“Às 6h da manhã, eu fui acordado repentinamente de um sono profundo. Comparecer a uma execução. Ok, então eu só vou fazer a função de carrasco e, depois, a de coveiro. Por que não? Não é estranho? Você ama a batalha, mas é obrigado a atirar em pessoas indefesas. Vinte e três tiveram que ser fuzilados – entre eles, duas mulheres. Eles são inacreditáveis. Eles se recusam até mesmo a aceitar um copo de água vindo de nós.[1]”
Você me leva para casa?
Uma fuga. Uma covardia. Um escape. É só o que quero. Qualquer coisa para que meu pensamento vague e te encontre na varanda de casa, na cadeira de balanço, com as mãos ocupadas, alisando o ventre avantajado. Agora você deve estar com seis meses de gestação, o fruto ainda em formação dentro do abrigo que protege nosso filho das agruras do mundo. E sua risada nervosa, que você solta de vez em quando pelo canto da boca, não esconde o reflexo da tristeza que não vai embora. Você pensa em mim no campo de batalha e tem medo porque sempre há algo a perder. Um marido. Um filho. A ingenuidade. Então você se apega à barriga, é o que nos une no momento, nosso elo de sangue, ainda que eu esteja a milhares de quilômetros de distância. Você se sente descompensada, come muito, transforma seu corpo enquanto eu não posso transformar o meu. Você faz nascer e eu faço morrer, com gotas de suor pela testa, tornando meu rosto ainda mais desprezível enquanto você compra enfeites, pequenos bibelôs que espalha pelos cantos e que dão ao futuro quarto um ar infantil, roupas em miniatura que o vão proteger do frio, fraldas para deixá-lo seco, mamadeiras para nutri-lo quando já não houver necessidade do leite materno. Ao se olhar no espelho, analisa a vida, o momento e as memórias, deixando que a irrealidade a rodeie com seu elemento de magia capaz de transportar e de transformar.
“Eu fui designado como atirador e era obrigado a atirar em qualquer fugitivo. Nós dirigimos por um quilômetro ao longo da estrada para fora da cidade e então viramos para a direita e entramos em uma floresta. Havia apenas seis de nós naquele momento, e nós tivemos que encontrar um local adequado para atirar neles e enterrá-los. Depois de alguns minutos, nós encontramos um lugar. Os candidatos à morte receberam pás para cavar suas próprias sepulturas. Dois deles estavam chorando.”
Você me leva para casa?
[1] Relato de Felix Landau, oficial da Schutzstaffel, 12 de julho de 1941
Depois de meses na guerra, minhas lembranças tornam-se vagas. Às vezes, não consigo parar de chorar, às vezes, não se consigo parar de rir, às vezes, não consigo parar de brincar, como se você não estivesse onde realmente está, e tudo fosse normal e minha mente fosse realmente minha mente. Não é, ela não me atende, tem vida própria, é uma catedral gótica que vive de seu próprio cenário. E será assim até que o tempo naquele lugar se acabe. Ou eu desperte e tome outro rumo. Ou o tenente me diga que é hora de matar. Então eu tomo posição de mira, me preparo, engatilho a arma e atiro, estilhaçando futuros, imolando cordeiros que vão ser pais como eu. Ou que já são pais como eu e apenas se voltam em revolta inútil. Vão morrer de qualquer jeito. Ambos sabemos disso. E seus olhares de incredulidade me lembram que sou mais senhor do que pai, mais deus do que anjo, mais demônio do que soldado. E a coisa cresce dentro de mim, tomando vulto e proporção. Bem que queremos ser parecidos com as mães. Mas não. Somos obrigados a carregar no corpo outro ser humano, quando o companheiro foi abatido e está ferido, quando a lama se mistura ao sangue nos campos de batalha, quando a prece se mistura às pragas e a dor se mistura ao ardor das feridas. Solta-se de tudo um pouco naquelas terras para não chafurdar nas carnificinas de homens de boa-vontade. Armai-vos uns aos outros, eu digo.
