Não quero me adiantar. Tenho que começar do começo e deixar que os acontecimentos falem por si mesmos. Não os enfeitar, distorcê-los, nem contar mentiras. Avançar passo a passo, lenta e cautelosamente.
Por onde começar?
O agenciador perguntou-lhe como estava indo a pintura:
— Não está indo…
— Não se atrase. Estamos às vésperas da exposição — ignorou seu tom. Saiu sem ouvir:
— Tenho andado meio deprimida. É como se me perdesse nos meus próprios pensamentos. Nadando na lama.
Mas quase concluiu a tela… que foi exibida com estardalhaço…
Visitar a galeria, tão pouco tempo depois da partida de Tereza, demonstrava insensibilidade?
Talvez. Entrei na fila com os outros apreciadores de arte, esperando minha vez à luz neon vermelha da sex shop ao lado. E, um por um, nós entrávamos. Dentro da galeria, éramos conduzidos como uma multidão empolgada num parque de diversões indo para a casa mal-assombrada.
Até que me vi diante da tela.
Fiquei encarando a pintura. O rosto de Tereza. Procurei interpretar seu olhar, tentando entender — mas o retrato resistia, desafiador. Ela me encarava com máscara impassível, impenetrável. Não consegui detectar inocência nem culpa em sua expressão.
Houve quem achasse a leitura mais fácil:
— Maldade pura — sussurrou a mulher atrás de mim.
— Né? — concordou sua companhia. — Piranha com sangue-frio.
Um tanto injusto, pensei, considerando que Tereza me salvou da morte. Mas, na verdade, a conclusão era inevitável. Desde o início, os tabloides venderam a ideia de que ela era uma vilã: uma mulher fatal, dissimulada. Uma traidora.
A pintura era um autorretrato. E Tereza lhe deu um título, ou fez uma dedicatória, no canto inferior esquerdo da tela, em letras azul-claras do alfabeto grego. Duas palavras: …para Admeto.
Admeto, o marido de Alceste — a heroína do mito grego? Ela decidiu sacrificar a própria vida, morrendo no lugar dele, quando ninguém mais o fez.
A pintura mostrava Tereza de pé diante de uma tela num cavalete, segurando um pincel. Nua. O corpo entregue sem que se poupasse nenhum detalhe: longos fios de cabelo castanho se estendendo além dos ombros ossudos, as veias azuladas visíveis por baixo da pele pálida. Com a cabeça virada de lado, parecia olhar diretamente para alguém no público. Boca aberta, lábios afastados. Muda. As feridas recentes nos dois punhos. Segurava o pincel entre os dedos. Deles pingava tinta vermelha — ou seria sangue?
Ela se retratou no ato de pintar, no entanto, a tela estava vazia, assim como sua expressão.
Desprendia do quadro pranto e o sabor das cores. Um doce-quente perfume, um quase sabor da saudade… Imagens desbotadas que eu conseguia ressecar com meu olhar.
Havia desejos no ar; ansiedades apenas brotando, misturadas a infortúnios perdidos nas camadas de tinta, envolvidos, estrangulados nas linhas.
Um ruído inexorável, eficaz, ininterrupto, sem descanso, sem pausa emanava de cada traço.
Podia ouvir vozes abafadas por muros e tapas. Vozes de épocas remotas, soluços de lugares para sempre perdidos; gritos do homem sem rumo, flanar de asas de pássaros que já não alçam voo. A verdade sufocada, propostas sem pejo… a quase inaudível confissão das amantes em pânico, das amantes em transe, a agitação das febres do impossível carregado de sonhos.
Num susto estava naquela galeria que deixara havia um ano. Pensava em como seria voltar. Não sabia como reagir à solidão de estar ali. Um bicho? Poderia enroscar-me, contrair os nervos, fechar os olhos por longos momentos; cada coisa distraía um pouco, mas tudo somado era nada.
Pensei: vou deixar passar meia hora. Fixei os minutos no relógio e comecei a inventar coisas, imagens-relâmpago passando pela cabeça, fugas por terras mal sonhadas. Voltei ao relógio, ele dizia que o tempo passou muito pouco. Mas ele passou rápido pelos cantos de meus olhos e os apagava, enchendo-os de franjas e sulcos, enrugava minha pele, endurecia-me os músculos.
