Março. Mês da Mulher. E todos contra a violência. – (Renata Rothstein)

(Renata Rothstein)

De: Helena Assunção

Para: Pastor Edilson

Pastor,

Sua bênção.

Levei tanto tempo para escrever por simplesmente não encontrar uma forma até de iniciar tudo o que preciso falar, por esperança de que tudo pudesse melhorar e até por comodismo mesmo, provavelmente.

Escrevo cada linha chorando e com muita vergonha também.

Tentarei ser breve e ir direto ao ponto, mas, como é assunto delicado e com várias nuances, acredito ser de difícil compreensão sem que se incluam pequenos detalhes que, no entanto, tornam o e-mail longo e cansativo.

O senhor me desculpe.

Pedi antes ao Espírito Santo que me oriente, porque já me encontro em estado de fraqueza e com três crianças pequenas precisando de mim. Só Ele mesmo para me dar força, como o senhor me falou no último culto.

O que acontece é que desde quando me casei — aliás, um mês depois — descobri que o meu esposo Daniel não é o que aparenta ser.

Eu não sabia com quem me casei, é isso.

A primeira coisa que descobri (ele havia me contado “por alto”) foi que vinha de um relacionamento de cinco (!) anos, em que viveu com uma mulher chamada Adriana e criavam um filho dela de dezesseis anos (na época).

Eu acho agora que esse menino é dele. O senhor também não acha, pastor?

Ele disse que haviam terminado bem antes de me conhecer, porém encontrei recados dela no celular pedindo dinheiro, e mais: depois soube que pagou contas dela durante oito meses após o casamento, isso com o conhecimento e conivência do seu pai — que chegou a esconder carnês quando eu chegava na casa dele.

Na época meu filho tinha dois meses. Eu exigi que isso acabasse, e ele me disse que havia feito o que eu pedi, e que só mantinha essa ex e o filho dela porque havia prometido à falecida mãe dela, no leito de morte.

Só que, como eu não havia ido consultada sobre tal absurdo, fui contra.

Só Deus pode me julgar. O senhor não acha?

E a família dele guardou a imagem de boa moça dessa mulher (o motivo da separação do Daniel e dela foi torpe, nem quero falar, ele viu tudo), e o pai dele chegou a me pedir exame de DNA para saber se Yuri era mesmo neto dele (ao que respondi “educadamente”, como foi possível na ocasião).

E tudo isso, e mais, eu fui suportando, pastor.

Logo engravidei novamente. O senhor sabe que precisei de repouso, ficando em casa de minha mãe por um bom tempo.

Pois bem. NÃO HOUVE UM DIA em que meu esposo em Cristo não me fizesse sofrer e chorar, me chamando das piores coisas que uma mulher pode ouvir, ainda mais grávida.

Tudo porque eu não estava em casa, lavando e varrendo (inclusive não podia).

Sempre esperei e espero em Deus. E segui.

Graças a Deus minha menina nasceu forte e saudável.

Pastor, observe que aqui não entrei nos pormenores dos aborrecimentos na época, para não me estender muito.

Vou dar agora um salto no tempo para a época em que meus sogros vieram morar comigo. Já que necessitavam de amparo e ninguém tomava as rédeas, eu o fiz.

Foram os piores dias, com certeza. Deus me perdoe.

Sofri todo tipo de humilhação e apreensão, já que eu cuidava, era humilhada (pelo meu próprio sogro, todos os dias) e continuava cuidando dele e da minha sogra, sem opção.

Até o final, que o senhor conhece — a “confusão” com os outros parentes, que assim que o corpo de meu sogro se tornou inerte queriam “mostrar serviço” e tomar decisões dentro da minha própria casa.

Não tolerei, como o senhor sabe.

Segue…

Eu e Daniel colocamos Yuri naquela escolinha que o senhor recomendou, um colégio religioso, mas ele não estava se adaptando bem, o que me fez deixá-lo em casa dois dias para se acalmar (teve terror noturno, diarréia, tosse).

Não vi mal algum no fato de uma criança de 1 ano e 8 meses “perder” dois dias de aula.

Mas quando o Dani descobriu foi um transtorno.