Então penso em você e no nosso filho que ainda não nasceu. E no mundo que vamos deixar para ele. Eu carrego essa criança na minha mente, contra minha vontade, querida Liliana, como se tivesse enlouquecendo porque é ele quem me faz sentir vivo, é ele quem me faz renascer. Da lama, do sangue, da mais imunda das imundícies. Carne da minha carne. Sangue do meu sangue. O que são os homens? O berço e o carrinho de bebê já estão aí? E as fraldas? Não me fale. Quero a surpresa e a promessa de oferecer a ele todas as chances do mundo. É ele quem vai me salvar. E vou tomá-lo nos braços, chorar suas cólicas e sua fome, explicar-lhe as coisas básicas.
“Os outros certamente têm uma coragem incrível. O que diabos passa pelas suas cabeças nesse momento? Eu acho que cada um deles nutre uma pequena esperança que, de alguma forma, não será fuzilado. Os candidatos à morte são organizados em três turnos, já que não há muitas pás.”
Você me leva para casa?
A imagem do pequeno – porque sei que será um menino – não me sai da cabeça, Liliana, mesmo quando tenho de fuzilar e cavar as covas no meio de clareiras abertas na floresta ou no solo endurecido pela neve. Endurecido, é a palavra. Meu filho, que ainda vai nascer, me traz de volta a flexibilidade, a maciez da existência que nunca deve se embrutecer ao lado de um recém-nascido, um ser humano que sai de outro ser humano como se fosse um deus a perpetuar a vida. Já vejo a enfermeira levando-o até você, para que sugue seu peito como se fosse o néctar que nos adocica, encaixando sua boca pequena no mamilo, deixando-o sugar, e sugar, e sugar, e sugar até que ele se canse e durma no meio da mamada como se tivesse todo o tempo do mundo. Mas crianças têm todo o tempo do mundo. Ao menos, deveriam ter. Sem querer saber do horror que assola nossa existência, esse sofrimento que a gente vai suportando, suportando até se esgarçar ao máximo como se fosse uma corda feita de plástico que tudo suporta. Não suporta. Um dia se rompe, com força desmedida e incontrolável, como se já estivesse farta de tudo que teve de calar, recolher e retesar. Sou fraco por tanto repúdio. Estou farto, por tanta repulsa e por dos olhos que levam a dor para o outro lado quando morrem, mas os prisioneiros deixam o olhar, esse fica. E é do olhar deles que me lembro.
Mas não quero lembrar. Só de você, na varanda, alisando nosso filho que vai me redimir dos pecados. Tantos. Ninguém deveria carregar tantas mortes. Ninguém deveria suportar tantas mortes. Animais encarando uns aos outros no campo de batalha, como agora. Somos todos animais no limite de nossas fronteiras, no cheiro e no instinto de sobrevivência. Meu filho, abrigado no casulo de sangue, vai me redimir de tudo. Vai me restituir a alegria, uma versão mais apurada de mim mesmo, no corpo que é a continuação do meu, sem máscara alguma grudada no rosto. É nele que penso no meio da batalha. É nele que penso quando a bala me atinge o peito. É nele que penso quando o dia se esgarça até o meu (re)nascimento. É sua imagem com o pequeno nos braços, descendo como faca que se enfia às minhas costas, o que vejo no momento da minha (re)concepção. Então, volto a habitar um ventre desconhecido, protegido das maldades do mundo, abrigado no seu jeito suave, com a sensação de que não é mais possível retroceder. Estou voltando para casa por um infortúnio travestido de amor? Resta apenas o espanto, um calhamaço de papéis sem importância acusando minha baixa e a medalha de honra que vai permanecer numa caixa dentro de um armário até que a poeira a cubra por inteiro. Estou a caminho, meu amor. Finalmente, a caminho.
“Estranho. Eu estou completamente impassível. Sem piedade, nada. É assim que as coisas funcionam e, então, está tudo acabado. Meu coração bate só um pouco mais forte quando, involuntariamente, eu me lembro dos sentimentos e pensamentos que eu tive quando eu estive em uma situação parecida.”
Você me leva para casa?
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Grata pelo compartilhamento!
