Poderia continuar aqui se a história fosse outra. Foram essas as primeiras palavras que ouviu assim que se sentou. Alguém repassava a fala da protagonista com a impaciência de iniciante. Restavam ainda algumas horas antes do primeiro ato. A tensão da estreia dominava elenco e direção.
Cansado, após responder as perguntas pouco criativas de uma jovem e inexperiente jornalista, o diretor Renato Castilho isolou-se na última fileira. O anonimato caía-lhe bem naquela tarde de verão. Logo mais, a chuva anunciaria a sua chegada, antes mesmo do último sinal alertando a plateia para o início do espetáculo. Ele já podia prever o que aconteceria à noite: um rio de guarda-chuvas coloridos invadiria a calçada do teatro. Era um bom sinal vindo dos céus. Sabia que a peça estava fadada ao sucesso.
De longe, passou a observar tudo com atenção, buscando coesão de pensamentos, ou quem sabe, acomodação para os sentidos. Concedeu olhar à cênica expressão de todos que ali se encontravam, ocupados demais para lhe despertar do tédio. Cenas simultâneas desenhavam-se com cada personagem tomando o espaço que lhe cabia. A trama tecida a cada minuto emprestava um misto de suspense e trivialidade ao local do espetáculo.
Como improvisada aparição, uma jovem atravessou o palco e se sentou na beirada do tablado, deixando as longas pernas balançarem no ar por um instante. Nas mãos, folhas de papel amassadas e repassadas por dias e olhos.
Castilho observou a moça com certa estranheza, talvez, até desconfiança. Imaginava o que havia ali, escondido naquele perfil delicado esboçado em giz. Adivinhava-lhe um quê de tristeza. Ou seria o contrário? Uma pintura de disfarçada alegria?
Sorriu como se soubesse que, cedo ou tarde, ela o descobriria ali, mesmo em sua camuflada presença. O sorriso permaneceu como um engasgo de espanto, um riso de éter, no rosto da atriz.
Os braços muito brancos lembravam o alabastro dos lustres do teatro. Sophia era encantadora, com ares de diva em floração. Havia nela a exuberância imprecisa de formas e cores. O rosto cheio, com maçãs pronunciadas, exibia um sorriso largo invasor de lábios recém pintados entre covinhas perfeitas.
O diretor prestou atenção ao descaso estudado da jovem. Será que era feita de louça? Pensou, hipnotizado por aquela que parecia destoar dos outros atores. Nela, nada parecia se agitar, era o retrato da serenidade. Aparente calma a acobertar o início de uma tempestade. Castilho já conhecia aqueles olhos que pareciam dançar em um céu particular, muito longe do firmamento de qualquer texto.
Todos ali já sabiam quem era Sophia Miranda, dona de olhos tão profundos quanto o oceano. A princípio, o diretor, homem experiente em matéria de beleza e arte, debochara da imagem que lhe apresentaram da jovem atriz. A descrição parecera-lhe carregada demais, um clichê sem definição. No entanto, interessou-se ao descobrir quem era a senhora de tais olhos de mar.
No primeiro dia de leitura do texto, Renato Castilho viu a moça desorientada entre tantas falas e compreendeu tudo na primeira troca de olhares. Não duvidava mais da força que o atingia como precisa ameaça. Muitos ainda haviam de se afogar naqueles olhos.
Diziam que Sophia amontoava presentes, flores e propostas no íntimo do seu camarim. Colecionava bilhetes na moldura do espelho que, um dia, denunciaria sem dó as suas primeiras marcas de expressão. Ela, certamente, não as recusaria. O diretor podia imaginá-la beijando o próprio reflexo, manchando de batom o destino que lhe fosse apresentado.
Agora, Renato repetia os diálogos da peça para si mesmo, como confissão ou quase arrependimento. Poderia continuar se… Sabia que a discrição era essencial para que o seu trabalho rendesse aplausos. Por isso, condenara Sophia ao esquecimento durante os ensaios. Para que aquelas ondas de sonho cessassem antes da jovem despertar para o seu olhar. Sem juramentos, ele silenciava declarações como se possuísse a chave de sua própria condenação.
