Ela fica dias e dias remoendo ressentimentos e rancores e repassando tudo o que vai dizer. Ele tem que saber o que ela sente, o quanto sofre, o quão terrível é seu descaso. E ela pensa e pensa e anda pela casa falando sozinha o dia inteiro e quando a noite chega ela não dorme e quando dorme tem pesadelos onde fala e fala e fala e quando acorda já está novamente pensando e pensa e pensa e anda pela casa falando sozinha o dia inteiro.
Ela nem o ama mais, conclui. Não mais. Chega. E como poderia, com todo este sentimento podre necrosando suas entranhas, com toda esta raiva, com toda esta mágoa? Nem o ama mais. Mas tem ainda muito a dizer. Tanta coisa tem que ser dita. E ela dirá. Recita um monólogo cheio de verdades absolutas e edita trechos e troca um verbo por outro e escolhe adjetivos mais incisivos e advérbios menos dramáticos e ensaia de novo e de novo e de novo. Seu discurso é lapidado em cada detalhe até ser finalmente concluído à prova de erros, com argumentos irrefutáveis, condições das mais justas, ultimatos. Pois agora ela vai falar, ele vai ouvir e ela nunca, nunca mais vai passar por isso.
E aí ele chega, sabe-se lá depois de quanto tempo. Mas isso é apenas uma expressão vazia, porque ela sabe. Contou cada dia e em cada um deles decorou cada linha do que está pronta a declamar, agora que ele finalmente está aqui. Mas, por outro lado, ele agora está aqui, com ela… Não, não importa, ela vai falar tudo, sim, mas não ainda, daqui a pouco. Primeiro ela espera para ver se ele tem algo a dizer; seu espírito ferido quer estar errado, quer acreditar na existência de uma história fantástica qualquer que justifique todos os dias alucinados, as noites insones, os sermões inflamados, testemunhados pelos gatos e pelas paredes. Mas ele não lhe dá nada. Nada. Não tem nenhuma história fantástica ou uma explicação verossímil ou sequer uma desculpa ridícula. Ele não diz nada, e age como se nunca estivera em qualquer outro lugar além daqui. E sorri e diz que ela está linda e a abraça e lhe beija o pescoço e cheira seu cabelo e a suspende no ar e rodopia com ela nos braços. E ela quer impedir e resistir e se desvencilhar, mas mesmo contra sua vontade o sorriso lhe vem, e ela sabe que o momento se foi. Bastou um instante, e tudo o que ela tem a dizer, tudo o que está entalado na garganta, toda aquela angústia represada, as queixas justíssimas, as exigências inegociáveis, tudo desaparece quando ele a abraça, o toque de um Midas da ilusão.
Ela, no entanto, ainda não se entrega: há de lançar algumas faíscas que não machucam ninguém, encenar uma rispidez calculada e patética, inocular algumas pequenas gotas amargas que ele fingirá nem perceber. Mas o faz de teimosa que é, pois de nada adiantarão, e ela bem sabe. É tudo o que lhe resta fazer. Porque essa é a única maneira de não se sentir totalmente como a idiota que é.
Olá, Giselle, bom dia! Primeiro, seja bem vinda a este espaço onde colocamos nossa arte e esperamos as visitas para um café, uma conversa, uma troca que é o objetivo, afinal, deste grupo. Estou aqui desde o comecinho e vejo o quanto este caminho tem mudado, se ampliando alcançando outras mídias. Acredito, porém, que a essência do propósito das Contistas é divulgar a boa literatura através destes nossos contos e demais textos. É importante lermos umas às outras e chamarmos “gentes” de fora para que conheçam o nosso trabalho.
Dito isso, vamos ao comentário.
Seu texto é um fluxo de consciência de uma pessoa com muitas questões a resolver com o companheiro. A angústia de não colocar isso para fora a atormenta o dia inteiro e a faz pensar no problema e no que seria a solução. Você consegue manter o meu interesse e torcer para a sua personagem. Ela é aquele tipo de pessoa que reflete mais do que age e com essa atitude acaba deixando que as coisas permaneçam como estão. Sua escrita cirúrgica e atraente nos conduz até o final surpreendente, mas muito recorrente na vida de quem já passou por esta situação. Gostei muito. Você tem uma escrita muito profissional e honesta.
