— Como assim, Letícia?
— Não sei! Aconteceu.
— Você não tava tomando remédio?
— Tava! Mas às vezes eu esqueço…
— Não acredito! Você tem certeza?
— Praticamente. Deu positivo no exame de farmácia. Repeti ontem, te falei. Só falta confirmar no exame de sangue.
No dia seguinte o exame de laboratório confirmou. Letícia estava na quinta semana de gravidez.
Eu não era nada, nem sequer uma hipótese. Mas como um sopro do futuro varria de sua memória a certeza sobre ter tomado ou não, um ou vários, comprimidos da droga.
— Vai ser uma decepção pra minha mãe, meu pai…
— Calma, a gente vai dar um jeito.
— Ainda por cima vai nascer em agosto, vou perder o semestre.
— A gente pode… sei lá… tirar o bebê.
A hipótese sequer tinha passado pela cabeça de Letícia.
— Acho que eu não tenho coragem. Você tem?
Daniel tinha, mas preferiu não responder.
— Ou então… você tem o bebê e a minha mãe cria. Acho que ela topa. Foi professora, adora criança.
Uma careta, mistura de surpresa e asco, tomou o lugar da expressão anterior de desânimo no rosto de Letícia.
— Que ideia maluca é essa, Daniel? Dar meu filho pra tua mãe? Que idiotice!
Eu era apenas um coração que batia sentido certas horas.
Dezembro começava e os dois, sobrecarregados de provas finais e trabalhos para entregar na faculdade, decidiram adiar a discussão. À Letícia coube lidar com o sono mortal e um enjoo leve mas persistente que coisa alguma — nem comer, nem jejuar — aliviava. Daniel, completamente perturbado com a hipótese de ser pai — perder sua vida para sempre, dramatizava— pouco se concentrava na faculdade. Filmes e idas ao shopping preenchiam o tempo que lhe sobrava depois de resolver bem rápido e de qualquer maneira as provas.
O corpo dela era minha casa. Eu ainda não era um peso, mas um transtorno de hormônios. Do futuro, sorria para dar um alento e usando alguma magia soprava dentro da sua cabeça respostas.
Com a desculpa dos estudos, Daniel deixou de procurá-la, exceto por mensagens curtas e descontinuadas. Letícia quebrou o gelo em uma sexta-feira, ainda faltava finalizar o último trabalho da faculdade, em quinze dias seria Natal. Ligou queixando-se das mudanças no corpo. Achava conveniente ir ao médico para saber se estava tudo normal, mas não podia ser pelo plano de saúde porque o pais podiam desconfiar. Precisavam conversar.
Encontraram-se no sábado no shopping. Foram ao cinema, depois sentaram na praça de alimentação, em uma mesa afastada, para lanchar.
Letícia contou sobre o bebê, uma menina de olhos cinzentos cujo sorriso cavava covinhas nos dois lados da face, que dera de aparecer nos seus sonhos. Falou também da espécie de clarividência que a fizera antecipar várias questões que caíram nas provas. Comentava empolgada parecendo atribuir efeitos mágicos à gravidez indesejada. Era isso que Daniel pensava, calado, escutando-a, muito assustado.
Não sem discretas lágrimas comovidas, decidiram, ainda durante essa conversa no shopping, que não estavam preparados para dar à luz esse bebê, que Letícia estava certa de ser uma menina, a quem chamaria Flora se Daniel não se opusesse.
Daniel conseguiria o dinheiro e também procuraria uma clínica bem recomendada. Na verdade, ele já havia encontrado. Também se encarregaria de marcar, durante a semana que entrava, o mais cedo que pudesse.
De olhos inexistentes, não havia como verter lágrimas. Mas a natureza conspirava e o tempo era meu aliado.
Daniel só conseguiu agendar o procedimento para a manhã de sexta-feira. O único horário disponível antes de a clínica entrar em recesso para os feriados. Letícia preferia que fosse antes. A espera aumentava sua tortura psicológica. Se era para resolver daquela maneira, que fosse logo.