Aquela tela. Tereza começou-a antes de sair da clínica. De acordo com a enfermeira, ela mal comia ou dormia — limitava-se a pintar. Nunca se sentiu muito à vontade com as palavras — sempre pensava visualmente. Fazia total sentido — pelo menos para ela — que se utilizasse de tintas e pincéis para expressar as complexas emoções. Não é de surpreender que, para variar, a inspiração lhe viesse com facilidade; se é que a dor pode ser considerada fácil. (Sempre se preparara durante semanas ou até meses antes de começar um novo quadro: intermináveis esboços, dispondo e reformulando a composição, experimentando cores e formas. Cada pincelada era aplicada com infinita meticulosidade — uma longa gestação seguida de um demorado parto.)
Tal como se apresentavam, os fatos eram simples. Era a normalidade de mais um dia. (Tereza em casa depois de semanas na clínica. Cheguei mais cedo…)
A porta do quarto entreaberta. Dois corpos nus enlaçados. Eu parei. Engoli todos os xingamentos que me subiram pela garganta. Minha voz era curta, sem fôlego, como alguém tentando falar enquanto segurava um grande peso, mas calma e gentil:
— Conte-me… (pausa) …a versão verdadeira — pressionei-a.
Três estampidos. Na arma, apenas as impressões digitais da outra mulher. O homem banido, sob o gatilho da força. O barulho da bala batida na parede após o percurso sangue-carne dos corpos tombados. (A outra mulher se matou quando viu a tela abortada.)
Tudo aconteceu muito rápido. Não restava a menor dúvida: Tereza me protegeu com o seu corpo quando a amante atirou em mim.
Já o porquê do sacrifício…
O crime era debatido na mídia, e surgiam diferentes teorias nos jornais, no rádio, nos talk shows. Especialistas eram convidados a explicar, justificar os atos de Tereza. Eu, descrito como marido dedicado, apaixonado pela companheira. Ela ainda me amava? Sentimento de culpa? Outra teoria era de que se tratava de um jogo sexual que deu errado.
Não sei explicar a dor, essa dor mansa. Estou sem pontos de referência? Eu a odeio, pois que era possível odiar. Amo mais (ou desamo menos)?
Procuro afastar a imagem de Tereza. Ela se cravou em mim, faca, doceagudamente. Quase continua aqui. Quase posso tocá-la. Antigas lembranças apagam um pouco o inconsolo da situação.
Foi-se, fez-se um vazio. Restou a acrílica sobre a tela.
…para Admeto. Pressentimento? Um plano?
Olá, Fátima!
O conto retrata um instigante triângulo amoroso. Mas como uma tela tem suas camadas de tinta até o retrato completo, também o conto tem suas nuances, que vão sendo pinceladas pontualmente as sugestões da autora. Eu entendo que Teresa era infeliz no casamento com o marido autoritário, inclusive tentando se matar, apunhalando seus pulsos e sendo internada numa clínica. Mas Teresa ama sua amante e é pega em flagrante em pleno ato de entrega e quando a amante tenta assassiná-lo, inexplicavelmente Teresa se atira sobre ele, protegendo-o. O que ela queria com isso? Que ele se roesse de remorso? A tragédia grega de Eurípedes é simbólica. Quantas camadas de loucuras habitam em nós, não? Muito instigante o seu conto, com grata explosão de sentidos! lindo!
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Obrigada, Sandra! Seu comentário é pontual , você pegou em cheio o espírito da história. Beijos!
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Uma história contada por quem não se espera. O marido traído, opressor, impositivo, uma muralha entre a esposa e seus desejos de libertação. A tela é o refúgio, onde Tereza se reconhece, os braços da amante, a entrega e a rebeldia. Mulheres passaram muito tempo sendo tratadas como crianças sem voz, talvez por isso se apegassem tanto aos próprios algozes, e talvez por isso ela tenha se jogado entre a bala e o marido. Ela via o marido como um pai. Uma história complexa que só poderia ter nascido da cabeça de uma grande autora. Parabéns, amiga de todas as horas. Beijos.
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Grata, Iolandinha! Sempre atenciosa. Meio feminista, mas uma leitura sincera. Ficará em aberto a dúvida de qual elemento do casal seria o remorso. O conto pertence, agora aos leitores. Rsrsrsrs. Beijos mil!
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Eita, eu não entendi o conto? kkk Isso é a minha cara. Desculpe.
