Desencontro II
Tim tim. Foi assim que tudo começou. Um jantar a dois. Tête-à-tête. Mão-na-mão. O amor dando o tom, o substantivo e o verbo. Ao fundo, um conjunto qualquer tocava MPB e os garçons dançavam pelas mesas com taças de champanha. Ou assim eu registrei, nada como ter na cabeça olhos míopes, vinhos baratos e a vontade de tê-lo dentro de mim. | Tim tim. Foi assim que tudo começou. Um jantar a dois, duas carências tentando formar um ser completo para preencher o vazio. Eu tocava seu corpo casualmente. Percebi sua insegurança e avancei, como um caçador em relação à presa. Queria experimentá-la, possuí-la, sedento por vida. Foi assim que a vi: frágil e cativa, mas não exatamente como eu. |
Tim tim. E um gole de felicidade. E a vontade de me revelar pro bofe. Faça a loka, puxe logo meu picumã pra perto de ti, mas nada disso rolou. O vitaminado foi só bagaceira e a pegação acabou no uó. Fui encontrada desacordada em cima da cama do motel, toda machucada. Agora levanto a cabeça, olho para a frente, que sempre há um horizonte. O tempo só faz matar as ingenuidades, digo isso com alma vagabunda, me sentindo prostituída, enquanto o perito vai abrindo caminho com luvas de látex e olhos que já viram de tudo. ̶ Está tudo bem? – ele me pergunta. ̶ Não. ̶ Mas vai ficar. | Tim tim. Foi a versão que construí daquela noite. A mesma que repeti a mim mesmo depois de tê-la abandonado desacordada, tê-lo abandonado, melhor dizendo, depois de forçá-lo a fazer coisas que não pediria nem mesmo a uma prostituta. Fazendo com que dedos, boca e língua fossem além. Além da degradação e da punição pelo engano, mas a cada vez que eu a degradava, mais degradado eu me sentia. No quarto escuro, só a respiração ofegante e a voz incapaz de acender luzes dentro de meu túnel. E me odiei por isso. E me amei por isso. Sou uma versão deprimente da miséria humana. Retiro o punhal do bolso da calça e bato com a lâmina no espelho do banheiro. Finalmente, eu me encontro. Tudo vai ficar bem. |
Adaptado do conto Desencontro, no livro O Verso do Reverso, ganhador de melhor livro de contos regional do Prêmio Cidade de Manaus 2019.
Um conto daqueles que a gente lê uma, duas, três vezes, e a cada leitura ele se revela um pouco mais! Duas versões de um evento; alguma verdadeira? Absolutamente genial!
Já era sua fã… será que dá pra ser mais fã ainda? Admiração tem gradação? Pois não é que tem?!
Parabéns, Sandra, sensacional!
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Querida, Giselle! Que retorno generoso! Eu deixei indícios pelo texto que podem levar a uma interpretação ou, se olhar mais atentamente, a outra. Tudo vai depender dos olhos de quem lê. As sutilezas lá estão. Muito obrigada por sua leitura! A Paulinha tem um conto que vai por essa vibe de desencontros que está aqui no blog, que se intitula Drink de Rosas. Encontros e Desencontros, assim é a vida! Beijos, querida!
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Uma série de close-ups do mundo inquietante. Níveis de sentimentos, niveis de percepção e niveis de linguagem. Estilo e temática se fundem mais uma vez.
Parabéns pela ideia e execução. Parabéns por se libertar de pequenas amarras e violar o mágico, o desconhecido com sua escrita, Sandra. Beijos.
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Querida Fátima. Eu vibro ao ler um comentário seu. Sério, como vc consegue? Vibro a cada sentença e cada Nuance que vc devolve ao autor. Obrigada por sua leitura e comentário!
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Boa noite, Sandrinha ! vc agora entrou numa onda experimental, né? Acho bacana. Assim temos contatos com formas diferentes e criativas de trazer textos. Este seu é uma provocação. Ele não entrega o que será. A gente espera algo bem mais fofo e pah! Se depara com a realidade bruta do perigo dos encontros fortuitos com alguém que não se conhece de verdade. De certa forma, os papéis me pareceram trocados. Tipo. A moça, supostamente abusada e torturada parece que só teve um encontro ruim, já o rapaz , que é o malfeitor, se coloca numa situação vítima dele próprio, de uma ego trip em que ele não vê a moça como sua presa, mas como parte de algo que precisava acontecer. Achei bem legal este deslocamento em seu conto. Gosto de coisas que se subvertem e vc acertou em cheio.
