou muito bom.
    Não fosse pelo limite de palavras, eu diria que é quase uma novela. A solução para o segredo foi forte. Gostei.
    Beijos
    Paula Giannini

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