Acordou, corpo cansado e dolorido, sobre o papelão sujo que fazia de cama, nas ruas.
Dia quente, fim de setembro. Primeiro pensamento: “foda-se tudo” – sorriu, triste e determinado.
Já nasceu causando desgosto. Celestino Vieira, preto e favelado, filho de pai desconhecido e estuprador, um peso nos ombros da mãe.
Era o que ouvia desde criança, durante a infância, aquela, que não viveu.
Núbia, sua progenitora, que por força das (faltas de) circunstâncias passara a ganhar a vida enfrentando a morte, vendendo o corpo, colecionando passagens pelas delegacias, bocas de fumo e centros de reabilitação – até seu último endereço, o cemitério.
Celestino, que não tinha mais ninguém, vivera de abrigo em abrigo, sem nunca entender o que viera fazer nesse mundo.Sem razão. Sem querer.
Um dia completou dezoito anos e foi para a rua, era assim que funcionava.
Sem chance, passou a vagar. Sem rumo algum, com muita fome e necessidades.
De ladrão e michê a cheirador e cracudo foi um pulo.
Sempre foi mesmo um aborto da natureza, apenas um fodido a mais pelas ruas, arrastando um corpo podre e vergonhoso aos olhos dos outros.
Celestino,quando menos noiado, observava os vivos que, indiferentes, passavam por ele, desde sempre, invisível.
Sempre foi um morto, circulando entre os vivos, que iam e vinham, sorriam, trabalhavam, talvez chorassem, às vezes. Quem sabe?
O trajeto entre a dor e a falta de motivo até as drogas foi curto. A escalada foi só queda, e naquele dia de setembro, Celestino imaginou coisas lindas para sua vida.
Sim, delirou coisas das quais jamais ouvira falar, e numa única alegria viu seu corpo franzino transformar-se num balão lindo e flutuante, pronto para ganhar o céu, também azul.
Gostava do azul. Da sensação de paz, da liberdade do inalcançável.
Em sua cabeça era agora um balão azul e brilhante, como o que tinha visto quando criança, nas mãos de outro menino, no Jardim Zoológico. Sim, ele lembrava direitinho..queria tanto ter aquele balão… Sentiu-se livre, pela primeira vez.
No alto do viaduto, lembrou de ver rapidamente num outdoor ao lado a mensagem Setembro Amarelo – Prevenção ao Suicídio. “Que porra seria aquela?”, pensou, sem compreender mais nada.
Ria e babava incoerências, enquanto seu corpo flutuava no espaço, do viaduto ao chão.
Hora do rush, Dois segundos, passando lentamente. Olhos mais vivos do que nunca, Celestino encontra, enfim, a liberdade, atrapalhando pela última vez a volta para casa daqueles que, na verdade, nunca se importaram com ele.
Um texto curto e impactante. Coisa de quem sabe condensar emoções em pílulas que nos fazem viajar. Assim como Celestino, flutuamos pelo texto pegando ideias que, juntas formam a breve existência de alguém que nem alguém era.
O último voo, o primeiro voo, o único voo permitido. Destino liberdade. A hora da estrela do desconhecido que vai sair nos jornais.
Parabéns, amiga. Vc tem a habilidade de transformar sombras em protagonistas, e faz isso com grande competência. O seu mergulho na humanidade das pessoas é completo, talvez por isso mesmo seus textos vêm sempre com o brinde da dor.
Beijos, Renata..
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Iolandinha,
Sua entrega à leitura e carinho e generosidade me emocionam.
Gratidão, minha amiga
Bjokas🌹
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Olha.. a Iolandinha disse tudo, viu…
Seus mergulhos literários, Renata… são fortes como a vida, sem maquiagem, sem filtros,só verdades.
é muito importante haver esta coragem na literatura.
Parabéns ❤
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Anorkinda
Kinda, linda
Sou só gratidão, com você ❤
Beijos!!
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Texto de impacto, seco, dolorido, necessário.
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Amauri, penso todos os momentos em nossos Celestinos….é sofrido, mas não consigo fugir deles, de seus olhos e almas, pedindo socorro. Obrigada mais uma vez!!
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Rê, seus textos são sempre um soco bem dado, um soco necessário e certeiro. A verdade crua e cruel que você apresenta com maestria. Parabéns por sua escrita forte e coerente. Gostei muito. Parabéns.
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Fernanda, muito obrigada!! Um comentário assim, vindo de você, me anima, enriquece, dá força para seguir nessa lida. Beijos!!
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Um texto que mostra a realidade mais cruel que pode haver, a pessoa chegar ao ponto de se ver sem saída é porque dói, dói demais. O que se quer é acabar com a dor.
