Branco é o animal ferido,
as asas de anjo encolhidas,
prostrado no asfalto frio.
Seu parceiro de uma vida,
o coração partido,
desliza sozinho no rio.
Isso, o amor desfeito
antes do anjo caído,
intriga o turista
que escorrega pelas ruas da cidade
também sozinho,
em despedida.
Pensa em salvá-lo
— tão alvo, tão liso —
com aquele bico indefinido
se de tédio, maldade ou riso.
Mas vai molhar o casaco,
impregnar sua lã macia
com o cheiro marrom do rio.
Além do mais,
como rogar ajuda a alguém,
interromper o trânsito,
avisar à polícia, talvez,
(como se polícia servisse
para salvar cisnes feridos)
naquela língua?
Desculpa? Desdém pela vida do bicho?
A certeza de que a morte chega um dia
para todos
— as aves incluídas —
o paralisa.
Não que não sinta a dor do cisne
o impulso de ajudá-lo
o medo de que morra,
mais ainda, de que sofra
ou o horror de vê-lo esmigalhado,
sangue e penas por todo lado
sob as rodas de algum carro.
[Não que não coma
a coxa, a pata
de seus primos — gansos, patos —
esquartejada
acompanhada de batata,
purê de maça e repolho.]
Mas logo enfim chega alguém
que felizmente fala a língua
e não pensa em morte ainda
Sobre o branco da blusa limpa
veste o colete verde
e dá o troco:
suspende o bonde,
cujos energizados fios
interrompem tantos voos,
e salva o bicho.
E o turista a quem a morte assombra e alivia
parado por mais um instante
assiste ao socorro canhestro
distante,
lamenta uma vez mais pelo cisne
e volta a flanar,
encher-se de ar
pelas ruas, pela vida
antes de sua partida.
Uau, que texto lindo. Sensível, nos leva ao cenário e às sensações de forma delicada e brilhante. Muito bom. Parabéns.
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Obrigada pela leitura e comentário, Fernanda! As viagens sempre acabam rendendo um ou outo texto. Feliz que tenha gostado. Beijos
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Eu tive um blog. Só escrevia bobagens, nunca consegui concatenar as ideias para algo realmente útil ou digno. Percebi hoje que tem tempo que ensaio para vistar seu blog e hoje eu vim. Eu me saboto. Parabéns, Elisa. Seus textos são um encanto.
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Olá! Um tapa na cara com delicadeza rsrsrs. Lembrei do Mário Sérgio Cortella quando ele diz que o pessimista é um vagabundo que está sempre dizendo: “Que horror, alguém tem que fazer alguma coisa!”, mas ele mesmo, não faz nada!
Um belo poema, que além de ser belo, nos faz pensar nas nossas próprias ações, seremos nós o turista que só observa?
Bjs ❤
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Que bom que você gostou, Vanessa. Na verdade o que mais me deixou abismada foi perceber que a cidade convive aparentemente em paz com os acidentes com os cisnes. Vi acontecer duas vezes durante minha curta estadia.Obrigada pela leitura, querida. Beijos.
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Acontece em Praga, acontece em qualquer lugar. Às vezes nos deparamos com situações terríveis que nos enchem de angústia, que exigem de nós algo além da empatia, mas que ainda assim nos paralisam. Esse terror ganha cores ainda mais fortes quando alguém, no nosso lugar, toma a iniciativa e faz cessar o perigo. Aí a nossa angústia se transforma em vergonha. Mas talvez nos ensine uma lição, não é mesmo? Adorei seu poema porque ele fala de segredos que temos em nosso íntimo. Parabéns. Esperando aqui algo sobre Viena.
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Muito grata pela sua leitura e comentário, Gustavo. Somos seres de contradições, queremos salvar o cisne, mas não queremos sujar as mãos ou molhar o casaco e quando comemos uma coxa de ganso nem lembramos que antes da coxa houve um animal, talvez feliz, deslizando no rio. Esses cisnes atropelados por fios em Praga (vi acontecer duas vezes em uma curta estadia) mexeram comigo. Tenho alguma coisa escrita sobre Viena no meu celular. Quem sabe rende um poema. Beijos.
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Querida Elisa,
Tudo bem?
Não vou repetir que seu melhor momento é a poesia, pois estaria sendo injusta (e redundante). Sua poesia é um conto, e, seu conto também guarda aquela veia poética que por aqui aprendemos a conhecer.
Este seu texto sou tão eu… Ou talvez sejamos todas. Você tem esse dom em criar empatia narrativa. Vida, morte, medo, paralisia diante do certo ou do errado a se fazer, paralisia diante da dor, ao passo também que um resguardar-se dela e do inconveniente, tudo que passa na cabeça de todas nós. Reflexões perfeitas em um texto primoroso.
Parabéns, como sempre.
Beijos
Paula Giannini
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Viagens rendem, não é, Paulinha? E cisnes atropelados por fios também. Como falei acima na resposta ao Gustavo, somos todos seres de contradição, coerência não é nosso forte. Mas o que mais me aturdiu nisso dos cisnes abatidos é a convivência da cidade com os acidentes. Obrigada pela leitura e comentário sempre tão sensível e carinhoso. Você é uma flor. Beijos.
