Tatá na Jaquaribe – 20 (Márcia Maria Anaga)
No encontro com a equipe multifuncional, composta por médicos, cardiologista, nefrologista e geriatra, assistente social e psicóloga, a família mensurou o grau da evolução da doença do avô.
Naquela linguagem única de médico, depois de muito tentarem apaziguar o impacto do comunicado pelas palavras, o geriatra finalizou: “Para o vovô não encontramos meios medicamentosos ou intervenção cirúrgica. O caso pede que deixemos na livre escolha dele se continua ou não com a hemodiálise. Para diminuição do sofrimento, o ideal seria que o entubássemos, a compressão pulmonar chegará no agudo daqui alguns dias. Tudo será decidido por ele e por vocês.
Estevão, pai de Anunciata, indagou:
— Quantos dias de vida meu pai ainda poderá ter? Como levaremos estas informações a ele?
O geriatra respondeu de forma compassiva e direta: ”questão de dias… quem sabe mês…meses”. Respondeu a outra pergunta com muita cautela e compaixão: teremos o maior cuidado para conduzirmos e levarmos o assunto ao Sr. Benito, pediremos que alguém da família esteja presente na conversa. Nós lhe comunicaremos tudo, oportunamente.
Vovó Ninita foi a primeira a se expressar:
— A medicina tem um parecer, Deus tem outro. Creio que meu esposo pode ser curado por Ele — sua voz saiu engasgada.
Depois da fala da avó, houve alguns murmúrios dos presentes tentando arrancar respostas menos cruéis dos médicos. Sem chance, repetiram, mesmo que de outra forma, a mesma resposta. Sr. Benito, como dizem no dito popular, estava desenganado pela medicina.
As netas pediram aos médicos, imploraram que ao menos Sr. Benito fosse removido para outro quarto com menos movimento, pacientes e barulho, que o local tivesse janelas, atendendo a uma melhor o acomodamento dele, pelo menos naqueles que seriam os seus últimos dias de vida.
O geriatra disse que iriam conversarem no Administrativo, fariam o possível para ver a possibilidade de atenderem ao pedido. Retiraram-se.
*** *** *** ***
Tatá percebeu que falavam a verdade. Missão difícil a de médico, ter que escancarar a verdade. Naquele contexto, o conhecimento de causa levou os especialistas anteciparem o que iria acontecer com Sr. Benito. A morte. Ela foi para casa naquele dia como que saída da sala de uma audiência judicial, depois do Juiz ter lido a sentença condenatória.
Na madrugada, como de costume, Tatá acordou por volta das quatro horas. Mesmo com o corpo lânguido, arrastou-se até a cadeira de rodas. Dirigiu-se até a varanda frontal da residência, posicionou-se em meditação, depois da oração do “Pai Nosso”.
Ficou uns quarenta minutos em silêncio, sentiu a quietude egoisticamente, como se a noite e Deus estivesse somente para ela, ao ponto de não sobrar nem a si mesma. Sentiu-se invadida pela frescura penetrante da noite, que a lançou para fora; pairava no seu interior, sem personalidade, ausente na foto.
Como que ouvindo uma cavalaria aos galopes vindo se aproximar, emergida da imensidão silenciosa a que estava abandonada, foi despertada. Era a chuva que se aproximava. Assustou-se, destravou a cadeira de rodas, pegou a almofada que dava apoio aos pés. Quando ia entrando para o interior da casa, sentiu as primeiras gotas de chuva no rosto.
Subiu a rampinha de acesso a sala, dirigiu até o quarto. Em si, conduziu o corpo até cama, sentiu frio. Empurrou a coberta até os ombros. Adormeceu.
Por que escolhi este texto?
Tatá na Jaguaribe é uma série de situações vividas por uma cadeirante. O primeiro conto https://www.recantodasletras.com.br/contos/6510050 é de novembro de 2018 e o último, de 30/09 2019, tem o número 36 https://www.recantodasletras.com.br/contos/6758029. O texto 20, que escolhi, é um trecho de uma possível narrativa mais longa, no futuro.
A palavra Jaguaribe tem origem Tupi, significa “rio das onças”, é nome de cidade cearense; mas, nos contos é a marca da cadeira-de-rodas usada pela protagonista. A autora, por conta de uma neuropatia axonal aguda (AMAN), que lhe causou a perda dos movimentos físicos voluntários e involuntários quase que por completo, tornou-se tetra paraplégica da noite para o dia e, na cadeira de rodas. Com muita persistência vem se recuperando gradativamente e já consegue usar o computador. Assim, não sei, até que ponto, a série não seria autobiográfica…
Márcia Maria foi minha aluna de Português, excelente e, hoje, é uma boa amiga que me estimulou e estimula, também, a escrever.
Sobre a autora:
Márcia Maria Anaga nasceu em 1976, em Batatais, quando os pais já residiam em Santo Antônio da Alegria, assim, cresceu e sempre se considerou cidadã alegriense. Desde a infância tinha o efervescer imaginativo despertado. Adorava compor versos e encontrou seu lugar no mundo da leitura. Formou-se em Direito, em 1999, e, em 2008, graduou-se também em Filosofia.
Em 2012, teve interrompidas suas atividades profissionais por causa da doença. Com um olhar renovado sobre o mundo, teve despertada a vontade de se externar, por meio da escrita. Tem alguns livros publicados: “Cômodos da Casa”, “Poesias e Fragmentos”, “Lídia e Três Amores”, “Ziguezagueando”, “Ilhada Dentro de Si”, “Ressurreições e Faces da Angústia”; um livro de reflexão, um de contos, crônicas e prosa, romances; além disso tem contos publicados em antologias e digitais nos sites Recanto das Letras e Facebook.
Eu escolhi esse texto para “nos inspirar”. A opção se deve à autora, com justifiquei acima. Mas, tentemos analisar o texto em si, concentrando a atenção na sua composição e nos efeitos de sentido que daí decorrem.
A narrativa trata da divergência de pontos de vista entre médico e familiares do doente: a seriedade da opinião profissional comparados à gratuidade e sentimentalismo da emoção, dos sentimentos e o resultado que se cria para quem está em permeio à Ciência e coração e frágil pela sua situação (a protagonista).
A mensagem seria que o homem é um ser passivo que se limita a sofrer as transformações realizadas pela vida ou pelo destino – assim, o enunciado manifesta um ponto de vista, uma visão de mundo. Temos um texto figurativo aqui, que joga com dados concretos para, por meio deles, revelar significados mais abstratos. Seu sentido nasce do encadeamento das cenas verossímeis e coerentes, como um rede.
Parabéns, Márcia, por conseguir dar tanta profundidade a um texto aparentemente tão simples, com linguagem tão leve e corriqueira. Beijos.
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Oi, Fátima!
Excelente escolha….eu estou absurdamente comovida com o conto (fragmento, pelo que entedi) da autora Márcia Maria.
Márcia, meus parabéns pela sensibilidade do conto, me vi ali,, no quarto, junto à família, e com a protagonista, quando ela reflete sobre a vida, a tênue linha que nos separa da morte, a forma com que você representou isso através de figuras é sensacional.
Gostaria muito de ler seus outros textos, vou buscar no RL e no Facebook.
Você, além de uma talentosa escritora, é um exemplo de vida (sem ser clichê).
Parabéns,
Beijos!!
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Ótima escolha, Fátima, querida. Um texto sensível, vindo de uma escritora que, ao invés de se esconder, se mostra por dentro e por fora.
Obrigada.
Beijos
Paula Giannini
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