FÉ – Juliana Calafange

A Bahia. Terra de muita luz e axé. Onde todos os santos se encontram, se cumprimentam, se abraçam, se beijam. E entre carinhos envolvem e protegem os que por aqui passam, mesmo que não fiquem, como eu. Acabaram as férias, me despeço desse pedaço do paraíso na praia, nas areias famosas de Itapuã.

Gostaria de ficar um pouco mais, de deixar as ondas irem me levando sem pressa, pois na Bahia não existe a prisão do relógio. Mas preciso voltar. Não pertenço a esse lugar luminoso, minha casa é o inferno de onde vim. Não acredito em amor, não existe liberdade. Lá eu vivo só, lá onde ninguém me interessa nem me quer.

Uma amiga sempre diz que eu preciso ter fé, acreditar no Destino. Respondo com risadas.

Não gosto de imaginar minha vida nas mãos de ninguém. Muito menos de alguém tão intangível. Me apavora. É preciso ter os pés bem firmes no chão. Olhos bem abertos para enxergar o que está na frente. Essa coisa de se entregar a algo perfeito, sublime e hipotético é coisa para jovens apaixonados.

Como aquele casal que vejo ali perto na areia. Demorei a perceber que eram dois, de tão enroscados um no outro. Chega a me dar calafrios. É mesmo hora de voltar para casa.

Mas algo me prende, meus olhos se deixam demorar um pouco mais na observação daquele beijo, tão perto de mim. E tão distante. Uma estranheza me atravessa, me paralisa diante do beijo. A única coisa que se move é meu pensamento. Ele se afasta de mim como as ondas do mar. Só existe o beijo.

Horrendo, meloso, sórdido.

Deve ser o sol forte, embotando minhas ideias. Preciso sair daqui, voltar para onde é seguro, longe do mar, do sol, do casal enfeitiçado e sem limites.

Mas não posso, não consigo, algo aperta minha garganta e eu sinto dor. Talvez fique resfriada. Vou acabar perdendo o ônibus, pior é perder a cabeça. Não quero mais olhar, mas o beijo me abraça, me domina, isso é tudo que não pode acontecer.

Calma, respira, não é nada demais, só um beijo.

Um beijo apenas. Quente, molhado, com vista para o oceano. Mil assuntos se entrelaçam pelas línguas. Zil pensamentos passarão velozes na mente dos amantes enquanto durar esse encontro de salivas.

Eu não sei por que continuo presa a essa tortura de observar o beijo, não gosto, quero olhar para frente, para a linha tênue que separa o azul do céu e do mar. Lá é onde fica o futuro, lá é onde eu quero estar, não aqui nessa terra de amantes. Odeio a Bahia.

Mas o casal – eles – já se imaginam entre as outras carícias que virão logo a seguir. Pedem ao Senhor do Bonfim que o tempo pare bem ali, que nada interrompa essa conexão ilimitada. É o que realmente desejam os seus sentidos quando eles se beijam: que a vida comece agora, que o mundo se acabe, a sorte seja clara e os filhos agradeçam.  

Eles agradecem.

Devem gostar do sabor da língua, da saliva em contato com as papilas gustativas, como quem come e não escova os dentes, como quem pega um trem só para ouvir o barulho dos trilhos. Um beijo melado e muito, muito adocicado. Beijinho.

Detesto esse doce, não acredito em beijos.

Acho até deselegante beijar assim em público. Assim como se estivessem sozinhos.

Eles devem gostar, curtir, pois sorvem o beijo bem devagar, com muita calma, para dar qualidade. Para me desconcertar. Porque beijo é um tipo de pacto, uma troca voluntária de babas e cuspes que todo o metabolismo transforma depois em fé.

Fé.

Agora me lembro da minha amiga e penso que ela talvez tenha razão. Quanto mais eles beijam, mais eu os detesto. É essa aflição que sinto sempre que vejo um casal beijando assim, não importa onde esteja. Calhou de ser na Bahia, nas areias brancas de Itapuã, eu os odeio mesmo assim, mesmo na terra do amor de todos os santos juntos. Ver o beijo me dói muito.

Porque eles creem. Eu não.

Sou pura falta de fé!

IMAGEM: Farewell Kiss – Vladimir KUSH

21 comentários em “FÉ – Juliana Calafange

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  1. Olá, caríssima Ju. Como vai? Já passei férias na Bahia, que terra mágica, Sou nordestina e cearense bem bairrista, mas preciso admitir que a Bahia é a porção continental mais linda do Nordeste. Isso porque ainda não fui a Fernando de Noronha.