Parabéns e que sempre seja um prazer compartilhar conosco as suas criações.
Iolandinha.
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Oi, Iolanda! Muito obrigada pelo comentário tão elogioso e também tão carinhoso! Estou muito feliz de estar aqui entre vocês, escritoras que tanto admiro! Um beijo!
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Uma delícia ler seu texto. Interessante como vai da comédia ao drama abusando do talento que possui. Gostei muito. Um texto envolvente do início ao fim. Seja bem-vinda a este espaço. Belíssima estreia. Parabéns.
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Olá, querida! Muito obrigada pela acolhida e pelo comentário! É realmente um sonho realizado estar aqui entre vocês! Beijo!
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Ah, a angústia embutida nos relacionamentos mais íntimos! Sua habilidade com as palavras traz uma familiaridade que nos faz grudar nos sentimentos da protagonista. Como não se reconhecer ali naquela passividade que implode dentro do peito? Parabéns!
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Oi, Claudia! Você usou a palavra certa, “angústia”: era exatamente o que eu queria transmitir! Fico contente que você a tenha desnudado! Muito obrigada, querida! Feliz de estar aqui com vocês! Beijos!
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Eu amei. O texto, rico em detalhes, me prendeu do começo ao fim. Só quem passou por alguma coisa parecida sabe como é ruim sentir essa agonia, essa aflição. A personagem parece viver um calvário e eu senti por ela.
Parabéns!
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Muito obrigada, minha amiga querida! Quem já passou por isso sabe bem, né? E o melhor é olhar pra trás e poder dizer “fui idiota, mas não sou mais!” 🙂
Beijos!
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Que texto bacana retratando o pluriverso feminino; Sua personagem somos nós todas. A voz dela é a nossa voz. Poderia deixar uma lacuna, como nas atividades escolares onde colocaríamos nossos próprios nomes. Brincadeira!
Quero te ler mais! 😘
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Olá, Rosita! Que delícia de comentário! Infelizmente, é bem isso mesmo que você disse: minha personagem não tem nome justamente porque somos todas um pouco idiotas. E é por isso que eu escrevo: para que alguma garota, em algum lugar, possa se reconhecer e dizer “chega de ser tonta!”. Foi com um conto que eu um dia acordei de um pesadelo; gostaria de poder fazer o mesmo por alguém! Um beijo e obrigada pelo carinho!
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Oi, tudo bem?
Gostei do seu conto. Achei que algumas repetições auxiliaram no repasse da sensação de angústia vivida pela personagem. É curto, como um pequeno retrato de um cotidiano desgastado que muitas de nós já viveu/vive.
Parabéns!
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Oi, Maria! Muito obrigada pelo comentário! Sim, você captou bem minha intenção com a repetição, que era mostrar a personagem andando em círculos! Ao mesmo tempo em que fico feliz de saber que muitas se identificaram com a personagem, fico muito triste, e pelo mesmo motivo; isso só prova que há muito ainda a se fazer para que muitas de nós deixemos de ser idiotas às vezes. Mas chegaremos lá, tenho certeza – uma passo de cada vez, e sempre para fora do círculo! Obrigada pelo carinho! Beijo!
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Olá, Giselle!
Seja muito bem-vinda ao grupo e, com certeza, vc estreia com um texto primoroso. Um fluxo de consciência em 3a pessoa, ou quase isso, o que é incomum. E, surpreendentemente, vc ganha a atenção do leitor do começo ao fim do relato. A protagonista está desesperada, vai explodir, pôr para fora o que a aflige e então… nada… ela se contém, eternizando a passividade de gerações de mulheres. E por que motivo? Em nome da boa relação, do bom clima de um casamento onde o marido é o provedor, dos filhos que precisam de um pai. E a história se repete. A Marceli Becker tem uma poesia que fala disso. E se vc me permite, vou postar aqui um dos textos dela que dialoga com o seu:
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje, iguais às de amanhã
que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente
é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só
com o passar do tempo nos tornamos todas iguais
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no final
sempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula
.
as mulheres são todas iguais
por isso quando caminho pelo bairro me reconheço
em outras
sou a moça parada à janela, translúcida
sou a que atravessa o dia pensando em rosas
do povo
de hiroshima
de gertrude stein
de ninguém
estou na rua, mas estou em casa
estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, o sino sendo tangido pelo silêncio […]
Vc tem uma leveza em seu texto, direto, efetivo, bem amarrado. Uma estreia genial. Parabéns pelo belo conto, certamente As Contistas ganham e muito com sua participação!