Na véspera, dormiu mal. Ansiosa, passou a noite se alternando entre idas ao banheiro e goles de água, o coração ecoando nas têmporas mantendo os olhos abertos sem paz. Talvez por isso tenha se desequilibrado no degrau da cozinha e caído desastrosamente sobre o braço logo pela manhã, ainda de pijama. Conseguiu se servir de um expresso amargo, já o sanduíche não deu conta de preparar, o pulso direito doía demais a qualquer movimento.
Ao dar com ela choramingando sentada na mesa da copa, o braço dolorido e inchado, a mãe ajudou-a a se vestir, dando-se conta de como a filha havia subitamente encorpado, e tratou de levá-la ao hospital. Antes de sair de casa, aproveitando o momento em que a mãe a deixara sozinha para terminar de se arrumar, Letícia gravou um áudio para Daniel contando o que havia acontecido, agoniada, a voz pastosa, lágrimas descontroladas.
De dentro dela, se eu já tivesse lábios, estaria sorrindo satisfeita nessa hora.
Até Daniel ficou cismado — o acidente havia acontecido justo no momento mais impróprio, como se alguma coisa, o destino, quisesse desviá-los do desfecho rascunhado. Foi visitar Letícia no dia seguinte, uma caixa de bombons embaixo do braço. A imagem do chocolate derretido na embalagem foi suficiente para embrulhá-la o que fez Daniel comover-se, de verdade pela primeira vez, com o drama que protagonizavam. Abraçou Letícia querendo que seu corpo se fundisse ao dela, que o mal-estar dela fosse também seu, que houvesse alguma coisa que pudesse fazer para tornar as coisas mais fáceis para ela.
Espremida entre eles, se já tivesse quatro meses, teria esticado as pernas, os braços, participado do abraço.
Porque era quase Natal, a mãe de Daniel havia lhe atribuído mil e uma tarefas. Além de escolher os presentes dos primos e primas que regulavam em idade com ele, estava, na ausência do tio, escalado para estrear como Papai Noel na festa de família, que nesse ano reuniria um ramo de parentes que ele mal conhecia porque moravam em outro estado.
Só voltou a ver Letícia no fim da tarde do dia vinte e quatro. Uma passadinha rápida na casa dela para entregar o presente que havia comprado, um anel de prata com dois singelos corações entrelaçados que ela recebeu com um sorriso doce e os olhos cinzentos úmidos de felicidade.
Quando chegou de volta em casa, por volta das oito, a maior parte dos convidados já havia chegado. Teve que ser apresentado aos familiares distantes e ficou surpreso com a quantidade de crianças de diferentes idades espalhadas pelos cômodos da casa.
Assim que se desvencilhou dos convidados foi checar no quarto dos pais se estava tudo certo para sua aparição como Papai Noel mais tarde. Da porta avistou a garotinha sentada na cama king size dos pais. Explorava com as mãozinhas o grande saco vermelho que guardava os presentes que seriam distribuídos às crianças logo mais, ela própria parecendo um presentinho em seu vestido vermelho, um laço do mesmo tecido enfeitando o cabelo, alguns embrulhos espalhados sobre a colcha, um dele sobre as pernas graciosamente cruzadas.
Surpreendida com sua chegada, a menina virou-se, a boca entreaberta, arregalando os grandes olhos acinzentados.
— Papai! — Sorriu cavando duas covinhas nas bochechas coradas.
Ser chamado de pai, assim, sem esperar, fez o coração de Daniel quase parar. No rosto, um sorriso bobo antes de falar.
— Como é o seu nome, garotinha?
— Eu sou a Flora! — As covinhas ainda, esperta, os olhos brilhando.
Daniel perdeu a cor.
Nisso, sua mãe chamou-o do corredor pedindo que a acudisse. Meio desequilibrada, segurava em cada mão duas sacolas, mais presentes trazidos pelos convidados para serem distribuídos à meia-noite. Daniel deu as costas à menina e saiu do quarto para ajudá-la.