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Desculpe, Iolandinha! Você entendeu sim, e muito bem. Eu quis dizer que pode haver outras interpretações, o conto dá espaço para isto. Cada leitor tem sua vivências e seu repertório. Desculpe novamente, eu é que não soube me expressar. Eu a respeito muito. Beijos
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Uau! Que surpresa neste desfecho. Gostei.
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Muito interessante seu conto,surpreendente em alguns pontos. Gostei da forma como Teresa usou a arte, a pintura, a tinta como sangue para mostrar seus sentimentos, para mostrar o que ela escondia. Muito interessante o fato dela ter salvado o marido, ficou a dúvida no ar. Achei seu conto bastante criativo e muito bem escrito. Giostei de ler. Parabéns.
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Grata, Fernanda! Um comentário muito gentil! Beijos carinhosos.
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Um daqueles textos que puxam a gente como areia movediça, querendo nos abraçar com a força de seus múltiplos significados. Que lindo! Que triste ! O enredo sendo revelado tal a pintura sobre a tela. Muitas pinceladas pesadas, outras tão sutis que se desfazem antes do olhar percebê-las. Você soube dosar a carga dramática com um lirismo leve, que quase nos escapa. O mistério das intenções. A quem cabe a culpa? A quem visita o remorso?
Parabéns pela maestria com as palavras. Encantada com o seu talento. Beijos.
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Que comentário simpático! Obrigada! Vamos nos esforçando e aprendendo aos poucos! Beijos.
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Um conto intrigante. Um triângulo amoroso com um desfecho trágico. Antevisto pela intuição de Tereza ou por ela detalhadamente arquitetado? A história vai se construindo tal como um quadro: um esboço, tonalidades básicas, camadas sob camada dando textura a imagem retratada. No quadro, a artista se representa no ato de pintar, mas os olhos que se dirigem ao público estão vazios como a tela dentro do quadro. Um enigmático mise-en-abyme que revela que o mistério da protagonista, assim como o do conto, não tem resposta. Envolvente, sinestésico e aberto a múltiplas leituras. Bem do jeito que eu gosto. Um beijo, querida.
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Fico feliz que tenha gostado do conto. Sua opinião é importante para mim. Obrigada pela leitura e comentário gentil. Beijos.
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Primeiro, sobre acrílica… Um meio que exige técnica, porque a tinta demora pouco para secar e não se mistura com facilidade como faz a tinta à óleo. Acrílica é uma tinta difícil de lidar se você não tiver paciência, se não tiver destreza, se não estiver disposto e capacitado a fazer acontecer em camadas. Seu conto, a história que ele traz, é bem isso. Um conto quase retratado na técnica escolhida. Acho que as mulheres precisam entender que o universo masculino é egocêntrico e bastante objetivo – apesar de as coisas estarem evoluindo. Mulheres, assim como todos, precisam entender que a felicidade de uma união é uma via de duas mãos. E não há como ser feliz entrando na contra-mão. Acho que ainda hoje existem discrepâncias enormes em relacionamentos, em como se conduz um entrelaçamento de almas. Enfim… Vamos seguindo, observando, analisando, aprendendo.
Parabéns pelo texto.
Abraços carinhosos.
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Escrever um conto envolvendo pintura e tendo como leitura uma profissional, foi uma ousadia. Não pinto, a não ser uns panos-de-prato, mas pesquisei um pouco. Espero ter escapado dos micos…
Obrigada pela leitura e comentário simpático. Beijos.
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Menina, tive q ler duas x…e nao sei se entendi.. rsrs
spoiller* o marido pega Teresa na cama com a amante e a amante atira nele?
mas Teresa o protege com a propria vida e a amante se mata ao ver Teresa morta.
.
apesar desta confusao, eu gostei da narrrativa subjetiva, fora do normal , ficou bonito!
um abraço!
❤
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Olá Kinda. Entendeu tudinho a confusão da trama e entendeu também a intenção de focar os sentimentos, as sensações. Obrigada pela leitura e retorno. Beijos.
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Querida Fátima,
Ótimo conto.
Sob as camadas de tintas, as camadas de letras que nos levam ao enigma desta mulher, deste triângulo amoroso cheio de camadas. Parabéns!
Feliz 2021, amiga querida.
Beijos
Paula Giannini
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Obrigada, querida, pela leitura e gentil comentário.
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