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Oi, Sandra! Mesmo sem ver seu nome eu já sabia que esse comentário era seu, pelo estilo lindo da sua escrita, da qual já sou fã!
Fico muito feliz que você tenha percebido o fluxo de consciência em terceira pessoa; isso é uma coisa que sempre quis fazer, mas que não levava adiante por medo de que causasse um estranhamento a quem lê. Mas, ao chegar aos 50 anos, comecei a pensar “Está com medo? Mais um motivo pra ir lá e fazer!”. E então venho me desafiando; às vezes dá certo, como aqui acho que deu, e muitas vezes dá muito errado. Mas faz parte! 😊
Amei essa interlocução com o poema da Mar Becker! Eu a acompanho no Instagram, e fico sempre encantada com a beleza crua da sua poesia. E realmente este poema dialogou perfeitamente com meu texto! Obrigada por este presente!
É mesmo uma honra estar aqui com vocês! Feliz demais! Beijos com gratidão pela acolhida tão carinhosa!
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É uma alegria contar com você neste espaço. Parabéns pelo trabalho de estreia, esse texto que retrata perfeitamente as pequenas nuances do cotidiano feminino, colocando em cheque o intervalo entre o sujeito e o objeto, o eu e o outro. Quem ainda não passou por momentos como esses?
Estilo e temática se fundem. Sua palavra é o elemento certeiro e concreto dos muros que cercaram a protagonista e que ,depois, ruíram em ternura. São retalhos de viva aderência com o mundo recriados de forma coerente, coesa e cativante.
Grata pela leitura. Espero ler muitos outros textos seus. Beijos.
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Olá, Fátima! Muito obrigada pelo comentário tão querido! Estou realmente muito feliz de estar aqui, cercada por esta mulherada fantástica! Ainda mais porque só agora percebo que tenho uma temática feminina – juro que isso nunca havia me ocorrido! Mas as identificações estão deixando isso muito claro pra mim!
Mais uma vez obrigada pelo elogio e pela acolhida! Beijos!
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Como não se reconhecer nessa sua protagonista que se rói por dentro planejando verbalizar o inverbalizável mas se desmancha ante a sedução do homem amado. Adorei a ironia amarga do fecho do texto. Encerrou com personalidade. Parabéns! E seja muitíssimo bem vinda ao grupo. Ansiosa para ler seus textos aqui. Um beijo.
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Oi, Elisa! Muito, muito obrigada! Sim, gostaria que não houvesse tanto reconhecimento, mas a existência dele mostra que há um caminho longo ainda a ser percorrido…
Fiquei muito receosa de estrear aqui com este texto; não tenho mais distanciamento para saber se algo está bom ou ruim, juro… Por isso é com muita felicidade – e grande alívio! – que leio comentários como este seu! Obrigada mesmo, de coração!
Beijos!
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Construção ótima e excelente escolha de palavras. O texto vai fluindo, em movimento leve, em ritmo agradável. As reflexões de sua personagem são bastante complexas, mas o não dizer é o que mata o sentimento. Acho que o silêncio corrói a alma, mas em um relacionamento, tudo é muito complexo e o preço é alto se não há suporte. Você deu à sua personagem uma carga bastante real. Parabéns pelo texto.
Abraços carinhosos.
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Olá, Evelyn! Só agora vi que não havia respondido, tinha certeza de que já havia visto todos os comentários.
Muito obrigada pela leitura e pelos elogios! Sim, você disse tudo: “o silêncio corrói a alma”. É exatamente disso que se trata o texto – é um chamado à ação. Está mais que na hora de falar tudo.
