A amante – Sandra Godinho

Era estória dos antigos do lugar, quase ninguém a conhecia exceto dona Sibelina. Assim que a noite caiu na aldeia que beirava o rio, Anay não esperou a terra esfriar do calor do dia: ela se agachou, estendendo seu corpo rente ao chão, encostou a cabeça no solo para ouvir suas entranhas, sem se importar com o olhar do marido que se embalava na rede da varanda da casa, um pequeno cubículo feito de madeira. Ele nunca a perdia de vista.

Anay sentia a terra respirar, exalar do chão bafos quentes e úmidos que traziam os sons das feras da noite. Não era loucura dela, apenas medo. Medo de que a quietude da mata, que nunca era calada, trouxesse para perto de si um mundo de horrores. O marido se irritou:

“Deu para dormir no ventre da terra agora, Anay?”

“Compadre disse que tem uma onça rondando a aldeia!”

“Onça sempre teve!”

“Matam, comem e vão dormir com a barriga cheia, sem pena e sem culpa! Vamos embora daqui, Romualdo, vamos para a cidade!”

Aquiete, mulher, vá tratar de dormir!”

“Pois é a floresta que iguala todos aos animais. Eu te peço: vamos embora!”

“Vai você, se quiser!”

Ela queria, mas para escapar de um lugar era preciso escapar de si, ser outra sendo a mesma e disso Anay não era capaz. Ela regressava ao leito, mas não dormia, vagava entre o sono e a vigília com medo de ser morta, com medo de se perder num lugar que havia tempos não chegava estradas, notícias ou estranhos. Se rezava, era para achar uma terra em que pudesse florescer, embalar sonhos, plantar sementes. Sementes, ela não teve nenhuma. Seu único filho nasceu morto, tímido para enfrentar o mundo que ia se abrir. A mulher rasgou uma boca na terra para que engolisse seu rebento sem força de germinar e, agora, o solo secava sem gestar outra semente. A natureza tinha um mando silencioso, que dispensava palavra.

Ela se guardava assim, imobilizada pelo temor, uma morta-viva esperando a terra ou algum bicho a engolir. Acordava antes do nascer do sol, colhia a lenha para acender o fogão, buscava a água na beirada do rio, acendia o fogo, coava o café, cortava ripas de madeira para curar as feridas abertas na parede da casa, protegendo-se melhor dos bichos que rastejavam e das feras que andavam pelo solo com a liberdade displicente dos seres que pertenciam à floresta. Seu marido cuidava da criação logo no início da manhã: um cachorro, um cavalo, uma serpente de estimação e um porco. Alimentava-os bem e, depois, passava o dia pescando com os amigos no meio do rio.  A ausência de Romualdo enchia Anay de suspiros e sombras. A mulher perdia o apetite, perdia o sono, perdia peso, perdia até o pensamento que flanava no ar querendo fugir, longe de tudo, como uma louca transbordando de insensatez.

Um dia, o marido de Anay entrou em casa, balançando seu mundo. Calcou o pé na varanda com tanta força que as paredes tremelicaram e um baque surdo ribombou em cada canto do ambiente com indignação. Ele gritou, enquanto adentrava a morada:

“Me contaram que você esteve conversando com o compadre!”

“Fui ver se ele me emprestava a arma!”

“E o que você vai fazer com uma arma? Matar algum bicho ou se matar?”

“Há muito já sou bicho!”

“Bicho, não. Louca, talvez!”

“Não sou louca, mas posso acabar ficando!”

“Pois de agora em diante, você fica em casa porque lugar de bicho é na jaula!”

Anay sentiu seu rosto arder, as pernas formigarem, os braços adormecerem. Brigava com seu inferno interior, regido por leis que nem Deus podia explicar. Não rompia as amarras porque tinha medo de não conseguir atravessar o rio, tão infinito feito o vazio que a habitava.

Nesta noite, depois de ouvir as entranhas da terra, recostou-se no leito sem pregar o olho. O marido, ao seu lado, ressoava como um motor de popa, alheio a qualquer movimento. Então, Anay se sentiu fluir, viajando contra o destino, vagando pela floresta, sob o manto da noite que descia sobre a aldeia e a cobria de estrelas. Sentiu o vento balançar os galhos retorcidos das árvores, sentiu as nuvens se rasgarem no céu, sentiu a chuva umedecer a terra e sentiu o cheiro ácido do bicho que se aproximava.

Seu pelo estava molhado e ele começou a lhe lamber. Primeiro, molhou com sutileza suas mãos pensas para o lado de fora da rede, depois ele subiu em seu corpo e passou a língua por suas curvas com avidez, como se fosse um viajante a explorar um território desconhecido. Isso a encheu de prazer. Ela se despiu para que o animal a devorasse com a gentileza de um estranho. Depois do ato amoroso, ela adormeceu na mais completa paz.