    Um conto sobre frustração, inveja, desejos reprimidos, recalques. A paixão do casal que beijava era como uma ofensa pessoal a ela. Tipo, se eu não posso estar realizada, a felicidade do outro me incomoda. Mas, sejamos justos, quem nunca pensou em largar tudo e ter outra vida?

    Quando tive meu filho me dei conta que NUNCA MAIS eu iria poder sair por aí sem destino e sem dia para voltar, como muitas vezes fiz. Nunca mais seria completamente livre e desapegada. Os primeiros anos de um filho exigem muita entrega, e eu tinha destas fantasias. Ainda bem que tenho juízo.

    Gostei da maneira como conduziu o texto e de como o tempo todo a sua personagem quase desiste da vida que tinha, e da qual não gostava. A gente até torce para que ela se liberte, não é? Mas é preciso muita fé e coragem para abrir mão da vida e ser feliz em Itapuã. Beijos.

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    1. Oi querida!Sim, a vida é cheia de escolhas. E ao escolher um caminho, só nos resta acreditar, mesmo sem garantias, de que estamos na direção certa.
      Obrigada pelo seu comentário!

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  2. Legal o texto! De inicio me incomodou o primeiro paragrafo, a descrição da Bahia, pareceu coisa de turismo, mas faz todo sentido depois, seria legal ver esse paragrafo repetido mais ao fim mas agora com a nova “visão” que a narradora tem da Bahia. Digo é claro apenas como sugestão, porque afinal, no discurso da narradora já está claro essa mudança. Legal!!!!

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  3. O beijo apaixonado de dois amantes ao por do sol em Itapuã são o gatilho para a catarse da personagem. Interessante como esse ato de beijar se transforma no seu conto em um símbolo de fé. Sim, misturar-se a outra pessoa envolve confiança no que ela traz como bagagem de seu passado; entrega, ainda que momentânea, no presente; e, de certa forma, crença na possibilidade de um futuro. Ou seja, fé.
    Sua personagem se ressente da falta de fé. Não se transformou ainda, mas ao menos reconhece o que lhe falta.
    Parabéns pelo texto, Ju. Escorregadio, como sempre.

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  4. A narradora vai do amor ao ódio pela Bahia, mas não pelo que é, mas pelo que representa: a alegre fé de um povo. O beijo do casal assusta porque também é um símbolo de fé; a entrega. A espectadora da cena romântica sente-se atraída como se puxada por areia movediça que quer engolir a sua descrença. Mas ela não tem fé, até gostaria de ter, mas não acredita no amor. Talvez uma desilusão amorosa seja a causa da perda de encanto, do repúdio ao sonho, a ausência de expectativas de um futuro melhor. E agora odeia a Bahia, pois a fez encarar a falta de fé, talvez até a fé em si mesma.
    Parabéns pelo conto tão cheio de sentidos e sentimentos que se completam pelo contraste.

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    1. Oi Claudia! Obrigada pelo comentário. A narradora é meio doida mesmo. Mas acho que ela não odeia a Bahia, ela odeia é aquele beijo apaixonado, que dá muito medo nela.
      🙂

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  5. Que texto forte! Achei pesado, sabia? o tema, a abordagem.. a escrita em si é fluida e muito boa, por sinal.
    Mas essa coisa da falta de fé, me põe pra baixo, sabia? rsrs Acho que seria uma vida tão pesada, um fardo a carregar, nao ter fé em Deus e nem no amor.. muito triste.
    Parabéns pelo belo texto.
    Bj!

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    1. Pois é, Kinda. Pessoa mal resolvida essa, né? Precisava de uma terapia… rsrsrs
      Obrigada pelo comentário.

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  6. Querida Ju,

    Sempre com textos muito pertinentes, bem escritos e certeiros.

    A falta de crença, seja na religião, seja no amor, é algo que transcende o que se convencionou chamar “fé”. Fé é algo que se irmana, para mim, mais com a esperança de um incerto porvir. É algo que se tem ou não, independente da religiosidade rasa que a sociedade nos impõe. Essa “crença” pode estar em um beijo, em um pequeno detalhe da vida ou do cotidiano…

    Já morei na Bahia, então, a paisagem foi certeira para a minha imaginação de leitora.

    Parabéns.