Pastor, ele me chamou das piores coisas possíveis durante dois longos dias, e várias vezes partiu para cima de mim, como se quisesse me bater (nunca encostou em mim, só segurou meu braço com força) dizendo para eu não “dar de ombros” que ele não era palhaço.

Na frente da minha mãe.

E ofendeu todos da minha família.

Depois disso, se arrumou e foi para o culto no Recreio, onde acredito ter chegado atrasado.

Isso foi sábado passado, pastor.

Domingo ele ia trabalhar. Não foi, para meu desespero.

Assim que voltei do banheiro e abri a porta do quarto das crianças (tenho dormido com elas) e vi que ele estava, tudo recomeçou.

Ofensas, ofensas, gritos assustadores.

Então minha mãe veio para irmos a um culto aqui perto.

Foi quando de repente ele no carro começou a falar para a minha mãe que eu era um zero, um nada, que eu “chafurdava na lama” e sempre seria assim, que eu não conseguiria nem consegui nada na vida, que ele não deixaria que eu tornasse meus filhos semelhantes a mim. E muito mais, pastor.

Escrevo isso chorando, arrasada.

E minha mãe atrás, pedindo para ele parar, mas ele falava mais e mais. Minha mãe chegou a se sentir mal, pressão alta, tonturas.

Eu pensei em abrir a porta do carro e me atirar, mas depois pensei no trauma para as crianças, planejei tudo com mais calma. Não quero morrer. Não vou.

Mas para falar a verdade, acho que já morri. Não tenho forças para lutar, ninguém para contar, minha mãe não pode me ajudar.

Pastor Edilson, a Gizele (a mocinha que trabalhou aqui, irmã da Margarida) mesmo presenciou essas cenas por diversas vezes. E comentava comigo como ele podia ser tão violento e ao mesmo tempo “tão bom”.

Meu domingo foi isso o dia inteiro, e só pela graça, me arrastando, consegui cuidar dos meus filhos, chegar ao fim do dia e ir dormir. Confesso aqui ao senhor: orei para não acordar nunca mais.

Mas, como acordei, preciso lutar. Preciso criar meus filhos, ir em frente.

Só que não aguento mais.

A mãe e o irmão dele não aparecem mais, querem distância. Várias vezes o disseram.

Pastor, preciso de ajuda!

Estou aterrorizada. E mais: é claro que nessas situações não sinto vontade de me relacionar com ele, então diz sempre (quase aos gritos) que tenho obrigação por ser casada, e algumas vezes me submeto por isso.

Só que cansei.

Pastor Edilson, tudo que estou falando aqui posso falar pessoalmente com o senhor para que ateste a veracidade pelo meu olhar… Nunca falei por vergonha, e por julgar ser a vontade do Senhor, mas essa semana ele quase me agrediu fisicamente.

Isso está próximo. Ele vai me matar!

Na delegacia disseram que não podiam muito, que não tinha violência pra provar. Voltei pra casa sem rumo.

As pessoas que me veem não imaginam o que passo.

Mas é por sorte, porque ele me menospreza em qualquer lugar e na frente de qualquer pessoa.

Como sei que ele parece incapaz disso tudo, dou graças a Deus por ter três testemunhas dos piores momentos — minha mãe, Gizele e a Rosângela, que também trabalhou aqui.

Pastor, peço novamente sua bênção e espero uma palavra, que na verdade será o meu socorro.

Confesso: se eu pudesse, gostaria de anular meu casamento. É com imensa dor que digo isso.

Abraços,

Helena.

De: Pastor Edilson

Para: Helena Assunção

Caríssima D. Helena,

Uma situação como essa necessita de uma conversa pessoal mais detalhada. Marcarei no Recreio, numa tarde, que é quando eu posso.

Por enquanto, não discuta com ele. De certeza é preciso averiguar a causa das atitudes dele. Pode ser que haja problemas não resolvidos e ele precise de ajuda. Por outro lado, todo ser humano possui um mundo dentro dele, com suas qualidades, limitações e mazelas. Não se pode julgar sem antes uma avaliação mais profunda. Só conversando melhor poderemos dar uma orientação mais acertada.

Ore, cumpra suas tarefas com a casa e com os filhos, e não dê causa objetiva de reclamação da parte dele.

Repito: não discuta com ele. Isso pode piorar a situação. Entrarei em contato para marcar. Aqui em Nova Iguaçu estou todas as manhãs

Com a minha bênção.

