Notícias do limbo – Catarina Cunha

 


Querido amor,


Trago notícias do limbo. Aqui não faz sol e nem chuva, frio ou calor. Os dias são iguais às noites assim como estas letras simétricas. Peço, desde já, desculpas pela forma sonolenta do relato, mas outra forma não haveria como chegar aos teus olhos, quiçá ao coração.

Gostaria imensamente que recebesse esta cheia de descobertas e felizes encontros, flores na estrada e temperaturas inusitadas. Quero que saiba que jamais te escreveria à toa se, realmente, não estivesse esta pobre alma perdida entre um parágrafo e outro.
Ciente e arrependida de meus crimes cumpro abnegada minha pena. Conto os dias com riscos na parede e, ao mirar o mural de retalhos, desespero-me com o tempo esquartejado e jamais recuperável. Daqui do limbo contemplo o infinito do que não fiz, do que não comi e, principalmente, do que não fui. Faz parte da pena a turbulência dos próprios pensamentos e o silêncio do futuro.
Quanto tempo mais ficarei por aqui? Com certeza o meu nobre anjo está a perguntar. É necessário que entenda a natureza do meu crime imprescritível, inafiançável e incomensurável por seu torpor. Trata-se de uma abominação continuada, logo a pena também o é. Sei que há volta, há fim dentro deste enorme círculo vicioso, no entanto a data não foi registrada nos livros oficiais do limbo. Preciso ter paciência ao vislumbrar cada manhã sem cor, posto que seja chama escondida dentro de mim.
Certa de encontrá-lo bem, coloco neste envelope meus cacos. Guarde-os numa caixa grande e arejada. Voltarei para juntá-los.
Com amor, sempre tua.

11 comentários em “Notícias do limbo – Catarina Cunha

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  1. Olá, Catarina. Vc manda um texto, uma missiva de alguém que escreve do limbo para o marido (?). A pessoa está presa numa espécie de lugar de expiação, de onde não sabe quando sairá, por causa de um crime que cometeu, mas ao leitor não é dado conhecer. Por outro lado a carta pode ser uma espécie de metáfora para fim de relação, onde uma pessoa é culpada, se sente culpada e sabe que talvez tenha uma chance de reconciliação, mas não consegue ter uma previsão de quando isso será. Penso que pode ter sido uma traição. Quando ela fala que ele guarde os cacos dela dentro de um lugar arejado e grande, é porque ela se sente destruída e confere a ele a capacidade de refazer o amor dos dois. Essa é a minha interpretação. Um conto bem diferente do que estou acostumada a ler. Abraços.

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  2. Sublime! Escrito na melancolia da culpa; essa temática me é muito familiar, logo, fala diretamente ao meu coração. Lindamente construído, delicado e duro. O final – “Certa de encontrá-lo bem, coloco neste envelope meus cacos. Guarde-os numa caixa grande e arejada. Voltarei para juntá-los.” – é um primor!
    Obrigada por este texto tão lindo!

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  3. Talvez ele receba em sonho a mensagem tão cheia de culpa e remorso. Talvez a esqueça, depois de desperto. No limbo não há senão o marasmo de infinitos murmúrios, lamentos de dias e noites do que se foi e não há certeza de volta, apenas daquilo que se vive. Talvez em sonho ele receba a mensagem e desperte consciente do conteúdo. E para quem é prisioneiro de uma vida isso não é sequer esperança.
    Parabéns pelo texto.
    Abraços!

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  4. Seria esta uma carta psicografada? O que teria feito ela de tão grave? Ou não tão grave, talvez de um presídio, já que tem a intenção de voltar. Eu ficaria com medo de receber uma carta dessas, rsrsrs. Se foi, não precisa voltar. Bjs ❤

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  5. Uma fusão de um conto curto com conteúdo poético e em forma de carta. Quanta elaboração, aliada a uma sensibilidade aguçada e uma linguagem definidora. Sempre espero os seus textos, que sempre vêm entrecortados por sentimentos marcantes e a denúncia dos vazios cruéis de comunicação.

    Parabéns! Grata pela leitura. Beijos. 🌹

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  6. Um texto enigmático. Soou-me como um desabafo e um pedido de desculpas de alguém que padece em um limbo existencial. Há também algumas referências metalinguísticas como se o limbo também permeasse a escrita do autor da missiva. O fecho ficou maravilhoso. Parabéns, querida Catarina. Sempre um prazer ler seus textos.

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  7. Olá, Catarina!
    Seus textos são curtos, cortantes e viscerais. E certeiros, no modo como atinge o leitor, que fica embasbacado porque sua mensagem é passada nas entrelinhas, é como você não diz que me encanta. Então eu começo com seu início: ” Peço, desde já, desculpas pela forma sonolenta do relato, mas outra forma não haveria como chegar aos teus olhos, quiçá ao coração.”
    Ela tenta falar ao marido em sonho. E assim sabemos que o coração do marido é lento para o que não é de seu interesse. Ela morreu com culpa, por não ter sido quem queria ser, por não ter comido aquilo de que gostava, acostumada a viver “cada manhã sem cor, posto que seja chama escondida dentro de mim”. Ou seja, seu conto meio que dialoga com o da Elisa, aquele sobre o velho que não tem coragem de romper com um cotidiano que não é pleno nem feliz. A esposa se dilacera, ela se fragmenta, ela sofre ao ponto de morrer, mas a ela não há penitência que expie o pecado de não ter sido quem poderia ser, porque o tempo é inexorável e ela nunca terá a chance de emendar seus cacos… Adoro seus textos, amiga! Sempre matador e matadouro.

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  8. Conto epistolar que traz a mensagem de uma mulher que se vê presa no limbo, como se não pudesse voltar ou seguir em frente. A emissora da carta está em um estado de indecisão, incerteza, indefinição, causado pelos seus remorsos por algo que ela cometeu e que considera terrível. Texto forte, enigmático, que desperta a curiosidade. Conte-me mais sobre isso, Catarina.
    Parabéns!

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  9. Que lindo, tão mórbido!!
    Hehe e primorosamente bem escrito, dá gosto de reler.
    Vi várias camadas além de uma alma sofredora e apaixonada, poderiam ser amantes separados, poderia ser uma mulher num presídio, d e qualquer forma a alma se pune, tem plena consciência de seus maus atos mas q acredita num perdão, num auto-perdão , depois de expiar bastante…
    Parabens pelo conto, Cat!

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