O sol brilhava forte no interior amazonense. A camisa de Jandir estava molhada nas costas e axilas, sinal de um longo dia de trabalho capinando entre as becas da pequena lavoura de mandioca, de onde tirava o sustento de sua família.
Jandir pegou o cantil pendurado na lateral de seu corpo e sorveu um gole d’água, na tentativa de aliviar um pouco o calor e recuperar as forças. Expirou observando o sol. “Deve passar do meio-dia”. Seu estômago roncou de fome, confirmando seu pensamento e ele pegou o caminho de casa.
Janaína esperava-o com o almoço pronto, as panelas de barro sobre o fogão a lenha.
— O vovô comeu hoje? — Jandir perguntou à esposa, preocupado com seu velho avô que vivia com eles há vários anos.
— Comeu nada, Jandir. Está com a mesma ladainha de ontem. Acho que não tem jeito, seu avô está mesmo caducando.
— Não diga bobagem, mulher! Vovô está velho, por isso fica com essas histórias, mas ele só quer chamar a atenção. — Jandir tirou o chapéu de palha, jogando-o no chão e revelando um cabelo já passado o corte, suado e colado ao crânio. —Traz meu prato que eu tô de broca!
Ubiratan estava deitado em sua costumeira rede, balançando levemente, enquanto, entre brincadeiras com a bisneta, tirava um cochilo.
— Papai, papai!
— Oi, menina. Já comeu?
— Até empanturrar! — A garota saiu da rede e correu para o pai. — Vovô falou que a velha vem hoje de novo. — Tainá olhava para o chão, com as mãos entrelaçadas, balançando de um lado para outro.
— Seu bisavô tá é atentando. Já expliquei que isso não existe. Me deixa comer sossegado. — Jandir balançou a mão no ar, num gesto de impaciência. — Vai ajudar sua mãe arear as panelas.
Tainá, que sabia não possuir idade suficiente para lavar louças, foi para o quintal brincar. Jandir voltou a comer, embora seu apetite tivesse diminuído com as lembranças da última noite.
Em menos de uma hora, Jandir voltou para a lida no campo. Sua sobrevivência dependia daquelas mandiocas, não poderia deixá-las morrer no mato.
Ao cair da tarde Jandir retornou para a casa, levando um jerimum debaixo do braço.
— Mulher! Olha o que eu encontrei no meio das macaxeiras! — Jandir sorria, erguendo a abóbora como um troféu.
Janaína foi ao encontro dele, não retribuindo o sorriso.
— Vai lá dar jeito no seu avô. Ele tá enchendo a cabeça da nossa menina com aquelas histórias.
Jandir encolheu os ombros, visivelmente cansado.
— Vou me assear, mais tarde falo com ele.
Depois de tomar banho e jantar, Jandir sentou-se próximo à rede do avô.
— Bença, vô.
— Bençoi, filho.
— O que anda falando para a Tainá, vovô?
O velho tinha uma aparência encarquilhada, seus olhos já não tinham o mesmo brilho da juventude.
— Eu apenas contei as mesmas histórias que ouvi quando era pequeno. As crianças de hoje precisam saber das coisas, filho. Não podem crescer abestalhadas.
— Sabe que essas coisas não são verdades, são apenas lendas.
— Não deboche, Jandir! Sei que cresceu na cidade, mas eu já te ensinei a respeitar as coisas antigas.
— Desculpe, vovô, mas não pode ficar passando medo na menina, vai fazer ela crescer molenga.
Antes que pudessem continuar a conversa, Tainá chegou, pulando para o colo do pai.
***
Quando a escuridão ia alta e todos estavam mergulhados no mais profundo sono, o canto que ecoou na noite anterior, recomeçou.
Lembrava um canto de pássaro, só que bem mais fino e estridente, como um grito alucinado que penetrava no cérebro. O som agudo acordou a família. Tainá correu para os braços da mãe, tapando os ouvidos com força, enquanto Jandir tentava acalmá-la. “É só um pássaro agourento, filha. Logo vai embora”. Apenas Ubiratan não esboçou nenhuma reação, porque ele já estava acordado, ele já estava esperando.