Pastor Edilson.

PS: Quanto à nulidade, é o último recurso numa relação que não deu certo.


De: Pastor Edilson

Para: Helena Assunção

Querida Helena,

Não foi possível conversar naquele dia em que combinamos.

Acho melhor resolver com calma as coisas com o Daniel. A situação de vocês não é agradável e na atual situação é melhor que a Justiça defina como serão as coisas, quer em relação a vocês dois, quer em relação às crianças. Deixe o poder público definir isso. Ele tem a autoridade dada por Deus para esses casos, especialmente quando há desentendimentos.

Seja realista e objetiva quanto à situação. Mantenha sempre a postura necessária de uma mulher digna e não se deixe levar pelos impulsos momentâneos. Deus sempre estará contigo, ele nunca te abandonará.

Quando quiser, pode ligar.

Com minha bênção,

Pastor Edilson.

De: Helena Assunção

Para: Pastor Edilson

Pastor Edílson,

Como vai?

Sem saber mais o que fazer dessa tormenta em que minha existência se transformou, encaminho para sua apreciação o conteúdo do e-mail que Daniel me enviou.

Pastor, são ataques constantes. Garanto-lhe que esse que agora segue é o mais “delicado” dos que recebi.

Não sei mais o que fazer. Gostaria que o senhor recordasse que solicitei auxílio ainda no ano passado…

Está bem triste a situação.

Peço que leia… Peça a ele para parar de fazer isso comigo e com os filhos, pastor, pelo amor de Nosso Senhor!!

Sua bênção,

Helena.

Encaminho o e-mail do Daniel.

De: Daniel Assunção

Para: Helena

Helena, sua cachorra a quem um dia chamei de esposa,

Não pense que vai ficar circulando feliz e contente, gastando meu dinheiro, enquanto trabalho como um homem honrado perante Deus e a sociedade.

Você é lixo, um lixo apenas. Tirarei meus três filhos de você, custe o que custar.

E a sarjeta será pouco pra vc, vagabunda.

Sua obrigação de mulher cristã vc não cumpriu.

Me obedecer, ter filhos comigo e aceitar até mesmo uma lição, se fosse o caso.

Rogo que Deus dê pão e água aos meus filhos, enquanto não consigo a guarda definitiva deles.

Você não vai conseguir ser pobre, andar de ônibus, trabalhar de novo.

Vc me irrita, um dia faço uma merda com vc, ainda bem que oro e Deus impede que eu faça o pior.

Volte pra sua casa, a nossa casa, agora.

Daniel.

De: Helena

Para: Daniel

Me deixa em paz. Só quero viver em paz.

De: Helena Assunção

Para: Pastor Edilson

Pastor, estou encaminhando esse e-mail para todos os meus parentes e amigos. Temo pela minha vida.

Ore por mim. Até breve.

Nota da Autora:

Amanhã, 1º de março, começa o Mês da Mulher.

Cuidem de vocês, física, mental, emocionalmente.

E cuidem também de seu valor como mulher. Não se trata de feminismo, mas de empoderamento, coragem.

O mundo vai virar sempre as costas para a dor feminina, seja qual for, mas não precisa — e não pode — ser assim.

Helena foi assassinada doze dias após essa última súplica ao pastor da igreja que frequentava.

Nem a Justiça dos homens, nem a suposta intervenção de um líder religioso impediram que seus filhos ficassem órfãos.

Hoje vivem com os avós, numa cidade do interior.

Isso aconteceu há dois anos, apenas mudei os bairros e nomes, para preservar as pessoas envolvidas.

Queria muito que fosse apenas ficção, mas, é real.

Força. Mudança. Coragem.

9 comentários em “Março. Mês da Mulher. E todos contra a violência. – (Renata Rothstein)

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  1. Renata, perfeito!! É triste como há seres (des)humanos, que não devem ser chamados de homens, que tratam suas esposas, namoradas, como se propriedade sua fossem. Humilham pela força, condição financeira ou influencia social. São, na verdade, canalhas, que não merecem o mínimo de piedade. Torço para que tudo isso mude um dia e que o Amor seja eterno novamente. Um feliz dia e mês Internacional da Mulher. Beijos e paz!!