Renato Castilho não procurava significado algum no resto do elenco que começava a se mover com nítida ansiedade. As pausas na respiração de Sophia lhe pareciam as mais dramáticas, cruéis, prontas a despedaçar sonhos. Ele cismara com ela, só isso, repetia para si mesmo. Desejava adequar o cenário possível à personagem que surgia diante dos seus olhos. Seria ela a redentora de tantos momentos sem sentido e diálogos fora de contexto?
Desde o primeiro instante, fora assim. Arrebatamento repentino diante de uma obra de arte. De repente, tudo se encaixava, sílaba por sílaba, na fala da atriz. Seria comedia. Talvez divina, ou ainda romântica. Com Sophia, a vida desfiava os mantos de toda sensatez. Rasgava os amanhãs sem temor por não apresentar razão. E ele só quis acreditar, enfim, que aquele desejo seria possível de realizar. Deixou-se inaugurar, entregue, em seus próprios sonhos, transformado.
Dali, a certa distância, Castilho conseguia criar outros temas, visualizar muitos planos e movimentos. Não estava nervoso com a estreia da peça, mas sim com o que viria depois. Sabia que não seria capaz de aguardar o primeiro sinal para bordar interesse nas formas e gestos de Sophia. Ela surgiria plena, com seus olhos a acumular tempestade e urgência.
Quando o teatro ficasse repleto de fãs e fantasmas, o diretor procuraria a estrela sob as luzes ainda acesas da ribalta. Sabia que seria tudo em vão. O olhar que nela sempre buscara, ali mesmo se desencantaria. A cortina pesada seria fechada, levando todas as expectativas e a temida desilusão cederia aos aplausos.
Mergulhado no labirinto de sua imaginação, Castilho relia a história mal dirigida e se sentia cada vez mais só. A representação teatral logo se iniciaria e, assim, noite após noite, a troca de personagens e amores repetiria como eco o que ele sentia.
Olhando para Sophia, sorrindo para os que passavam por ela, Renato Castilho percebeu que o espetáculo da noite, anunciado há meses, traria nas palavras, a conquista do porvir. Perguntou-se como apagaria as provas das noites que passariam ali juntos, repartindo a glória do momento. Embevecido com uma beleza que, talvez só a ele parecesse tão sublime, varreu para o canto da alma a poeira de estrelas que lhe nublavam o olhar.
Algum reflexo de intenção, por descuido do destino, atingiu Sophia que dirigiu o olhar para o fascinado observador. Por um segundo, talvez dois, Renato permaneceu no rastro dos sonhos que aquela pele alva lhe provocava. O encontro, na encenada aventura de amar, durou nada mais do que um piscar de olhos. O oceano acastanhado sob as densas nuvens da tempestade inundava todo seu raciocínio.
De repente, Leo Martins, o ator mais jovem da peça, surgiu de uma das portas laterais e atravessou o corredor entre as cadeiras da plateia com passos largos e decididos. Ignorou completamente a presença obscurecida do diretor. Trazia com ele uma caneca com conteúdo fumegante.
Vendo o colega em calorosa aproximação, Sophia saltou para o chão, sem calcular a distância, arriscando-se a torcer o tornozelo. Leonardo, alto e sorridente, entregou a bebida à Sophia como quem oferece o cálice sagrado. Ela ensaiou um agradecimento, mas nada falou, poupando as cordas vocais de uma gentileza indevida. Esboçou um leve franzir de linhas e planos. O sorriso misturado ao café quente adoçava as expectativas do jovem colega. No fundo, o outro homem engolia palavras não ditas e, em silencioso rosnar, olhava para Leo Martins.
Sophia soprou o café e tomou pequenos goles para afugentar o sono que lhe pousava nas pálpebras. Das noites no seu quarto de hotel, pouco lhe restara além de lágrimas e dores de cabeça. A dúvida quanto ao seu talento aumentava com a constante indiferença do exigente diretor. Sentia como se ele guardasse as piores críticas, em silêncio, preferindo que ela nem mesmo existisse. Jurara a si mesma que não seria mais dirigida por aquele senhor tão desagradável. Não que ele fosse feio ou velho demais, mas lhe causava calafrios com aquele olhar sádico exigindo bis.
Depois de mais alguns goles, o bastante para aquecer sua disposição, Sophia deixou que uma das funcionárias do teatro levasse a caneca de suas mãos, reclamando qualquer coisa sobre normas.
