As portas do inferno se abrem à meia-noite (Sabrina Dalbelo)

Uma criança sem religião definida reza para um santo sem rosto, sem nome, sem caráter de pai. A realização de um pedido tem força de milagre e a criança sem bíblia sabe agradecer.

A cruz de alguém que deu a vida por todos está por toda parte. Mas a guia de contas coloridas não passa de um colar e a hóstia, uma bolachinha que gruda no céu da boca.

(Céu. É para onde vamos?)

A criança balança os ombros com o batuque de Cosme e Damião, confessa suas dores aos médiuns de Kardec e acompanha os passos breves de um padre católico apostólico romano. Ela reconhece as autoridades da fé que não lhe cabe e é capaz de fazer de todas as diferentes celebrações um caleidoscópio com sentido.

à meia-noite abrem-se as portas do inferno e não é seguro estar fora de casa. Há espíritos maus soltos por aí. Essa foi a dica do orixá a uma criança sem religião.

(Isso não deve valer no Natal e no ano novo.)

Entoando verbos conjugados em uma pessoa estranha – quem, afinal, é vós? – o padre frisou: temei a Deus, o criador. Temei! O Deus desconhecido, responderam todos juntos, “está no meio de nós”.

(Devo entender vós para conhecer Deus?)

O médium curou minha tia da vesícula com uma cirurgia pelo espaço, após martelar com uma mão os próprios dedos na barriga dela. Não pôde, contudo, tratar o câncer do pai da minha melhor amiga, que morava onde funcionava o consultório espiritual.

(Talvez se o médium abrisse os olhos enquanto faz a cirurgia…)

Uma criança sem religião definida percebe desde logo os perigos do mundo, não importa alertados por qual sermão.

Uma criança que pede por todos do seu jeito, na primeira pessoa do singular, olhos abertos, aprende que a porta do inferno está sempre aberta para alguns e que o câncer não tem cura, independente do santo para o qual se acenda uma vela.

14 comentários em “As portas do inferno se abrem à meia-noite (Sabrina Dalbelo)

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  1. Conto? Poesia? Prosa poética? Soco no estômago? Nem sei definir a forma, mas sinto o modo como as palavras me atingem e a todos nós.
    Menino que pede por todos, por uma cura, por uma ajuda. Depara-se com os símbolos de religiões e crenças vigentes. Mas tem conflitos de fé, porque esta lhe vai sendo pouco a pouco roubada, logo ali no batente das portas do inferno.
    Sincretismo religioso e a cruel realidade em um jogo de palavras que expõe muito mais do que queremos ver.
    Parabéns pelo impactante texto.

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    1. Claudinha querida!

      Esse texto nasceu poema em prosa (ou prosa poética, também), já que não tem um personagem definido e é mais fácil perceber um eu lírico: essa criança que foi criada conhecendo um pouco de tudo, aceitando um pouco de cada religião, reconhecendo em todas um pouco de verdade e de farsa. A vida é cheia de farsas.
      Essa criança sou eu.
      Até hoje eu me questiono essas coisas, mas não tento significar “crença”. Crer é também duvidar, eu acho.
      Se à meia-noite eu fujo para dentro de uma casa? Não mais.

      Obrigada!!!

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      1. Como a mente é doida (ou pelo menos a minha é)! Já imaginei uma criança em situação de rua, vagando pelos vários ramos religiosos. Já visualizei as portas do inferno como as portas da Candelária… os degraus que já foram escala do inferno em uma noite. E no entanto, era a menina Sabrina rezando para todos por todos. ❤

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      2. Mas tua leitura é super válida, Claudia, sempre! Ainda bem que a poesia deixa a gente se levar pelas experiências!
        Essa é só a minha interpretação, bem restritiva. hahaha

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  2. Quanta ironia! Uma criança, símbolo da inocência, mas consciente, que vaga por estranhas sensações e condições de vida (de religiões); povoada de olhos, registra todos os instantes e antecâmaras acontecendo na sua pele.

    Na ponta de suas palavras, Sabrina, vai nascendo o mundo mágico e estalante, que como numa ampulheta vão se conduzindo para um final de filtrações, onde os sentimentos e filosofias sobrepõem-se aos personagens – aqui, ao eu-lírico.

    Parabéns! Beijos!

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  3. Belíssimo texto (não ouso dizer “conto” porque talvez “poema” fosse igualmente adequado), que revela, com um toque de ironia, um pouco de todos nós, brasileiros, com a diferença de que diz isso lindamente! Aqui vemos um pouco de todos nós, que fomos batizados, que pulamos ondinhas e jogamos flores para Iemanjá no Ano Novo, que vamos ao centro espírita tomar um passe, que procuramos a cirurgia espiritual no desespero, que acreditamos e duvidamos de tudo na mesma proporção! Fantástico! Parabéns!

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    1. Gi, querida, obrigada!
      Somos né, somos permeados de tanta coisa, tanta influência! E isso é muito válido… eu acho! Valeu, querida!

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  4. Olá, Sabrina querida!
    Uma criança sem religião reza, pedindo no primeiro parágrafo. E reza, pedindo no último. Mas a porta do inferno continua aberta, engolindo todos, independente da fé. Triste, cruel e verdadeiro. Muito bom!

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  5. Espiritualidade é diferente de religião. A religião é um produto humano, criação do homem. Espiritualidade é a iluminação da alma, ou espírito, se preferir, para o essencial da vida, que é o amor, não só pela própria vida, como por todas as vidas existentes. Uma vez escutei uma frase que dizia: a religião é o ópio do povo. Concordo com ela quando a religião não nos conduz a uma espiritualidade verdadeira, aquela que nos faz entender que se o mundo é cruel, é por conta do próprio homem e sua falta de humanidade. O homem é o inferno na Terra. O homem é o demônio de todas as criaturas e do próprio homem. Há corações vazios de amor, assim como há corações de infinita generosidade. Mesmo um ateu pode ser mais espiritualizado do que um crente – crente é aquele que crê.
    Seu conto, apesar de curto, faz pensar.
    Parabéns pelo texto.
    Abraços carinhosos.

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  6. As contradições das religiões repercutindo na percepção de uma criança. Um texto interessante, escrito em um gênero indefinido, que para além de religião fala dessa peculiaridade tão nossa, brasileiros, da convivência de múltiplas crenças. Gostei da combinação do tema com o não-gênero escolhido. Very interesting, minha querida. Beijos.

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  7. Querida Sabrina,

    Tudo bem?

    Já havia comentado lá no Facebook. Um excelente texto que transita entre sagrado e profano. Porque sagrado é o humano. E profano, tudo o quanto o obriga a forjar-se ao padrão vigente.

    Parabéns.

    Feliz 2021.

    Beijos
    Paula Giannini

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