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  2. Olá. Bom dia. Li o seu texto ainda ontem, mas preferi ficar refletindo antes de escrever algo. No começo da leitura achei feio ela impedir que ele ajudasse a um possível filho de uma relação anterior. Filho é filho, independente de como e com quem foi feito, mas este não é o foco.

    O conto vai nos enredando pouco a pouco numa sucessão de violências e intolerâncias praticadas pelo marido que vão aumentando cada vez mais e ficando mais perigosas à medida que o texto avança. Vamos nos angustiando junto com a Helena e vendo onde vai dar a história: um desfecho trágico para a protagonista.

    Conheço homens como o Daniel. Por trás de uma aparente cordialidade são como monstros controladores e cheios de cóleras que estão sempre a ponto de explodir. É terrível. Já convivi com alguém assim. Apenas poucos meses foram suficientes para virar um problema para o resto da vida. Até hoje me persegue, a sorte é que hoje moramos longe.

    Um conto tão envolvente quanto verossímil pois, infelizmente, toda hora vemos mulheres sucumbindo a esta tolerância geral com a atitude criminosa de alguns homens. Tolerância perigosamente presente inclusive nas searas que deveriam se posicionar no intento de salvar e proteger as possíveis vítimas. A polícia e a justiça ainda se omitem demais, isso sem falar na família e na sociedade. É uma lástima.

    Parabéns pelo texto tão atual e verdadeiro. Bom dia e sigamos nos fortalecendo cada vez mais. É tanta violência, tanta desigualdade, tantos absurdos e ainda aparece mulher que se diz contra o feminismo. Até quando?

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  3. Um texto verossímil que mostra o terror da realidade. Casos como esse são encontrados no dia-a-dia: atos lesivso que resultam em dano físico, psicológico, sexual, patrimonial, praticados contra mulheres expressamente pelo fato de serem mulheres.

    Ficou interessante essa montagem dos emails, com uma explicação final, pois criou um clima de intimidade com o leitor e conferiu maior credibilidade aos eventos apresentados na narrativa..

    Parabéns pela ideia e execução e por aproveitar a data para mais uma denúncia – “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, não é mesmo? Quem sabe, um dia teremos mais justiça…

    Muito bom trabalho. Beijos!

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  4. Oi, Renata!
    Extremamente angustiante: assim descreveria seu texto. Muito interessante a forma como você cria a aflição através da descrição do agravamento da situação, onde um desfecho trágico vai se revelando de forma ameaçadora. E é tão desconfortável justamente porque é real ao extremo; quem testemunhou algo do tipo sabe o sofrimento envolvido em casos assim.
    Um texto de muito impacto e muito necessário. Que ele vá longe e toque justamente aquelas pessoas que ainda julgam narrativas assim como “panfletárias”. Infelizmente, não podemos nos dar ao luxo de não as escrever.
    Parabéns e um beijo!

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  5. Olá, Renata!
    Um texto muito bem conduzido e estruturado, sendo que o desfecho final, em que o leitor se dá conta de que é uma história real, é quando advém o maior impacto, quase uma bofetada a nos acordar sobre algo tão enraizado em nossa sociedade. Parabéns pelo texto, desenvolvido com maestria.

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  6. Um conto forte e denso como já é uma característica da sua escrita, Renata. A cruel realidade de uma mulher que se vê ameaçada por quem deveria ser seu parceiro de vida. Relato doloroso, não ficção que se repete mais do que o suportável.
    Narrativa muito envolvente, impossível parar de ler. Parabéns pelo trabalho e pelo alerta a todas nós. Beijos.

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  7. Querida Renata,
    Forte, triste, perfeito, angustiante. Por que nos calamos? Você, minha amiga é um grito que rompe fronteiras.
    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Este texto já tinha lido, tinha certeza que já tinha comentado, mas verificando aqui, vi que não, internet, talvez. É uma história muito triste e que acontece todos os dias. “Na delegacia disseram que não podiam muito, que não tinha violência pra provar”. a violência psicológica é terrível, muitas pessoas não acreditam e ainda chamam as vítimas de “frescas”, sei bem como é. Esse texto é importante, quem sabe alguém que o leia perceba a mesma atitude em pessoas de seu convívio. Bjs ❤

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