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Sim, Amana. Penso no quanto falta de empatia em nosso mundo…ironicamente, Celestino, que era um peso para a sociedade, termina seus tristes dias mais uma “atrapalhando” os “outros” (seres humanos, tanto quanto ele). Gratidão ❤
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Fiquei em dúvida se deveria ou não deixar um comentário, atrasado, para praticamente repetir o que os primeiros já ressaltaram, e me decidi, após reler o texto, por fazer o registro. Sua escrita é muito rica, Renata, tem estilo, carga de sensibilidade, envolvimento. No aspecto técnico também não deixa a desejar aos olhos de um leitor experiente. O texto é bem virgulado, traz pequenas metáforas, domínio da linguagem figurativa. Afora isso, faço dos demais as minhas palavras. Continue escrevendo, moça!
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Olá, Ricardo! Estou feliz demais com seu retorno rs. Retorne, sempre, e espero que goste….muito obrigada pela leitura e pelo feedback, como é importante para quem escreve. E vou continuar, sim!! Abraços!!
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Um texto duro como a realidade que ele retrata. O breve idílio de Celestino é interrompido pela mensagem do “Setembro Amarelo”. Cruel, isso. Efeito de uma bofetada. Brilhante, amiga. Beijos
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Elisa,
exatamente…quantos invisíveis perdidos em setembros amarelos? Setembros sem fim…
Obrigada pela leitura e comentário, amiga.
Beijos
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Os suicidas invisíveis /dizem com o seu não bom dia /com seu rancor/ com o seu medo
com o seu horror / “ eu estou me matando agora”.
E ninguém liga / e ninguém para / e ninguém olha / e ninguém chora…
Não sei a autoria desses versos, mas acho que a mensagem é equivalente ao texto Celestino Vieira. O protagonista está em situação de vulnerabilidade, incapaz de se incluir na sociedade acaba por se matar e ainda atrapalha o trânsito.
De cunho crítico, temos um texto engajado, que aborda assunto político-social e, mas que também busca também a qualidade literária. Parabéns pelo seu ritmo interior no agrupamento de imagens captadas pela sensibilidade e projetadas com fluidez e a clareza.
Um grande abraço.
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Fatima,
Muito obrigada!
Amo seus comentários…mostram tanto conhecimento, e ainda assim, tanto carinho e generosidade.
Beijos!!
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Querida Renata,
Sua voz narrativa, mais madura a cada dia, sobretudo no que toca a questão social, se mostra neste belo texto com toda sua pungência. A economia de palavras traz a força necessária a um assunto tão sério.
A morte atrapalhando o cotidiano de uma cidade é algo extremamente emblemático. O que somos nós? A que servimos?
Parabéns, excelente.
Beijos
Paula Giannini
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Paula,
Leio seu comentário e é tal a sensibilidade que meus olhos se enchem de lágrimas aqui…muito obrigada, mesmo…
Beijos!!
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Adoro seus textos. Vc sabe o que dói, vc vê e sente as coisas, o mundo. Um texto cru, um tapa no rosto, um sacode no corpo. Muito triste e muito real.
Bjs ❤
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Oi, Vanessa,
Sim, eu sei o que dói…e saber disso também é dor…
Vc é muito sensível, um amor de menina…
Muito obrigada por seu comentário, que bom que gosta dos meus textos, fiquei muito feliz!
Bjokas!!
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Olá, Renata! Seu texto é como um soco, seco, direto e sem firulas. Assim é necessário para se falar de situações que passam por nós sem que se dê a importância devida. A pungência é também urgência, de se falar sobre os desassistidos, de se falar sobre o suicídio, de se falar sobre nosso papel dentro dessa sociedade de consumo que nos consome. Parabéns pelo texto!
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Querida Sandra,
Muito obrigada! Você sempre tem uma leitura atenta e generosa, profunda na sensibilidade e na empatia…
Bjokas!!
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Oi Renata! Texto muito sensível. Sempre tive uma imagem dúbia do suicídio. Pq ao mesmo tempo que é uma fuga, um não aguentar mais o peso da vida, é também um ato de coragem, pois é preciso muita bravura para acabar com a própria vida, dar aquele último passo, fazer o último corte. E sem dúvida, o momento em que alguém decide morrer, é um instante muito especial, que se equilibra no limite tênue entre a dureza e a beleza, entre a prisão, a dor, e a liberdade e a leveza. Você traduz muito bem essa dualidade quando diz “A escalada foi só queda, e naquele dia de setembro, Celestino imaginou coisas lindas para sua vida.”. Parabéns!
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A jornada de um invisível é dura, triste e fria. Seu texto fala de muitos Celestinos, não só os de rua, da pobreza, mas daqueles cujo mundo é cheio de um nada indizível, de um vazio de tudo, da ausência do outro.
Parabéns pelo texto.
Abraços carinhosos.
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Evelyn, obrigada! Sim, esses “Celestinos” que insistem em me acompanhar, tantos, tantos…Beijos!!
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