Cartas na Mesa – Fheluany Nogueira – (desafio)

A única luz, difusa e fraca vinha das cortinas entreabertas.

— Está dormindo? — O marido sentou-se em um lado da cama. Fechou os olhos por um instante, deixando-se impregnar pelo odor ácido que o corpo dela exalava. Ele pegou a mão direita da esposa, enfrentando um olhar de indiferença. A ideia de que aquela criatura ainda tinha afeto por ele ou pelo mundo lhe parecia cruel.

Enquanto recitava o ritual de banalidades, seu olhar pousou na bandejinha de instrumentos metálicos e seringas. As ampolas de morfina brilhavam. A doente tinha seguido a direção de seu olhar e agora os olhos dela se cravaram nele com o rosto banhado em lágrimas.

Quando se virou, com um sorriso impostado nos lábios e a expressão de calma e afeto congelada no rosto, percebeu que a esposa o encarava com olhos de fogo:  

— Pegue a caixa dourada na primeira porta do guarda-roupas.

O marido abriu a caixa e encontrou uma boneca de crochê e muitos, muitíssimos recibos de depósito em uma conta de poupança.

 — Minha mãe me disse que se a minha meta era ganhar o jogo, que não apostasse com uma mão fraca. Isso por dois motivos: primeiro, poderia jogar mais sem investir muito dinheiro, facilitando sair se não tivesse sucesso. E segundo, manter o preço baixo encoraja o adversário, o que pode trazer benefícios mais tarde. Jamais discuta, — explicou ela — guarde as cartas do baralho e faça uma boneca de crochê.

O marido ficou sem ar. As mãos tremiam. Havia apenas uma boneca na caixa, o que significava que ela ficara aborrecida apenas uma vez em mais de cinquenta anos de casamento.

— Mas e todo esse dinheiro? — ainda perguntou indicando os papéis.

— Ah! — respondeu ela. — É o que eu ganhei vendendo as bonecas.

24 comentários em “Cartas na Mesa – Fheluany Nogueira – (desafio)

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  1. Oi, Fátima, não conhecia essa sua veia cômica rsrs. Gostei. O texto é bem desenvolvido, com uma parte descritiva muito boa, nos apresentando a situação de saúde dela e do relacionamento do casal. O início é leve, quase poético. Aos poucos vai surgiundo um certo mistério sobre o que viria a acontecer no final, mas eu não imaginava este desfecho. Surpreendeu. Parabéns.

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  2. Eu, aqui, tomando meu café, e rindo dessa cena tão leve, tão maravilhosamente escrita por você… Obrigada por nos trazer textos dessa monta. Simplesmente amei!
    Pobre marido a pensar em sua excelência no matrimônio… Texto excelente. Parabéns!
    Beijos e abraços carinhosos.

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  3. hahahaha. Cinquenta anos de muita raiva hehehe. Casamento sem estresse não é casamento… Adorei, não esperava esse final. Bjs ❤

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  4. Um texto pequeno e que me levou por vários caminhos tentando entender o que se passava… um marido sem maiores sentimentos, uma esposa resignada, como eram as esposas antigamente.
    Pena que ela não gastou as economias com ela mesma ou mesmo para tratar-se, o fdp ainda vai usufruir da grana rsrs
    Parabéns pelo conto, Fátima!

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  5. Um conto que mistura, com muita habilidade, poesia e humor. A doente em um momento de lucidez extrema confidencia a sua aposta no casamento. Será que valeu a pena ter engolido tantos sapos? As bonecas vendidas, a paz conjugal mantida. A que preço? Afinal, lá estava ela doente, a base de morfina… mas afinal, vingou-se – revelou a verdade de um casamento mantido pela sua resiliência e por ter poupado o marido de todas as derrotas que lhe cabiam.
    Muito bem escrito, o seu conto traz reflexões profundas e leveza de humor ao mesmo tempo. Parabéns!

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  6. Uau, Fátima! Que conto! Uma doença, a atmosfera melancólica de um relacionamento problemático, a alusão ao jogo, pensamos ver uma mulher combalida mas nos deparamos com uma personagem completamente dona da situação e capaz de uma ironia brutal. Tive que ler duas vezes para capturar todas as entrelinhas do texto. Magistral! Sua prosa, que eu costumo adorar, em grande forma. Incrível você render tanto em tão poucas palavras. Entusiasmada aqui. Beijos.

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  7. Querida Fátima,

    Este conto é muito significativo para (acredito) muitas mulheres. O tecer das bonecas ocultamente, as bonecas vendidas em silêncio… Essa é ainda, em pleno século XXI, a realidade de muitas de nós em maior ou menor escala.

    Excelente narrativa com uma leveza perfeita à voz escolhida pela autora, uma mulher, do alto de sua sabedoria de toda uma vida.

    Parabéns.

    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Adorei! Um final surpreendente e muito divertido. Jamais imaginaria que terminaria desse jeito. Os homens não dão conta das artimanhas das mulheres, né? rsrsrs Genial a sua sacada, parabéns!

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    1. Querida Fátima,
      Quem ficou sem ar fui eu!!
      Eu realmente gostei muito.
      O conto deu uma guinada espetacular!!
      O início triste, mórbido, de quase morte, deu lugar a uma história bonita de superação, beirando ao cômico.
      Coisas que só tu consegue.
      Tá difícil, eu amei teus dois contos. Parabéns!
      Beijos!

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  9. Oi, Fatima!!
    Você é sempre excelente, mas nesse desafio vem arrasando rsrs
    Eu já estava quase chorando com seu texto, tão vivo e pulsante narrando as dores finais de uma doente terminal, quando o final me fez rir rsrs
    *acho que toda vez que sentir raiva farei uma boneca 😀
    Muito bom, meus parabéns!!

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  10. Ahahaha, muito bom. Amei. O conto vai tomando forma de um drama pesado, e pah! que final adorável. Vc é uma escritora múltipla mesmo, menina. Parabéns pela criatividade,a inteligência e bem bolada explicação. Adoro ser surpreendida, ainda mais em grande estilo.

    Beijos, amiga.

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  11. Olá, Fátima!
    O que começa com um drama pesaroso acaba evoluindo para um humor sádico.KKKK
    Gostei da forma como você levou o leitor até o final, o ponto de virada e a perspectiva dele ver essa poupança recheada em nome das netas (prefiro adotar essa versão)! kkkk
    Parabéns.

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