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Um texto forte, Sandra. Mas isso já é recorrente na literatura que vc cria, sempre intensa, sempre impactante, sempre nos convidando a uma reflexão. O matar e o morrer se entrelaçam na sua história. Enquanto lia, tentava selecionar um trecho que eu tivesse sentido mais no coração. Foi muito difícil, não por não ter encontrado, mas por ter encontrado muitos. Já falei o quanto vc me influenciou a minha escrita, e por que não falar, a minha vida. Mas este acordo entre nós sempre se renova, a cada texto seu que eu leio e descubro novas e encantadoras formas que vc tem para me conquistar, eu, a leitora.
Eu me propus a escolher um trecho, e escolhi. É este:
“Então eu tomo posição de mira, me preparo, engatilho a arma e atiro, estilhaçando futuros, imolando cordeiros que vão ser pais como eu.”
Beijos e parabéns pelo conto e pelas suas numerosas conquistas, todas merecidas.
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Iolandinha, seu comentário me impactou pela sinceridade e gentileza. Deixa eu te contar algo. Houve um tempo que pensei em desistir, andei desanimada e achei meus textos sem valor. Então formamos As Contistas e, acredite, tenho aprendido muito com cada uma de vocês, cada uma em sua peculiaridade tem contribuído para eu evoluir, digamos assim. Temos poetas maravilhosas que fazem as palavras dançarem significados ao bel prazer, e as que inovam no formato com criatividade, e as que tocam um coração transbordando emoção, e as que tecem um enredo perfeito sem fios soltos, e as que sabem fazer uma análise crítica com maestria e embasamento, etc. Nunca seria capaz de escrever terror como você, por exemplo. Sou muito grata por estar aqui com vcs, minha querida amiga contista. Vcs tocaram minha vida de um jeito irreversível. Vamos seguindo juntas! 🙂
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Imagina vc desistir de escrever! Como diz a Regina: Misericórdia! Vamos seguir juntas neste “aprendizado solidário e nada solitário” que tanto nos engrandece como pessoas, não apenas como escritoras. Beijos e sucesso, sempre.
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A narrativa traz uma renovação de imagens e significados, que despertam o leitor para sua mensagem profunda e sincera, com um toque mágico da síntese e do lirismo. Palavras exatas e sugestivas prendem pela beleza e simplicidade. Temática tirada do humano, do dia-a-dia e contém toda a peregrinação do homem diante da vida e da morte, do amor, da violência, da dor e da solidão. Parabéns, Sandra, por esse trabalho digno de mais um prêmio. Beijos!
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Fátima, é com grande alegria que recebo seu retorno sobre o texto. Achei que mesclar realidade e ficção produziria um efeito impactante e fico satisfeita que tenha atingido o intento. Obrigada pelas palavras de apoio.
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Querida Sandra,
Ultimamente, As Contistas têm se especializado em me fazer chorar… Aqui não foi diferente. “Você me leva para casa?” é uma belíssima imagem, não há o que comentar. Só sentir.
Parabéns.
Conto impecável.
Beijos
Paula Giannini
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Oi Paulinha! Eu também me emocionei com o depoimento do soldado, tanto que me inspirou. Falar de perdas e de ausências é sempre muito dolorido. Espero que vc encontre forças de retomar. Um beijo no seu coração desejando o melhor para ti.
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Ai, mulher… Porque minha alma vaza pelos olhos, né? E não dá para conter esse transbordamento de sentimento provocado pela leitura. E não há resto senão esse afeto, essa coisa de permanecer no outro depois do tempo. Voltar para casa, aqui, é bem essa coisa de ajeitar-se no coração do outro e renascer, e sem sobras, só amor, porque de feridas mortais o mundo já carrega o bastante. Uma história tão sublime, tão triste, tão profunda… Impossível não se emocionar. Parabéns e obrigada por compartilhar aqui.
Beijos e abraços carinhosos.
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Oi, Evelyn. Vc sabe que o mundo anda tão truculento que as vezes a gente escreve para criar empatia, para o leitor saber como sangra, como a dor do Outro pode ser também a nossa dor. Obrigada pela leitura. Que bom que vc gostou!
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