Com o calor invadindo corpo e mente, Sophia conseguiu afastar suas preocupações. Voltou a se armar com a sua segurança natural, seu talento nato para despertar as mais variadas reações do público. Se nela havia o mundo, que continente acreditaria ser? Abriu os olhos, aqueles dois caprichos sem rumo, que pareciam sonambular em outra constelação.
Começaram os dois, Leo e Sophia, a ensaiar as falas que guardavam nos olhos, depois de tantos e longos ensaios. Cúmplices, interpretavam a si mesmos para o observador enciumado.
Castilho suspirou, ansioso pela ausência do seu antagonista. Pensamentos pesados escorreram entre as pedras dos ciúmes, como confidentes que entreabriam as cortinas paraentrever o público. Sem pensar, o diretor fez-se reconhecer presente, ditando ordens aos técnicos. Elevou o tom, firmando voz e vontade. Queixou-se das poucas instalações do cenário, das luzes mal trabalhadas, do nublar dos diálogos ditos às pressas pelo ator que rodeava e devorava Sophia.
Esperou que Leonardo afastasse sua sombra da sua estrela, entre surpreso e aborrecido com a interrupção do diretor. Renato Castilho levantou-se com o cansaço inerente a quem já revisara letra e música. Aproximando-se do palco, manteve o passo o mais firme possível, contando os sinais que imaginava receber.
Castilho estancou, com o olhar fixo em Sophia e sem respeitar qualquer distância. Sorriu porque era o que lhe restava fazer. Dentes e alguma esperança ainda a oferecer.
Mordida e beijo, desejo e medo. Sem qualquer ensaio, fez-se silêncio antes da fúria. Gotas pesadas caíram sobre o teatro transformando a pausa do espanto em sinfonia líquida.
Chovia, afinal. O espetáculo já podia começar.
Que narrativa! Eu mal consegui tirar os olhos da leitura. Do começo ao fim, a esperar um ato do diretor diante dela.!uma quebra com a entrada de seu antagonista e, por fim, a decisão tomada. E a chuva desabando. É um corte na cena não esperado, mas perfeitamente encaixado ali, a deixar o que está por vir em suspense. Eu amei.
Parabéns pelo texto.
Beijos e abraços carinhosos.
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Que delícia ler o seu comentário, Evelyn. Este é um conto reciclado do desafio Música do EC. Fiz outra versão, mas o tema é ainda a tensão entre atriz e diretor. Fiquei orgulhosa de você ter apreciado meu conto. Beijos.
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Ler o seu conto me lembrou de quando era pequena e estudava em um colégio católico. Na época da primeira comunhão, uma das freiras trouxe uma sequência de quadros sobre a “via crucis”. Eram várias cenas que contavam uma história. Vi o seu conto como este dia, ou como se entrasse um museu e visse cada tela, e parasse para admirar.
O que vc traz não é apenas uma história, mas uma sequência de cenas finamente esculpidas, entre cenários, fumaça, suspiros. Coisa que prende o leitor que se deleita com descrições.
Muito plástico o seu conto. Muito mais que um filme, uma contemplação.
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Você sempre tão atenciosa e generosa, Boca Vermelha. Que bom que o meu conto conseguiu prender a sua atenção.
Você também se apega aos seus personagens? Para mim, eles existem de verdade, até converso com eles… ainda bem que não em voz alta. Minha filha já diz que sou estranha por ser escritora. 🙂
Beijos. ❤
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Olá, bela Cláudia.
Foi muito gostoso ler seu conto, ele é muito sensorial, muito projetável. Conseguimos visualizar as cenas, e esta capacidade do autor faz a história ganhar cores e formas.
Se eu me apego aos meus personagens? Nunca raciocinei sobre isso. Houve um tempo em que eu via meus contos como filhos, e até brigava por eles. Achava que o defeito era do leitor que não havia conseguido entender.
Em algum momento eu comecei a não gostar do que escrevia. Comecei a enxergar defeitos, achar meus contos mal escritos e sentir que eu precisava reinventar a minha literatura. Isso e outros fatores me fizeram abandonar os concursos. Acho que nunca serei a escritora que desejo, então escrevo só por prazer mesmo.
E bola para a frente. Beijos.
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Mesmo sem entender nada de música, ouso dizer que seu conto soou como uma sinfonia: um começo suave, um crescendo, um momento dramático, uma volta à melancolia, o auge…
Cheio de lirismo imagético, elegante: muito seu, pelo que tenho visto!
