Ciclos de poeira – Sabrina Dalbelo

Um guerreiro empunha a espada e a maneja com a força de uma rocha. As duas mãos ao redor da empunhadura se encaixam como a pele nos ossos de um animal de pouca carne.
A espada vibra e toma a força de um dragão em fúria. Faíscas e fiapos de fumaça exalam do guerreiro e da espada. Arma e homem, um efeito, uma alma.
Contra os oponentes, basta ao guerreiro um só golpe para atorá-los em dois do ombro até a cintura. E cada um que insiste em enfrentá-lo recebe do guerreiro-espada um golpe tão forte e rápido como a energia da erupção que emerge dos confins do mundo.


O guerreiro limpa o mundo de inimigos, o suficiente para pôr um povo inteiro sob seu domínio. Ele é tão poderoso e certeiro que os desafetos desistem de confrontá-lo.
Numa manhã alaranjada, o homem suspira profundamente e decide deitar-se na areia morna. Ao suspender o confronto, ele embainha a espada. Foi o suficiente para o corpo baixar a guarda.
De uma ferida profunda, uma gota de seu sangue escorre pelo mundo afora até a sacada de três jovens.
O sangue que tomou a canaleta, lento, suave, coagulado, pinga no copo de gim do garoto de cabelo azul. Eis um belo blood mary, comemorado com um brinde exasperado, ao som da batida eletrônica.
Três jovens habitam a sacada. Eles se reúnem às dezenove horas em ponto para tomar drinks, fumar e falar dos amigos. Não é interessante conversar de coisas tristes e de batalhas perdidas. O jeans modelando a bunda e o suor escorrendo pelo pescoço interessa mais. O balançar ritmado dos corpos sacode a sacada.
Desatentos ao que perece fora de seu habitat, os jovens têm olhos semicerrados, entorpecidos pelo álcool. O copo de bloody mary cai do parapeito da sacada e o estilhaçar do vidro anuncia uma silhueta rosada na areia da rua.
Na imagem ainda em formação, crianças dançando em roda forjam os olhos. Olhos esbugalhados de uma cena inventada pelo espectador. Elas entoam parlendas antigas até à meia-noite e adormecem depois de muito rodar. O líquido derramado ganha formato de um coelho fofo. Um coelho em posição de bote. O bicho salta e uma poeira rosada sobe. Quase é possível vê-lo da sacada, mas ninguém larga o drink para acompanhar a fuga. As crianças não acordam.
O coelho foge em disparada, ainda não sabe do que.
O melhor guerreiro de todos levanta os olhos em atenção ao vulto rosado saltitante e chega a colocar a mão na espada, preparando-se para um inimigo em potencial. Ele sente a ferida arder.
Mais sangue escorre e ele volta a descansar. A poeira baixa, por enquanto.

21 comentários em “Ciclos de poeira – Sabrina Dalbelo

Adicione o seu

  1. Gostei muito da composição. Fosse em uma leitura descompromissada, em algum lugar por aí da internet, o texto não me chamaria a atenção, mas me peguei lendo e imaginando as cenas acontecendo. Nada mais do que o cotidiano, mas aqui você acrescenta sua maneira de ver as coisas da vida com poesia. Se fosse poesia, penso que não teria a mesma graça que teve na prosa. Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Bia querida,
      A ideia era remeter a imagens. Um pouco de viagem. Não é todo mundo que fica confortável com a leitura. Que bom que funcionou para ti. Fico feliz!

      Curtir

  2. Não sei se entendi bem o que você queria passar com o conto, Sabrina, mas a leitura foi agradável e a sensação de que eu estava perdendo um entendimento de algo mais me incomodou ao longo de toda a leitura. Mesmo assim, as imagens que o texto evoca são muito boas e fortes. Parabéns! 😘

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oi Pri,
      Não sou uma boa Contista, não no modo tradicional. Tenho dificuldade de escrever um início, meio e fim desacompanhado de um nonsense, de um pé no existencialismo.
      Obrigada pela leitura!

      Curtido por 1 pessoa

  3. Loucura total rsrs. Gosto de ser surpreendida, de ler algo fora do comum, de me sentir desafiada a captar o que há por trás de um texto inusitado. Quando bem escrito, claro. E o seu é um desses textos interessantes. Pra mim, estavam todos bem chapados. Parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

  4. Gostei muito!
    Entendi que tu quis fazer algo insólito, o lance das imagens e tals.. legal.
    Mas eu sou mais louca do que tu
    eu vi realidades paralelas e morri de dó do guerreiro ferido e solitário.. hehe
    Parabéns pelo texto, Sabrina!

    Curtido por 1 pessoa

  5. Você, Sabrina, é uma realista simbólica. Lírica, canta o cerne da vida, registra os altos e baixos do viver, renova imagens e significados, despertando o leitor para uma mensagem profunda e sincera.

    Parabéns pelo texto, uma prosa poética com palavras exatas e sugestivas. Um forte abraço.