Um beijo e obrigada mais uma vez.
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Giselle, eu adorei.
Acho que é um conto ótimo, com o qual muitos leitores e leitoras vão se identificar.
A gente trapaceia nossas próprias vontades, a nossa própria felicidade, por uma pitada de tranquilidade, mas é uma tranquilidade aparente.
Esse teu conto é uma lição: se for idiota a vida inteira – e é simples ser idiota – tu nunca vai ser feliz. Ser acomodado é fácil, ser feliz rasga-ossos (se me permite o trocadilho).
Adorei as repetições e a verdade crua. Gosto assim.
Bem-vinda mil vezes!
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Olá, Sabrina! Desculpe só responder agora; não sei como não vi seu comentário antes.
Muito obrigada! Sim, você captou exatamente o âmago do texto, e seu trocadilho foi perfeito: ser feliz não é um objetivo, é uma decisão das mais difíceis, e, sim, rasga os ossos!
Um beijo e obrigada pela acolhida carinhosa!
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Ai, guria.. vc tem um jeito de escrever que é uma delícia!
Já adorava acompanhar teu feed no facebook 🙂
Que bom que viestes às Contistas!
Esta sua angustiante narrativa é tão feminina!! Eu não tinha passado por isto até pouco tempo atrás kkkk mas durou pouco pq graças a Deus a experiência veio já numa idade mais madura, pero no mucho… mas.. enfim.. aprendamos a ter a auto-estima desses caras q tem a certeza da aceitação a qualquer preço, eles se acham.. vamos nos achar tb, as rainhas e não mendigas.
Obrigada por compartilhar este texto.
Bjs mil!!!
❤
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Oi, Kinda! (Posso te chamar de Kinda? Vi as outras te chamando assim! 🙂
Pois é, você disse tudo: que todas nós tenhamos essa autoconfiança, chega de mendicância! E, acima de tudo, que conquistemos também a coragem de falar ali, na cara dura, tudo o que clama a ser dito!
Muito obrigada pela leitura e pelo comentário tão querido!
Beijo!
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claro, Kinda, sempre!!! ❤
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Oi, Giselle!
Fluxo de consciência bastante reflexivo….quantas de nós já nos pegamos, em algum momento da vida, ensaiando diálogos decisivos, onde dizemos tudo – tudinho – o que pensamos e guardamos (aguardamos) para dizer? Quantos sapos engolidos e pelo menos na imaginação cuspidos, soltos, indo ao encontro de quem merece ouvi-los….e, também, quantas vezes, ao chegar o momento certo, mudamos completamente o rumo de nossas resoluções?
Muitas, muitas vezes…e por tantas razões…o grito interno de “idiota” às vezes ecoa por anos rsrs.
Adorei seu texto, bjokas!! ❤
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Oi, Renata!
Muito obrigada pela leitura e pelo comentário tão querido! Sim, infelizmente sempre rola uma grande identificação feminina aqui, não é? Eu me lembro bem de que, há muito tempo, foi lendo um conto que eu acordei para a realidade patética da minha situação naquele momento – este conto aqui e agora é minha tentativa de poder fazer o mesmo por alguma mulher, em algum lugar!
Um beijo!
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Querida Gisele,
Ótimo texto.
Ótimo ir aos poucos reconhecendo sua escrita, sua verve tão particular.
Somos múltiplas em sentimentos e ações, somos humanas, afinal. Um texto carregado daquela melancolia que chega a fazer rir, não é?
Parabéns e que bom que você fax parte das Contistas agora (aprece que sempre esteve por aqui).
Beijos e Feliz 2021!!!
Paula Giannini
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Olá, Paula!
Em primeiro lugar, desejo a você e sua família também um 2021 muito feliz!
Sim, acredito muito no poder do humor, da melancolia e da ironia para nos fazer acordar, reagir, ver as coisas com outros olhos. É assim que eu desperto sempre, e espero conseguir fazer o mesmo com outras pessoas.
Muito obrigada pela leitura e pelo acolhimento! Estar aqui entre vocês é um presente que 2020 reservou para mim! 🙂
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❤️💓❤️💓
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