    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Ah, as areias de Itapuã! Cenário perfeito para casais apaixonados e mulheres neuróticas em crise existencial! kkkkkk
      Obrigada pelo comentário, amiga!

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  7. Eu tinha fé, hoje não tenho mais. Em nada. Quando vejo um casal assim, o que sinto é apenas pena, tenho o sentimento de “dó” e penso “espere um tempo, isso vai passar rsrsr”. Como diz Pedro Calabrez a paixão é um estado de demência temporária. Gostei do texto e espero que a protagonista reencontre a si mesma e se sinta satisfeita com a própria companhia e o que vier além, seja apenas complemento. Bjs ❤

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    1. Vanessa, vc já está um nível acima do da narradora. Depois que ela fizer terapia, vai passar a ver os casais apaixonados com menos medo e mais compaixão.
      Uma vez, o porteiro do prédio de uma amiga, olhando a própria filha brincando alegremente, comentou assim: “Ah, coitada! Tão feliz…”
      🙂
      Obrigada pelo seu comentário!

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  8. Bahia, beijo e balanço da vida. Um texto denso: a protagonista não tem fé (ao menos ela reconhece isso), não tem, portanto, confiança, esperança.

    Que triste! De início, tão animada e depois do beijo, ranzinza. Uma personagem que foi ganhando vida, rebelando-se, demonstrando seus sentimentos com convicção. Sua técnica, Ju, foi competente.

    Um grande mérito desse texto é, com certeza, a gradação. As reações iniciais, pouco a pouco, vão dando espaço a posições mais definidas.

    Parabéns por um texto seguro, fluido e que revela uma alma indagadora e inquieta.

    Obrigada pela leitura agradável. Beijos.

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  9. Oi Ju! Vc me encanta com seus textos certeiros. O que é a fé senão uma aposta? Uma aposta em algo irreal, não-palpável e no futuro? O que é a fé senão uma entrega? No caso da personagem, ou ela já se entregou e se deu mal com a relação ou ela tem medo de se entregar a um ato arriscado e sem garantia de felicidade. Em ambos os casos, a desesperança a atinge de tal forma que a personagem sofre, odeia e se aflige. Mas o que é a vida senão uma aposta contínua onde pagamos o preço do risco? O que é a vida senão conhecer suas cartas e chances? O desencanto é latente ao final. E transcende o papel. E contagia o leitor que entende o sentimento da personagem por empatia ou por experiência própria. Texto muito bem construído.

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  10. Oi, Ju!
    Me encantei, me deixei levar e meio que me identifiquei com sua personagem.
    Férias em Itapuã, ela já revelando certo “amargor” para com a vida, quando diz viver no “inferno” – e de repente, um casal, na areia, servindo de gatilho para uma reflexão sobre tudo o que envolve aquele ato de carinho entre duas pessoas, visto pela personagem de um jeito desdenhoso, mas do tipo que se entrega, quando nega.
    Há sim, fé, desejo, vontade de viver naquela pessoa…e tudo ali, sendo esmagado, tolhido, frustrado.
    Gostei demais do seu conto,
    Beijos!!

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  11. O destino é a mão do tempo. E o tempo é senhor absoluto da vida e da morte. Nada passa sem passar por ele. Presente, passado, futuro. A mão do tempo nos leva, porque nossa percepção de mundo é limitada. Mas ele não é invencível.
    Um beijo é ao mesmo tempo destino e fé, carrega vida e morte, é o tempo em si mesmo e além, porque é mais. É a externalização, embora pouca, do amor, essa palavra tão gasta. Mas é o envolvimento amoroso, o amor de todas formas, de todos os seres, aquele que conhecemos e o desconhecido, o nosso e o dos outros, esse amor é vencedor do tempo, único a transgredir, a ultrapassar, transformar e transformar-se.
    E a fé… tão complexa essa questão de fé, tão íntima e de tantos formatos… Acreditar talvez seja o primeiro passo para a entrega, para a liberdade de sentimento, para dar o primeiro passo, para abrir-se ao entendimento. Acreditar é entregar-se e sim, o beijo carrega a fé, no meu entendimento, por isso.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

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  12. Que bacana esse texto! Conheci Salvador, estive em Itapuã visitando Fabio Shiva, depois fui a Ilhéus… Gostei do seu conto nesse estilo descritivo que não cansa, pois está misturado ao fluxo de pensamento da narradora. Parece que vamos demorar para ler, mas que nada! Foi de um fôlego só. Parabéns!

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