Acordou na manhã seguinte com o cachorro ao seu lado na rede, também dormindo. Lembrou do sonho, da noite, do ato que lhe trouxe a tranquilidade do espírito. Surpreendeu-se. Estava envolta em suor, um tanto gosmenta e malcheirosa. Resolveu tomar banho no rio, antes que o marido acordasse. Perturbou-se. Se antes permanecia imobilizada pelo temor, agora se imobilizava pelo prazer, completamente à mercê do apetite animal. Passou o dia a pensar no que tinha lhe sucedido à noite. Ela, que sempre se mantivera contida, agora se guardava em segredo.

O dia se esvaiu e logo a noite caiu novamente. Anay, longe de temer o sono, passou a desejá-lo. ‘Estou louca’, pensou. Fechou os olhos, respirou fundo, sorvendo o ar que a envolvia e se preparou na rede. Não conseguiu dormir. Foi até a varanda e se deitou no chão, encostando o ouvido à terra. Então, o cheiro ácido de bicho a envolveu num segundo. Ela se despiu, fechou os olhos e se entregou às carícias. O animal a cavalgou como um garanhão, descendo os vales, subindo as montanhas de seu corpo que se contorcia de prazer. Ela não era mais dona de sua vontade. Na manhã seguinte, ela acordou nua na varanda com o cavalo ao seu lado. Quis gritar a plenos pulmões, num pretenso asco, mas pensou no prazer que havia sentido, então, apenas se dirigiu para o rio, sem esperar que o marido acordasse.

O dia custou a passar. O marido, depois de cuidar dos animais, saiu como de costume para a pesca com os amigos. Ele não lhe reparava a estranheza, nem o ar ensandecido do rosto. Ela, que sempre foi de pouca fala, falava agora um outro idioma. Ela, que há muito não vivia, suava e gemia pelos cantos esperando a noite cair para galopar territórios desconhecidos.

 Seu marido chegou no final da tarde com os peixes presos a uma vara. Ela moqueou todos eles, transbordando de excitação pela noite que chegava. Mal ela caiu, o marido desmaiou na cama. Anay despiu-se. Aconchegou-se à rede e esperou pelo cheiro selvagem. Quando ele lhe chegou às narinas, ela contentou-se numa alegria de puro instinto animal.

Sentiu a serpente aconchegá-la, deslizando pelo seu pescoço, descendo pelo colo até postar-se próxima de seu sexo úmido, pronto para ser penetrado. Ela sucumbiu, desfalecendo de prazer. Na manhã seguinte, a cobra jazia a seu lado. Ela se dirigiu novamente ao rio, passou a mão pelo seu seio desnudo, pela barriga macia, pelo pescoço que engrandecia. Estranhamente, sentiu a pele espessa, os pelos grossos e com um cheiro tão ácido e intenso como o dos bichos, mas não deitou maiores preocupações.

Só o que tinha a fazer era esperar a noite dominar. Não gostava de o sol ostentar sua grandeza, expulsando as estrelas, assumindo-se soberano. Era a noite que trazia o encanto. Com ela, todos podiam reinar. Mais uma vez, esperou a noite definhar o brilho do sol, aprumou-se na rede, enquanto o marido se retorcia no quarto. Desta vez, ele custou a dormir, ameaçando apropriar-se do que era dela por natureza. No escuro, Anay pensou no marido enquanto o cheiro ácido lhe atingiu as narinas. Ele reparou que a mulher se despia, então, levantou-se da cama e a abraçou por trás. Queria a mulher rendida, entregue às suas carícias, mas, de repente, Anay começou a se sacudir e caiu ao chão apoiada apenas em suas mãos e pés. Soltou um gemido, que mais parecia um esturro de onça, tão forte e assustador que acabou calando todos os demais barulhos vindos da mata. O marido surpreendeu-se e quis chutar-lhe a barriga pela desfeita. Nada além disso se soube do casal.

No dia seguinte, o compadre de Anay apareceu no casebre e se apavorou com o que viu. Na varanda, caído em frente à porta de entrada, jazia um porco imenso com a garganta rasgada. Provavelmente, um trabalho de onça, já que na noite anterior escutara seu esturro, além do mais, suas pegadas envoltas em sangue ainda estavam frescas na varanda e em volta da casa. Nenhum outro corpo foi achado, mas o que chamou a atenção do homem foi a quietude do lugar, um silêncio anormal, como se tudo estivesse em paz.

15 comentários em “A amante – Sandra Godinho

Adicione o seu

  1. Maravilhoso, forte, cheio de mensagem e poético, como todos os seus textos, Sandra. Este com uma pitada de erotismo muito bem colocada. Um erotismo que não fala de sexo, fala de transformação, de tomar conta de seu próprio corpo, de seus instintos. Muito bem desenvolvida essa transformação, a submissão e o desejo latente de mudar.
    ” Ela queria, mas para escapar de um lugar era preciso escapar de si, ser outra sendo a mesma e disso Anay não era capaz.” – lindo isso. Parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Exato, Fê! Um erotismo que fala de transformação. Muito bem posto. Gostei muito de escreve esse conto, numa tentativa de trabalhar o fantástico, que para mim sempre foi custoso de produzir, apesar de amar o gênero. Grata pelo retorno!

