Ingredientes
1 kg de farinha de trigo
1 xícara de açúcar
1 colher de sal
4 colheres de sopa de fermento granulado para pão
2 colheres de sopa bem cheias de banha
2 ovos
água morna
Modo de Preparo
Um soco a mais. O último.
Terminou de amassar o pão. Agora era esperar crescer.
Aquele dia não tinha fim. Arrastava-se junto à vassoura e ao calor. Varrer a casa inteira. Passar esfregão. Encerar. Deixar brilhando. Limpar o banheiro. Desinfetante, alvejante, saponáceo. Lavar a louça acumulada de dois dias. Culpa do racionamento de água. Não gostava. O jeito era fingir que a sujeira não existia. Dissimular. Fazer que não via. Se pudesse, esconderia socaria tudo dentro do armário. Longe dos olhos. Não podia. Então, dia sim, dia não, lavava tudo. Tudo. As louças, as roupas, o banheiro, o cabelo. A alma. À esta, enxaguaria duas vezes naquele dia. Faria o que era preciso. Tudo certinho. Seu coração urgia… Como todo o resto. O relógio na parede, o calor em trégua denunciando a proximidade do fim do dia. Precisava se apressar, deixar tudo no devido lugar.
Como sempre.
Como nunca.
Um soco a mais.
Seria o último.
Enrolou os pães. E percebeu a massa crescendo em suas mãos. Assim sentira o marido na noite anterior. Precisava fazer tudo certinho. Só para garantir. Um beijinho de despedida. Um sorriso de leve. Quando voltasse, ele teria pão. Quentinho. Tudo certinho. A casa limpa. A cama cheirosa. Quando voltasse, estaria tudo no devido lugar.
Ela não.
Quando ele voltasse, ela já teria partido.
Trabalhara duro. Nunca mais seria chamada de vagabunda.
Maravilhoso. Como é legal ver essa sua facilidade em juntar uma receita de pão e algo corriqueiro como uma limpeza de casa com uma realidade, uma história bem mais profunda, O microconto exige essa história oculta, essa segunda camada de enredo. Gostei muito.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Estou aprendendo. Mas, acho que regras foram feitas para serem quebradas, né?
CurtirCurtir
Paulinha,
Lindo, urgente.
Essa atitude da mulher, de socar, de revidar, de fazer e fazer tudo, para provar que as ofensas são mentirosas, que as denúncias são descabidas… tão conhecidas.
Muito bom! Adeus, eu venci e agora vou embora.
Beijos
CurtirCurtir
Ah! Essas receitas… As multissignificações possíveis de cada ingrediente, do modo de fazer, das demais lidas na casa estão sob o controle de um contexto, no qual se encaixam com coerência.
Parabéns, Paula, pelo cuidadoso confronto das figuras que se articulam e se encadeiam no interior do texto, formando uma rede. É nesse quadro de rotina, porque nele tudo estava previsto, que se insinua o desejo de ruptura, a ânsia de rebeldia, a vontade de ser livre.
Outro excelente trabalho. Beijos.
CurtirCurtir
Descontou sua raiva no pão, e foi bom, a massa cresceu. No mesmo tempo que serviu para ela perceber que podia mais que essa vida insignificante. Você e seu talento maravilhoso! Abraços ❤
CurtirCurtir
O pão de cada dia, o último soco recebido pela massa que não quer mais se moldar às expectativas do parceiro. A mulher faz tudo com capricho, deixa a casa limpa e acolhedora. Há na ordem pretendida um vazio de alma. Tudo parecerá perfeito, mas ela não estará mais ali. Que ele cima o pão que suas mãos (e nãos) amassaram. Ela prova que pode fazer tudo certinho, deixar tudo no devido lugar. E o lugar dela não é mais ali.
Mais uma vez, o seu texto me encantou. Parabéns!
CurtirCurtir
As analogias e subtramas que vc usa tão bem. Parece fácil pra vc escrever assim, Paula. Incrível. Cada soco dado pela protagonista era uma porrada que dava na sua própria raiva, de aceitar a vida vadia que levava. Mas só até hoje. Vagabunda nunca mais! Gênio! Beijo grande!
CurtirCurtir
Eu já amo essa mulher. Porque viver com alguém não é escravidão. Não deveria ser. Viver com alguém é comungar almas, é construir uma estrada. Não pode haver dúvida quando a isso porque é sentimento e ação.
Parabéns pelo conto.
Beijos e abraços carinhosos.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Seus minicontos dialogam entre si seja pela linguagem, seja pela temática. Talvez rendessem, colecionados, um livrinho de narrativas curtíssimas delicioso. Pense nisso. Aqui temos a mulher descontando sua raiva no massa do pão que prepara enquanto planeja uma vingança certamente patética contra o marido. Uma personagem simultaneamente cômica e dramática, tão real. Muito bom. Difícil escolher dentre os seus o que gostei mais. Beijos.
CurtirCurtir
Maravilhoso!!
Já fiz uma crônica sobre isso (quem nunca, né?) esse assunto é necessário, é um desabafo tão comum a tantas!
Na minha crônica a vingança dela era fingir a famosa dor de cabeça à noite.. hehe
A sua personagem foi mais radical e mais, muito mais certa!
Não preciso comentar da forma magistral que escreves, tão natural e ao mesmo tempo tão perfeita, coisa de mestre! 🙂
parabéns!
bjs
❤
CurtirCurtir
Oi, Paula,
Seu conto nos traz a triste realidade de um imenso número de mulheres vítimas da violência doméstica, submissas aos maridos, à sociedade, ao sofrimento.
Mais um soco…sua protagonista tem um final feliz. Ela deu o último “soco”.
Muito bom, adoro suas receitas/conto, sociais e sensíveis.
amo ❤
CurtirCurtir
As palavras se ressignificando para ganhar os seus múltiplos sentidos. Dolorosos. Um conto difícil de ler porque fala de uma rotina difícil de suportar. Ela, constantemente moldada pelos socos do marido é o pão que cresce, e um dia rompe com o destino imposto, não aceito. Não mais.
Belo, terrível, intenso, e, infelizmente, tão corriqueiro. Parabéns. Um texto e tanto.
CurtirCurtir