Pirão de Pescador – Paula Giannini (desafio)

Uma lata de farinha. Uma pitada de sal. O fósforo riscado. O lume aceso no fogão à lenha, a água enchendo a panela de barro. Agora, é só esperar fervura. E guardar a toalha puída, o entalhe sobre a mesa é o enfeite mais bonito. A menina gosta, mamãe e papai atravessados por uma flecha. Cinco anos. Naquele tempo, a lama ainda não violentara o mar. A porta se abrindo. Dá para sentir de longe a maresia da cachaça. Sacolinha nas mãos, o dono do barco fiou uma dose. Uma só. E se o choro pronto, a bronca ensaiada, teimam engolidos a não brotar dos lábios, e dos olhos, é que já anda calejada. Anda sim. Anda nada. Papai abraça mamãe na cintura, e a mão do anjo que lhe sela a boca é a mesma que toca de leve, dedinhos frios denunciando o sopro que já levanta a invadir a casa. É vento leste, a menina corre. É vento leste. O Papai acode. Vai mudar o tempo. Vai mudar que nada. Nada muda. Muda não. Melhor fechar a cortina depressa, chita barata pendurada no lugar da porta, tecido dançando ao sal daquela vida que de sólida nada tem. Sim, tem. Tem sim. Tem que nada. A sua não. O vento que traz o Papai para casa, será o mesmo que o fará partir. Foi o vento! A menina é toda luz. Pequenos olhos reluzindo o riso do braseiro incandescente. Brilhando. As vísceras do peixe, também. Fresquinhas. O patrão que fiou a dose, é justo o mesmo que dividiu as sobras. Naquela noite, nada de janta. Noite de festa aquela de ver a filha sorrindo com comida na mesa. Noite de gala. Nada de janta. Vísceras de peixe, farinha e água… É um banquete o que é posto à mesa. Temperado em gole de seu próprio sal.

25 comentários em “Pirão de Pescador – Paula Giannini (desafio)

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  1. Não há beleza na miséria, na tristeza, na sobrevivência dura e mínima. Só o bailar das palavras em mãos talentosas nos levam para ela (a beleza), e de forma melancólica, de pitada cruel, quase mortal. Misericordioso o tempo de farta alegria mesmo com pouco, e o escritor sabe que isso não é glória, é disfarce de humano.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

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  2. Original! E tão doloroso, uma cena nada bonita, como disse a Evelyn, mas que a escrita tão sensível nos põe com vontade de aconchegar esta menina nos braços depois de uma boa janta.. rsrs
    Parabens, Paula

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    1. Cena q vi muito no Nordeste, onde passei dias lindos na infância. Era uma vila de pescadores e eu via isso tudo. A vida ganhando o pão no mar. Muita simplicidade, cortinas de chita, crianças livres fora da escola, sopa de cabeça de peixe pra matar a fome, q a parte nobre dos peixes é pra vender aos veranistas. Muito sensível seu conto. Caiu uma lágrima aqui do canto do olho…

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  3. A escrita é maravilhosa, Paula, como sempre. Poética e carregada de emoção. Uma cena tão triste com um arremate para lá de tocante. Um primor, Mas que história tão-tão triste nos conta. Achei super interessante a voz desse seu narrador; em um conto tão curtinho ora se aproxima ora se afasta da menina personagem. Gosto disso. Parabéns, querida. Um conto excelente, como sempre.

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  4. Segundo a Wikipédia, “pirão é um prato tradicional das culinárias de Angola e do Brasil feito à base de farinha de mandioca.” Ou seja, a menina só esperava receber a mistura de farinha e água, a sua janta de sempre. Até que o pai chega com hálito de álcool, mas trazendo sobras de vísceras de peixe. Então, a mistura de sempre vira banquete, pirão de peixe, algo a mais para sustentar a sua vida tao desprovida de delícias.
    O banquete temperado com o próprio sal, das lágrimas e suor?
    O narrador ora foca no olhar da menina, ora desliza pelos pais. Interessante essa mistura, como um pirão bem temperado. Parabéns.

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  5. Mais uma de suas maravilhas!!! Que texto bem escritro, cada frase um novo olhar sobre a cena, nos carregando para dentro do cenário, nos revelando aos poucos os pedacinhos da história. Um históiria pesada, contada de maneira leve, até irônica. Conta muito com pouco. Que destreza a sua com as palavras, com o uso dos períodos curtos, da pontuação para criar o clima desejado. Excelente. Adorei. Parabéns.

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  6. Paulinha e suas receitas de vidas, de pessoas.
    Tudo tão lindo, sentido, vivido.
    Eu sou tua fã confessa!
    A melancolia e a falta da história me deu uma impressão de morte, iminente ou ocorrida. A falta, o pouco é quase morte.
    Gostei muito.

    Beijooo

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  7. Por vezes custa muito aceitar a realidade da vida, custa muito sentir que tudo pode mudar. “Vai mudar que nada. Nada muda. Muda não”.

    Texto triste, reflexivo, sensível, bem escrito. Curto, mas consegue que cada personagem traga em si a marca da ambiguidade nos mais diversos níveis. Parabéns, Paula! Amo essas receitas com que você nos surpreende.

    Beijos.

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  8. Paula, somente seu talento e sensibilidade para tornar até poético, diria, um cenário tão triste, duro, aterrador como esse, das famílias que sobrevivem da pesca, não só da pesca, mas de tantas formas de exploração.
    A menina é poesia, a vida, na maresia, é dura. Você, uma escritora, das melhores.
    Beijos!

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  9. E tudo vira poesia, inclusive a miséria. Vísceras de peixe, farinha e água. Vidas no pirão da fome. A fome que devora qualquer coisa, resoluta. Sentimentos nas entrelinhas. Parecem até normais de vez em quando. Imitam bem quem bem vive. Não vivem. Comem.

    Belo e triste. Conto e poesia. Coisas de Paula e suas receitas do existir.

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