      Curtir

  2. Adorei, minha amiga.

    O conto faz laços entre a realidade e o fantástico de um jeito muito bem trabalhado.

    Antecipei o fim em meus pensamentos, bem que ele mereceu, não é? Eu agora ando mergulhando na fantasia e deixando o terror de lado, e esse seu conto foi muito inspirador. Sua história é um convite para quem quer imergir na história, e se deleitar com suas delicadas, porém intensas nuances. Meu conto também é de realismo fantástico mas eu não o tratei com este lirismo tão lindo.

    Grande abraço e parabéns pelo feito.

    Beijos.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oi, Iolandinha! Sempre admirei o fantástico e sempre tive dificuldade de produzir. O texto surgiu como um exercício, falar de tabu, no caso, a zoofilia, mas noutra dimensão. Ele certamente mereceu! Que surjam mais onças a lutar por seu lugar ao sol! Grata pelo retorno!

      Curtido por 1 pessoa

  3. Lembrei-me de Juma Marruá, da antiga novela Pantanal. Não me lembro da história, mas me lembro da personagem, quando a novela foi reprisada. Gostei dessa transformação e libertação da mulher, que vivia enjaulada. Onça tem mesmo que ser livre. Bjs ❤

    Curtido por 1 pessoa

    1. Perfeito, Vanessa! Usei o fantástico para falar de transformação/libertação. Que toda onça encontre seu lugar ao sol! Grata pelo retorno!

      Curtir

  4. Nossa, Sandra, que conto doido e lindo! Adoro essa pegada fantástica. Nem sei o q te dizer, eu não acho defeito no seu conto. Tenho muito amor pelos animais, muito mais que pelos homens. Sem dúvida que me identifiquei com Anay, essa mulher-onça, mulher-cobra, mulher-força. Toda a peculiaridade da vida amazonense, cheiro de terra, de rio, de bicho, de natureza, de liberdade. Estou encantada, viu? Sensacional!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oi, Ju! Que legal! Eu também aprecio o fantástico, estou como a Iolandinha, flertando com o gênero e insistindo, mesmo que seja de vez em quando. Sejamos mulheres-onça. Sempre.

      Curtido por 1 pessoa

  5. Ave Maria! Que leitura!! Adoro isso! O inusitado, o profundo, o significativo! O inteligente!
    E muito bem escrito! Isto é um presente ao leitor!
    Parabéns, Sandra e obrigada!
    clap clap clap

    Curtir

  6. Uau, que conto que revira as entranhas! Os vários animais que se apossam de um corpo cheio de desejo. E o mais feroz é a dona do seu próprio corpo, dando vazão aos seus instintos. Tema tabu trabalhado com tanta habilidade e poesia que deixa a alma em desassossego querendo mais. Lindo, forte, impactante!

    Curtir

  7. Pareceu-me que Anauy passou da inibição e do tédio ao “estresse do prazer”. O que se reprime se move com a sede de escapar, e isso gerou uma história emocional narrada, aqui, com poesia, definida pela preocupação estilística e o interesse em mostrar o irreal ou o estranho como algo retirado do cotidiano, daquilo visto como ordinário e comum.

    Com a deformação da realidade, a narrativa gerou estranheza e um clima de mistério. Gerou ainda uma visão para o fantástico que ajudou o leitor a fugir de textos longos e chatos. Você soube expressar as emoções, sobretudo, ao se libertar de pequenas amarras e violar o mágico.

    Parabéns, Sandra, por nos dar de presente o seu mundo, para nos encontrarmos nas suas ideias. É a segurança de sua técnica, a facilidade com que conduz as palavras que nos capturam.

    Um forte abraço.

    Curtir

  8. Querida Sandra,

    Já conhecia este seu conto e foi um prazer recordá-lo.

    A brasilidade, o feminino, o fantástico, tudo aqui colabora para a criação de um grande texto.

    Parabéns mais uma vez!

    Beijos
    Paula Giannini

    Curtir

  9. Que conto mais interessante, Sandra. Um realismo fantástico mas com sotaque brasileiro e linguagem própria, em que se notam as características da autora. Os elementos simbólicos presentes no textos amentam o interesse a a atmosfera de estranheza contribuindo para o engajamento na leitura. Achei muito bom. Extrapolou completamente o limite de 300 palavras do desafio, mas tudo bem, esse grupo é muito insubordinado mesmo e a gerente do desafio é completamente permissiva. Beijo, querida. Parabéns pelo texto.

    Curtir

  10. Amei, Sandra! Enquanto não cheguei ao final, não sosseguei. Não lembrei da novela Pantanal, mas pensei que daria ótimos personagens e um enredo para filme. E o melhor: li com a sua voz. =)

    Curtir

  11. Escrita impecável. Conteúdo fantástico. Muitas imagens, muita simbologia, muita magia! Que vivo e intenso! O entrelaçamento da realidade com a fantasia ficou perfeito – sutil, quase enganador.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: