Um barulho na janela tirou minha atenção da leitura. Dali de onde eu estava, na poltrona, espichei um pouco o pescoço e consegui ver que era uma espécie de pássaro em pé sobre o parapeito, do lado de fora. Deixei o livro de lado e fui até lá. Era um pombo quase todo branco, não fosse pelas penas negras na cauda e algumas manchinhas na cabeça. Assim que percebeu que eu o examinava, começou a bater a cabecinha no vidro, insistentemente, uma, duas, três, quatro vezes.
Com as mãos sobre a boca, fui me afastando, um pouco mais a cada golpe seco sobre a vidraça, o tec tec me afligindo, não sei se pelo inusitado da situação ou pela possibilidade dele estar se machucando com aquele ato repetido.
Então, ele parou e olhou para mim, e eu me reaproximei. Se encontrasse sangue, não saberia o que fazer, mas ele estava intacto, ao menos por fora. Ficamos ali, observando um ao outro por alguns instantes, até que algo tornou a cena ainda mais incomum, a ave tinha, preso à perna direita, um papel enrolado. Era um pombo-correio, em pleno 2020.
Entre hesitante e curiosa, abri a janela bem devagar para não assustá-lo, mas ele não parecia nem um pouco propenso a assustar-se. Assim que o vão ganhou a sua largura, ele entrou, em um voo baixo e tranquilo, aterrissando sobre a mesinha de centro.
Acerquei-me, estendendo a mão e esboçando um sorriso, ainda que amarelo, na intenção de sinalizar que eu não queria machucá-lo. Quase em câmera lenta, como se pudesse quebrá-lo ao leve toque, consegui tirar o papel, desenrolar e ler a mensagem. Eram quatro linhas, quatro versos de um poema, aparentemente inacabado.
Fiquei encarando o pedaço de papel, balbuciando as palavras repetidamente, como se assim eu pudesse desvendar os mistérios daquela situação inusitada. Era realmente para mim ou aquele pombo havia errado o endereço? Quem o havia enviado? Diante da inércia da ave, que se mantinha sobre a mesinha olhando para mim, peguei um pedaço de papel, de igual tamanho e escrevi, caprichando na letra: quem é você?. Já me preparava para outras três perguntas, quando o pombo sacudiu a cabecinha. Mesmo ciente de que ele não seria capaz de me censurar a ousadia, preferi refrear um pouco a minha curiosidade. Virei o papel e criei eu mesma uma nova estrofe, com quatro outros versos que completavam a que eu havia recebido. Sempre amei escrever poesia. Que bela coincidência. Amarrei o papel à delicada perninha e ele levantou voo janela afora.
Naquela noite não dormi, ansiosa pelo retorno do pombo, que eu nem sabia se retornaria. Mas ele retornou, no dia seguinte, na mesma hora, e eu abri a janela sem receio, bastante entusiasmada, inclusive. O pombo também parecia ainda mais à vontade diante da minha presença. Entrou num voo rasante, pousou sobre a mesinha e olhou para mim. Senti até um friozinho na barriga. No novo bilhetinho, não havia resposta à minha pergunta, mas novos versos de um poema. Com medo de que o pombo-correio nunca mais voltasse, desisti das indagações e escrevi os versos que eu sentia que cabiam a mim. Ao ver a ave partindo com a minha mensagem, sorri sozinha daquela espécie de folia à qual havia me rendido.
Folia maior foi quando decidi chama-lo de Drummond, nome que ele recebeu com uma reverência, abaixando levemente a cabecinha.
Durante um mês, Drummond pousou na minha mesinha, voando casa adentro pela janela antecipadamente aberta. Trouxe trinta estrofes sobre os mais variados temas, e o remetente, que nunca conheci, recebeu igualmente, as trinta metades que completaram as suas. Então, o meu pombo sumiu.
Até que uma semana depois, ele voltou e encontrou a janela entreaberta, como a havia mantido por todos os dias de sua ausência. Antes de desenrolar o papel, baixei a cabeça em reverência e pude ver em seus olhinhos brilhantes que ele achou engraçado. No bilhete, encontrei não um poema, mas um nome manuscrito com a mesma bela letra à qual havia me afeiçoado. Julio Cintra. Finalmente, a identidade do remetente. Cheguei a bater palmas e dar pequenos saltos no ar. O pombo baixou a cabecinha e eu julguei que aquela resposta tardia à minha reverência fosse uma espécie de comemoração.
Uma ansiedade me envolveu e eu tive o pressentimento de que, talvez com o nome revelado, ele enfim batesse à minha porta e trouxesse um novo poema para entregar-me em mãos. As borboletas batiam asas na minha barriga, e eu cheguei até a ouvir passos se aproximando pela porta da frente. Fui arrancada de meus devaneios pelo barulho do bico de Drummond batendo insistentemente no chão. Fui até ele com a mesma ansiedade que as batidas de sua cabecinha no vidro me provocaram em nosso primeiro encontro.
Assim que eu me aproximei, ele se afastou e eu observei, com a atenção que nunca havia dedicado àquela velha tábua de madeira, que ela estava solta. Com certo esforço e o auxílio de uma faca, puxei o pedaço do piso e me deparei com um buraco, nele, um calhamaço manuscrito. Eram os nossos poemas. Sem entender o que eles faziam ali, devorei cada um dos versos, ainda frescos em minha memória, como se nunca os tivesse visto. Quando cheguei à última página, Drummond voou janela afora, num adeus sem despedida. Então, li, grafado numa letra ainda maior e mais rebuscada, o nome dele, Julio Cintra. E o ano, 1965.
Sim, meu querido Drummond havia atravessado não o espaço, a nobre missão de qualquer pombo-correio, mas o tempo, na missão inusitada de dar vida àqueles poemas atemporais.
Que lindo, fantástico e sensível conto, menina Fernanda. Um pombo do tipo sobrenatural mas substancioso, trazendo e levando poesias que, na verdade, apareceram já escritas sob as tábuas do chão do cômodo da sua personagem. Maravilhoso. Muita imaginação e uma linguagem suave mas muito romântica sem deixar de ser casual.
Ah, gostei muito. Que venham mais pombos encantados e contos desta levra. Parabéns.
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Que ótimo saber que gostou. Muito obrigada pela gentileza e incentivo. Bjs
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Sensível, doce e extremamente poético. Fiz uma viagem no tempo aqui, daquelas que a gente lembra de passados vividos, e dos quase vividos.
Aguardando o poema, Fernanda 🌻
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Que doce o seu comentário. Muito obrigada pela generosidade 🥰
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Guria, fiquei arrepiada, acredita?! magnífico o gancho para o dia 15.. que chegue logo!! kkkk
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Primeiro levei um susto achando que irias conversar com o pombo como Poe tentou com o corvo ouvindo dele apenas uma expressão sombria 🙂
Adorei o texto e a forma como foi conduzido
Parabéns
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kkkk adorei seu omentário, KInda. Muito obrigada. E tomara que goste do poema do dia 15 ue vem. Bjs
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Ahhh, Fernanda! Que coisa mais linda! Quanta fofura nesse conto! O começo tão real e cotidiano, mesmo que inusitado e no final uma grata surpresa! O fantástico bate na janela e entra de fininho. Amei! Muito sensível! Parabéns pelo conto! 🥰😍💖😘
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Valeu, Pri, fico muito feliz com sua leitura e comentário. Bjs
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Que maravilha de texto! Li inteiro, querendo saber afinal qual era aquele mistério. E quando tudo se solucionou, fiquei emocionada, não imaginava aquele plot. Lindo, lindo!
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Obrigada, Bia. Legal ter sido uma surpresa boa pra vc. Bjs
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Uau! Teremos novidades em breve… Quais reviravoltas nos aguardam? Fiquei bem curiosa, porque vc deixou mesmo o final totalmente aberto, na verdade eu esperava que ali fosse começar a história. E vai mesmo!!!! Muito bacana, Fernanda. Aos poucos vou te conhecendo melhor como escritora. Estou gostando muito!
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Oi, Ju, que bom que gostou… mas espero não decepcioná-la porque a história acabou sim… rsrs. No último parágrafo ela explica que o pombo estava fazendo uma viagem no tempo. O ano ao lado do nome do Julio é a data em que ele estava. Ele morou naquela mesma casa em 1965 e o pombo fez a troca dos bilhetes. Assim que o último poema foi escrito em conjunto, ele colocou o manuscrito sob a tábua e mandou o pombo para avisá-la. Bom, no dia 15 tem mais uma continuação sim, o primeiro poema escrito por eles. Beijos e obrigada.
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Que graça de texto, Fernanda. O suspense na mediada certa aliado à leveza da linguagem e a delicadeza da trama me fez seguir adiante curiosa e encantada com esse pombo sobrenatural. Aguardando ansiosa esse diálogo de dedos e patas. Beijos
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que bom ler este comentário cuidadoso e generoso. Beijos.
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Oi Fernanda!
Que interessante o seu conto. A história casual sobre o encontro com um pombo correio e, a cada reviravolta, o leitor já está aguçado de tanta curiosidade sobre o desfecho. Muito perspicaz o enredo criado e muita engenhosidade na construção. Arrasou, Fernanda! parabéns pelo conto. O gancho ao final é a cereja do bolo.
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Muito feliz aqui com seu generoso comentário. Muito obrigada.
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Querida e perspicaz Fernanda… rsrsrs
Seu conto me inspirou.
Adoro pombos, você já deve ter percebido. Adoro pombos em narrativas, e, estou gostando mais a cada dia do modo como você engendra o leitor em um tecido pensado e tão belo.
Agora, dia 15 tem que ter poesia, simmmm.
Beijos
Paula Giannini
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OI, Paulinha, obrigada pela leitura e comentário. Sim, os pombos rendem muitas histórias… lembro-me da sua série que foi espetacular. Obrigada pela generosidade. Bjs
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Fernanda, você escreve bem demais. Nasceu muilti-talentosa.
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Ah que linda, obrigada 🥰
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O texto traz um realismo simbólico, com sutileza nas entrelinhas, o lírico cantando o cerne da vida. Você, Fernanda, é uma sensória mais alerta do que um sismógrafo, a registrar os altos e baixos do viver humano. E, as surpresas finais…
Parabéns pela renovação de imagens e significados, palavras exatas e sugestivas, situações fantásticas, que despertam o leitor para sua mensagem profunda e sincera e o prende pela beleza e simplicidade. Amei o pombo-correio-século XXI substituindo os e-mails e WhatsApps.
Enfim, um excelente texto, claro, que gera bastante reflexão. Aguardadando a poesia prometida… Um doce abraço.
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Fátima, minha querida, ler seus comentários é um prazer enorme. Você tem uma sensibilidade ímpar, além da generosidade de ler e comentar com tanto cuidado. Muito obrigada.
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Que interessante este conto. Fiquei imaginando-o em um romance, com mais história do pombo voltando e entregando mensagens além do tempo entre eles. Adorei! Queria mais rsrsrs Bjs ❤
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