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Olá, Iolandinha!
De fato, há encontros que são verdadeiros desencontros de vida. No caso aqui, um travesti que tenta se passar por mulher, escorregando no “pajubá”, dialeto usado pelos LGBTIs, e um gay enrustido que tenta se passar por homem. O conflito o dilacera, o exaspera ao ponto de procurar a expiação de seus pecados. Obrigado pela leitura e pelo comentário. Bjos
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Gente! Que tonta que eu sou! Não saquei nada destes detalhes…😔 Mas é a vida. Vivendo e aprendendo e aqui eu tenho as melhores professoras. Tudo de bom para vc, sua linda.
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O que parecia nos levar para um encontro comum se desfez aos poucos e na virada final. Olha… Uma surpresa – não pela qualidade de sua escrita, porque essa é inegável – mas pela maneira como ele se apresenta – em estrutura e linguagem.
Beijos e abraços carinhosos.
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Olá, Evelyn!
Obrigada pelo comentário generoso. Estou tentando colocar no blog alguns contos com formato diferenciado, algo que venho trabalhando há algum tempo, mas por incapacidade digital eu não consigo reproduzir no site. A Paulinha tem me ajudado a postar. Obrigada pela leitura. Bjos
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Não basta ser uma mestre com as palavras, agora está abusando da criatividade na forma. Você é demais da conta. Adorei tanto o texto, quanto a genial ideia de mostrar os dois lados, os dois personagens lado a lado, tim tim por tim tim. Só posso brindar a este texto. Parabéns, Sandra.
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Olá, Fernandinha!
Vamos tentando nos reinventar, arriscar novos voos. Fico feliz que tenha gostado. Obrigada pela leitura e comentário.
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Caramba, Sandra!
Que força, que linguagem arrebatadora!
Adorei.
Duas narrativas da mesma situação, ambas sórdidas, cínicas e tão humanas.
Foi uma aula. Obrigada.
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Olá, Sabrina!
Obrigada por esse retorno tão generoso, tentei arriscar. A Paulinha me lembrou do conto dela, Drink de Rosas, que usa a mesma estrutura. Acho que, de certa forma, nossos contos acabaram dialogando. Bjs querida.
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Coitado do cara…. 😦 isso que dá acreditar que se pode encontrar o amor em um canto qualquer… Todo cuidado é pouco se tratando que o mundo está cheio de psicopatas. Triste isso, mas não difícil de encontrar . Bjs ❤
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Olá, Vanessa!
Com certeza. Todo cuidado é pouco. Obrigada por sua leitura e comentário.
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Que conto incrível, Sandra. A cada trecho uma inversão de perspectiva/expectativa. Ao leitor, a impossibilidade de escolher por qual das pobres almas farsantes torcer. A forma também é inovadora, soou-me como uma espécie de jogo, como no orelha. Trabalho fantástico. Cada vez mais sua fã, querida. Um beijo.
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Ai, ai, ai, quando eu penso que Sandra não vai mais me surpreender com o seu talento, lá vem ela e me sacode com mais um experimento sensacional. Tim tim por tim tim, os brindes, que seriam o tilintar do começo de um romance, acabam por soar como o estilhaçar de fantasias, egos e corpos. Primeiro, imaginei um casal composto por uma mulher romântica e fogosa e um sujeito todo garanhão. Eis que o sujeito descobre que a moça é um moço e a violência que resguarda em si mesmo explode. Ele agride quem lhe dá prazer, um prazer que ele condena, um prazer que o faz evitar o espelho.
“Retiro o punhal do bolso da calça e bato com a lâmina no espelho do banheiro. Finalmente, eu me encontro. Tudo vai ficar bem.” – essa parte me fez imaginar que travesti agredido e o gay enrustido fossem a mesma pessoa e que ele tivesse se automutilado. Viajei geral. Texto profundo que provoca muitas sensações e interpretações. Parabéns.
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Querida Sandra,
Tudo bem?
Li no livro e agora aqui, gosto das duas versões desse conto que, de certo modo dialoga com o drink de rosas… O apelo social e o tema é diverso, mas a sensação de desilusão que resta me parecem andar paralelamente.
Mais uma vez, gostei muito.
Beijos e Feliz 2021.
Paula Giannini
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Muito forte e muito bonito.. embora trágico é lindo de se ler!
Amei a originalidade e a profundidade do enredo, que na forma é curto, mas na verdade, a interpretação o expande consideravelmente!
Parabéns, linda!
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