— Que cara é essa, meu filho? Parece que viu um fantasma!
— Tem uma garotinha perdida no quarto mexendo nos presentes, mãe. Deve ser filha de algum dos seus convidados… Flora, me disse, é o seu nome.
— Flora? Tem certeza? — Estranhou a mãe, os dois já entrando de volta no quarto.
— Ué?! Cadê ela?
O saco de cetim vermelho estava fechado, nenhum presente espalhado. Olhou debaixo da cama, checou ao lado do armário. Ao tocar a colcha, ligeiramente amassada no lugar onde a menina estivera, sentiu um cheiro, um calor.
Só podia ser ela. Uma certeza antecipada.
Mal prestou atenção ao que a mãe lhe explicava sobre trocar de roupa no apartamento do vizinho da frente, tocar a campainha exatamente à meia-noite, etc. Só pensava em falar com Letícia, se bem que agora já não mais havia qualquer urgência.
Que lindo!!! Esse é sempre um tema complicado, eu sou contra o aborto, então eu não faria, mas também defendo o direito das mulheres decidirem sobre suas vidas, mas no caso do conto, a decisão foi acertada com toda certeza e os futuros pais já são felizes com o presente de Natal que receberam. Muito bom e comovente… Abraços ❤
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Muita emoção! Desistir de um aborto traz sempre muita paixão, ainda mais de forma mágica, como um presente de Natal.
O enredo é muito bem construído, do início ao fim. A transição do desejo imediato de um aborto para a decisão final foi uma espécie de metáfora do que acontecia na mente do protagonista. O assunto foi bem trabalhado, de maneira bem original, espontânea, cativante e mesmo que o aborto X não-aborto seja meio clichê, aqui tomou novas tonalidades. A mensagem é clara: o amor à vida.
É um conto com reflexões profundas e existenciais, bem escrito, com imagens nítidas, bem narradas, e com tons únicos de sua autoria. A linguagem de uso comum, a ambientação do dia-a-dia dão, à narrativa um fluxo de verossimilhança, de intimidade, de aproximação com o leitor.
Parabéns pelo trabalho! Feliz Natal e um grande abraço.
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Que lindo, eu amei.
E como ficou bom somar à fantasia do natal o tema fantástico.
Acho que o conto é bem profundo e convida a alguns pensamentos importantes.
Parabéns pelo conto!
Feliz Natal!
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Olá, querida amiga Contista!
Ahhh que conto mais lindo!! Eu amei! Uma criança destinada a nascer, custe o que custar! Muito bem escrito, com os pensamentos do bebê tão poéticos e a narração tão direta e eficiente, sem deixar de ser bela! Muito bom mesmo! Parabéns!!
Um feliz Natal para você e sua família! Bjoooo
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Que lindo! Me trouxe lágrimas aos olhos. Que casal mais bonitinho!!
Lembrei de mim, grávida aos 17 anos, nem cogitamos tirar.. rsrs apesar de assustados fomos um casalzinho bem feliz com a gravidez, acredito q assim como estes protagonistas ficarão.
Bem queria eu ter visto a minha Cecília antes de nascer.. ❤
e eu tb tinha certeza absoluta de q era menina, tanto q nem tínhamos um nome masculino para o bebê, sempre foi Cecília.
Parabéns, contista, o conto está muito bom de ler, sensível e poético.
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Nossa, menina! Fiquei com os olhos cheios d’água!
Um conto emocionante sobre um tema difícil. Fiquei o tempo todo tensa com medo que eles fizessem o aborto. Amo crianças, bebês mais ainda. E o fato de vc ter dado fala, pensamentos, reflexões e as coisas que a bebê faria se fosse um pouco maior, foi de arrepiar.
Parabéns. Os melhores contos são os que me emocionam e vc conseguiu isso.
Grande abraço, feliz natal e muita sorte no desafio.
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Olá, amiga Contista!
Primeiramente, parabéns por conseguir conduzir de uma forma tão doce e emocionante um tema tão delicado, tão cheio de questões, quanto de respostas – todas vagas, no fim.