    Curtido por 1 pessoa

  6. Estranho, amiga. Tem um pegada surrealista, acrescida de, como direi, uma conexão entre temporalidades diferentes, que não deixa de ser onírica e surreal também. Como a Kinda, também imaginei realidades paralelas. Um experimentalismo interessante. Eu gosto. Beijos

    Curtido por 1 pessoa

    1. Sim, Elisa, tem uma pegada surrealista, um pouco de insólito, talvez. A ideia é sentir os links entre os acontecimentos. Louca eu.

      Curtir

  7. Tudo tem seu tempo. Tempo de lutar, tempo de curar feridas. A única coisa que não percebe o tempo das coisas é a juventude, tresloucada a procura apenas do prazer. Se a vida corre feito coelho, deixa correr, porque não há como curar feridas sem descansar a alma, sem alinhar o Norte. A infância é sempre passado e está distante de entender os cacos do amanhã. Não sei onde eu me encontro: se junto dos jovens na sacada, ou deitada na areia com o guerreiro. Talvez eu esteja no meio do caminho, mas não feito a pedra, aquela do poema de Carlos Drummond de Andrade. Só espero que a lâmina da minha palavra consiga cortar com precisão o alvo desse meu escrever. A sua lâmina, com certeza, é afiada, tem propósito e está fadada à vitória. Eu amei seu texto.
    Parabéns.
    Um grande e carinhoso abraço.

    Curtido por 1 pessoa

    1. E eu amei teu comentário. Já tinha lido, mas cada leitura me traz um sorriso no rosto. Tua arte reside justamente nessa capacidade aguçada que tens de sentir, Evelyn.
      Obrigada.

      Curtido por 1 pessoa

  8. Querida Sabrina,

    Como sempre defendi, um texto nem sempre é feito para ser entendido, mas sim, sentido. Defendo isso, inclusive no infantil. O leitor tem que buscar algo após a leitura nesses casos e isso é sensacional.

    Seria surrealismo? Não sei. Sei que é muito prazeroso! Muito bom.

    Parabéns
    Beijos
    Paula Giannini

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigada, Paulinha linda!
      A ideia é exatamente essa, permear-se nas sensações decorrentes de acontecimentos desconectados (serão desconectados?).
      Beijos

      Curtir

  9. Fora da caixa, fora do padrão, fora de si. O conto é lindo porque assim foi lido. Imagens ficaram saltando na minha mente como um coelho e se foram como areia em ventania. Fiquei pensando por que escolher o coelho? Nascido da mistura álcool + sangue + areia, se multiplicaria como poesia?
    Os jovens nada veem, despreocupados com o passar do tempo, as crianças dormem, mas o guerreiro perde sangue e descansa, acima deles.
    Posso nao ter entendido quase nada, ou ter entendido tudo do meu jeito, mas adorei. ❤

    Curtido por 1 pessoa

  10. Olá, Sabrina!
    Que texto, hein, minha amiga!!!
    Começo falando que adorei o cuidado que você teve na escolha das palavras, formando aliterações belíssimas:
    Faíscas e fiapos de fumaça, a energia da erupção que emerge, desafetos desistem, embainha a espada, sacode a sacada, anuncia uma silhueta rosada.

    Depois, a teia de cores: A manhã alaranjada com o sangue do guerreiro remetem ao bloody mary e, depois do drink vertido, ele voa até tornar rósea a areia da rua, que ilumina a silhueta rosada.

    Então eu vejo que você está tecendo o teu texto com som e cores. Pensei num efeito borboleta, o que acontece com uma imagem remete a outra que se conecta à outra. Adulto, jovem e criança. E depois, o que você faz? Você volta no tempo, as crianças que remetem aos jovens na sacada que remetem finalmente ao adulto guerreiro, temporalidades que vão e voltam, como uma ampulheta que vc vira e revira contando o tempo, então você realmente teceu um texto com o tempo, som e cores como fios condutores.
    Que maestria, minha amiga.
    Para falar do que?
    E então temos a figura do coelho (de Alice no pais das maravilhas), a que não queria ou temia crescer. Crescer é tão complicado e, ao final, um guerreiro, homem feito, depois de tanto lutar,num descuido de atenção, sucumbe, torna-se areia que o tempo leva.
    E daí tempos tanto a mais para falar do texto, só desse embate entre juventude e maturidade. Que nem vou me estender mais.
    Então vejo que vc não é uma escritora, mas uma artista!!!!!
    Arrasou! Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Sandra, há comentários e há comentários! Eu só tenho a agradecer pelo tempo despendido para vir aqui e me deixar esse arrazoado generoso, que descreve mais do que, até, ousei escrever.
      Mas a ideia foi justamente essa: permear as sensações de 3 universos diferentes (lugares, idades, interesses, lutas, missões de vida) por um liame de continuidade. Ou seria descontinuidade?
      A sensação de efeito borboleta em looping também foi um objetivo. Fico feliz que a tua leitura permitiu se entregar a isso.
      Obrigada demais!

      Curtir

    2. Aaaa outra coisa, sem dúvida à referência à cor é importante… tudo é fruto de um mesmo sangue… que escorre… pinga… é bebido… faz poeira… volta.

      Curtir

Deixar mensagem para Paula Giannini Cancelar resposta

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