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Pensei o mesmo que a Paula – que o seu poema lembra um conto, tem toda uma narrativa ali nos versos. E os seus contos têm poesia por todos os lados, mesmo que você queira cortar o lirismo com uma faca de prata (risos).
Um poema lindo, que aponta para um detalhe que só mesmo um olhar embebido em delicadeza poderia notar – a presença de um cisne ferido. Afinal, Praga tem tantos atrativos, e o eu lírico a atentar para a ave que sofre. Um ponto de mácula em meio a um conto de fadas, o detalhe que faz toda a diferença. Também percebi a distinção entre alguém que observa a cena com sensibilidade, mas teme piorar ainda mais a situação e se paralisa , e o outro personagem que apenas age em busca de uma solução para a ave ferida. Lindo!
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Que comentário mais querido, Claudia. Obrigada. Sim, é um conto, uma história que julguei combinar melhor com uma linguagem mais poética. Cisnes são criaturas muito inspiradoras. Outro dia vi um sozinho, com a asa cortada, enfeitando o lago de um hotel e imediatamente inventei um enredo para vingá-lo daquela tragédia. Muito agradecida pela sua leitura e comentário tão sensível. Beijos.
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O texto é uma narração, mas é, sobretudo, uma poesia que transfigura o real, que permite a visão em profundidade, que capta os múltiplos ângulos de uma situação, de mansinho, com sentimentos e originalidade.Da forma como você, Elisa, organizou as palavras, não apenas retratou as cenas vistas pelo turista, mas as recriou impregnadas de emoção, traduzida em significados novos.
Foram alcançados uma série de efeitos de sentido somente pela maneira pela qual dispôs as palavras no texto: a visualização fácil, a sonoridade com ritmo incisivo, martelado, que recria a afirmação de revolta presente na trama. Estilo e temática se fundiram, fazendo surgir uma rica série de close-ups do mundo inquietante da poeta.
Parabéns! Vejo que está fazendo um bom aproveitamento de suas andanças pela Europa. Um forte abraço.
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Sim, Fátima, tentando fazer valer a oportunidade de estar por aqui para mergulhar nessa multiplicidade de culturas que, vistas de perto, só se assemelham na superfície. Muito obrigada pelo seu comentário, tão precioso sempre. O texto é mesmo um poema narrativo, achei que o tema renderia mais, ao menos para mim, na forma de poesia. Ainda haveria muito mais a dizer, mas o poema acabaria ficando muito longo. Quem sabe uma hora dessas volto a ele. Beijos carinhosos.
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Acho a coisa mais linda quando algo acontece e alguém consegue descrever o momento em palavras. Você aproveitou a viagem e cena aqui descritas pra fazer poesia com as letras! O texto ficou ótimo! Parabéns! ❤
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Obrigada, Marília, pela leitura e comentário. Acabei de ler e comentar o seu último texto. Beijos
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Um texto poético cortante, uma denúncia, uma dor e uma atitude : a de se eximir. Eu me sinto como o seu turista cada vez que vejo um cãozinho perdido, faminto e desorientado e não o recolho, porque não tenho a coragem necessária.
Muitas vezes parei e dei o meu almoço que levava para o trabalho. Mas e nos outros almoços, como ele fará?
É doloroso e muito real. Um grito da alerta, uma flechada no coração. Deu vontade de chorar.
Beijos.
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Ai, ai, Iolanda. Nem me fale de cãezinhos com fome. Outro dia, um que estava focinhando a lata de lixo me seguiu, todo mau-caráter sedutor por causa do presunto que eu trazia do mercado e não tive outro jeito senão dar quase a metade pra ele. Felizmente por aqui não vejo muitos pela rua, acho que são recolhidos rapidamente. O acidente com os cisnes em Praga, vi acontecer duas vezes. De lascar. Nós humanos e nossa arrogância. Obrigada pela leitura, querida. Beijos.
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Elisa, falávamos esses dias sobre como a morte vai chegando devagarinho e se disfarçando de coisas do dia-a-dia até se aproximar, e ficar.
Esse poema é lindo! Retrata a característica própria da poeta de atingir o leitor, com palavras que se aproximam, que ficam na gente. E retrata também essa visualização que, conforme tu mesma disse, depois de um certo tempo, temos da morte.
Beijos, minha amiga do ❤
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A morte – que assombra e alivia – vai meio que se misturando com a vida a medida que envelhecemos, tornado-se cada vez mais tangível, para o bem e para o mal, é o que penso. Obrigada pela leitura, querida. Passei lá no seu e deixei um comentário. Beijos
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Elisa… Esse poema é lindo e me deixou indignada, porque sei bem que é verdade. As pessoas não estão nem aí para o sofrimento dos outros, que dirá de um cisne. Se não for o medo, será a falta de conhecimento para fazer o melhor; se não for o tempo precioso perdido salvando uma criatura, será a preocupação exagerada com o estado que a roupa vai ficar. Sempre há um porém entre o que é preciso ser feito e o coração congelado pelo tempo do agora, nesse ocidente tão liberal e ‘de bem’.
Parabéns pelo texto.
Abraços!
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