Parabéns pela escrita tão linda e pelo quadro que ela pintou em minha mente!
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Muito obrigada pela leitura e pelo comentário tão gostoso de ler.
O conto foi escrito baseado na música Beatriz – do Chico Buarque e Edu Lobo. Então, você entende tudo de música, viu?
Fico muito contente por ter apreciado minhas palavras assim juntinhas como notas.
Beijos. ❤
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Não gostei muito deste diretor, soou-me antipático e ridículo, ignora o talento da moça para disfarçar seu desejo por uma garota mais nova. Contudo, a jovem me cativou, gostaria de saber como ela se saiu na apresentação e na carreira. Ótimo conto, adorei. Bjs ❤
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Oi, Vanessa, tudo bem? Então, o diretor tinha fixação na Sophia mesmo e para disfarçar fazia esse joguinho.
Com certeza, a bela atriz saiu-se bem e nem se importou com a chuva. Leo trouxe guarda-chuva!
Obrigada pelo seu comentário e principalmente pela sua leitura. Valeu! Beijos. ❤
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Uma história repleta de sensações e emoções: uma mescla de amor e ódio narrada de forma tranquila e fluente, mas com forte carga poética, com seu estilo único.
Parabéns pela construção psicológica das personagens e ambientação. O desfecho com a chuva caindo é sugestivo, cria possibilidades na mente dessa leitora, já capturda desde o início.
Você, Cláudia soube elaborar ficcionalmente o amor, a dor, a esperança, o ciúme, tratando cada gesto, cada pensamento, com delicadeza e precisão. Grata pela leitura. Beijos.
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Sempre muito generosa com os meus textos, Fátima. O elemento “chuva” incluí só depois, quando quis juntar contos com o fio condutor “água”. Fico muito feliz por você ter apreciado a leitura. Muito obrigada. Beijos.
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Oi, Claudia, que texto lindo. Lembrou-me a música Beatriz, do Chico… A trama foi se desenrolando e me enriolando em sua teia, ansiosa pelo desfecho, por saber se o amor se cocretizaria. Você escreve muito bem. Parabéns. Amei.
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Oi, Fernanda, obrigada pelo generoso comentário. Você acertou – o conto foi baseado na música Beatriz mesmo. 🙂
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Um conto extremamente plástico, Claudia. Curioso que enquanto lia soava-se como um ballet. Aproximações e afastamentos, o diretor voyeur malvado espionando a solista graciosa. Quando nos comentários li que a inspiração era musical fiquei muito impressionada. Tenho esse deficit:de não me fazer acompanhar por música quando escrevo. Você me inspirou com esse conto a me desafiar. Parabéns, querida. Um beijo,
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Agradeço muito pelo comentário generoso. Geralmente, escuto música quando escrevo, talvez porque mergulhe demais no universo dos personagens. Repito a mesma faixa, ou crio uma playlist… Música sempre me faz viajar. Já me apaixonei por causa de uma música, já criei amores com trilha musical. Sem música, sou muito racional, sem poesia. Beijos. ❤
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Claudia querida,
Tua escrita, como sabemos, é muito rica. Tu tem o dom de transcorrer cenas com uma linguagem própria e, como disse, muito rica. Tu usa as palavras disponíveis na língua portuguesa, e o nome disso é “bom vocabulário”.
Mas não é só, a trama do conto é muito mais rica do que a história traz. Há uma complexidade de sentimentos dos personagens – principalmente dos principais, o diretor e a atriz Sophia – que vão se desenvolvendo em um “labirinto de sua imaginação”, como está no texto.
Achei adequadíssimo colocar nome e sobrenome do diretor, pois deu mais severidade, uma severidade que ele quer que seja representada, a bem da arte.
Muito bonita tua história. Certamente daria um belo romance ou novela.
Beijos
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Hummm.. eu estava lendo e pensando.. eu já conheço este texto… daí q eu esperava por um final trágico.
Não foi assim com a outra versão? Não lembro bem…
Eu gostei deste beijo psicopata no final 🙂
Parabéns pelas duas versões, Claudia.
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Querida Cláudia,
Assim como em seu romance, aqui você traz os bastidores da cena, de modo tão poético e cheio de amor. Um conto inspirador.
Feliz 2021, querida amiga.
Beijos
Paula Giannini
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