Eu a-m-e-i o desenrolar da história, a forma com que a menina ficou assustada, mas já apaixonada pela bebê, o jovem, tão real (qual adolescente não pensaria nisso, inicialmente?) – e finalmente a visão da pequena brincando e mostrando que sim, ela já era uma linda realidade.
Seu conto me tocou muito!
Desejo a vc um Feliz Natal e um 2020 com muitas felicidades!! ❤
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Querida Contista,
Tudo bem?
Muito bonita a imagem da filha que ainda virá a nascer como espírito de Natal. Este detalhe em particular, imprime uma emoção especial à leitura.
Ando muito sensível, sobretudo no que toca os bebês. Então, obviamente chorei, mas, mais que isso, enxerguei cada detalhe de seu conto, como em um filme.
Li todos os contos postados até aqui, e, estranhamente, parece que cada um fala de um pedacinho de mim, talvez de todas. Isso é lindo, parece que estamos todas sintonizadas.
Parabéns pelo trabalho tão gostoso de se ler.
Desejo um Natal de muito amor e um Ano Novo de luz para você e os seus.
Beijos
Paula Giannini
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Mais que uma história sobre aborto-não aborto vi aqui uma história sobre a pulsão da vida abrindo seus caminhos. Esse bebê meio fantasmático que desde antes da concepção já se impõem como um destino aos seus futuros pais soou-me como a própria vida forçando passagem. Mas o conto também mostra o amadurecimento e uma espécie de empoderamento que essa adesão ao fluxo da vida provoca nos jovens adolescentes grávidos. Um conto com uma mensagem muito otimista, necessária em tempos tão sombrios, que esconde sua profundidade em uma narrativa leve e um enredo agradável. Parabéns! Desejo um Feliz Natal e um Ano Novo muito inspirado, querida Contista. Beijo carinhoso.
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Um lindo conto de Natal com uma mensagem de amor e esperança. Dois jovens que se julgam despreparados para serem pais, encontram no imponderável a motivação para enfrentarem o novo desafio.
O texto revela uma linguagem simples, clara, que toca com delicadeza em um assunto complicado. Que bom que Flora irá nascer e colorir a vida de todos a sua volta. Uma narrativa delicada, leve e que faz pensar. E se não dermos a chance do futuro chegar, o que será de nós? Só passado?
Feliz Natal e um lindo 2020 para você. Beijos.
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Que lindo! Fiquei o tempo todo torcendo para que fosse esse o final. Sou a favor de que a mulher não seja criminalizada caso ache que deve fazer esse procedimento, principalmente em casos de estupro, casos orgânicos, quando se sabe que o feto não sobreviverá, enfim… Mas eu, particularmente, não teria coragem. Talvez, quando adolescente, em uma situação extrema, tivesse, mas um bebê, uma vida que acaba de nascer é uma carga tão grande de esperança! ^^
Obrigada pelo conto lindo, amei! Feliz Natal pra você, que o seu Ano Novo seja de paz, saúde e amor… ❤
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Ola, Contista!
Uffa. Torci por esse final e ainda bem que aconteceu. Uma situação que só quem vive pode entender ou julgar. Ainda assim sempre acredito que essa é a escolha a ser feita, não exatamente a certa.
Um conto muito bem construído, pensando e executado. Verossímil crível. Bons personagens que vivem de acordo com sua realidade.
O final regado ao encanto de natal foi perfeito.
Parabéns, feliz natal.
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Boa noite, Contista!
Bom texto. As epigrafes aumentando a tensão, a aparição da menina de vermelho aí, a trama em si é de fato complicada.
Abortar deve por vontade, de caso pensado deve ser um peso que se leva pra vida e seu texto foi feliz em repassar a mensagem.
Parabéns e boa sorte.
Feliz Natal!
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É um texto que acaba nos levando para a ternura e igualmente questiona a maternidade/paternidade consciente apesar do apelo emocional.
Parabéns pelo texto.
Abraços.
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