Janaína chorava, não de desespero ou medo, mas de dor. Seus ouvidos estavam feridos.
— Eu avisei, eu avisei… — Ubiratan sussurrou.
— Vou dar um jeito nesse bicho maldito! — Jandir pegou sua espingarda e saiu.
Tainá se escondeu debaixo da mesa e começou a gritar.
A cada tiro que Jandir disparava em direção ao canto, este mudava de lugar, sem cessar o som um só momento, dando a impressão de pular pelo telhado da casa sem que ninguém o visse.
Ubiratan caminhou para a escuridão indo atrás do neto.
— Não faça isso, Jandir! — O ancião andava com dificuldades. — Pare, filho, pare!
Jandir gritou com o avô, mandando-o voltar para dentro de casa. Sua mira estava cada vez mais atrapalhada. Seus braços tremiam, seus tímpanos vibravam.
Foi então que viram uma sombra passar por eles, parando no topo de uma árvore próxima. Jandir não soube precisar o tamanho nem a forma da criatura, e o canto não cessou. Ele caiu de joelhos, forçando a arma para cima, tentando mirar na árvore, mas suas mãos não tinham mais forças para apertar o gatilho. A arma tombou, caindo para o lado, e ele desabou sobre o próprio corpo como um boneco de pano, desacordado.
Ubiratan, vendo a agonia do neto, gritou o máximo que conseguiu com seu pouco fôlego:
— Matinta, passa aqui amanhã que te dou o tabaco!
No mesmo instante, o assovio parou. O silêncio voltou a reinar e Janaína correu ao encontro do marido, sacudindo-o. Jandir abriu os olhos, já acelerado, procurando pela espingarda.
— Calma, homem! Já acabou. Ela foi embora.
— Ela quem? — Jandir desvencilhou-se das mãos da mulher, arredio, sem acreditar no que ouvia. Levantou-se tentando enxergar sob a parca luz das estrelas, colocando o dedo indicador nos lábios, pedindo silêncio. Ao constatar que realmente o estridente canto havia acabado, respirou aliviado.
Todos voltaram para o interior da casa, mas ninguém conseguiu dormir.
— Amanhã Matinta vem buscar o fumo dela. — Ubiratan falou baixinho, como se temesse que, ao pronunciar aquele nome, o assovio voltasse.
— Não diga lorota, vovô. — Jandir disse.
— Nem depois de ter visto tudo o senhor não acredita, papai? — Tainá falou, mesmo em sua tenra idade, soube a gravidade da situação.
— Vá dormir, guria. — Jandir ralhou, desligando a única luz que precariamente iluminava a casa.
***
Na manhã seguinte, antes mesmo do dia clarear, Ubiratan já estava sentado à mesa da cozinha, quando Janaína chegou para preparar o café.
— Separe o tabaco e também uma xícara de café bem forte. — Ele disse, assustando Janaína que não o havia notado.
— Oh, vovô, eu não tenho fumo aqui.
— Não diga lorota! Sempre tem fumo aqui. — O velho estava irritado, suas mãos tremiam ainda mais que o normal.
Janaína espiou por cima dos ombros e cochichou no ouvido do avô:
— Eu sei onde tem, mas o Jandir me proibiu de pegar. — Ela retirou de dentro da blusa uma boa porção de tabaco enrolado em formato cilíndrico e colocou nas mãos do velho. — Por isso eu não peguei nada.
Janaína piscou para Ubiratan e se pôs a fazer o café.
O velho saiu desconfiado, parando na pequena varanda da casa, deixou a encomenda e voltou para a mesa.
Logo Jandir apareceu, carrancudo e com grandes olheiras.
— Dia. — Disse, com uma voz rouca e sem nenhum humor.
Os outros nada disseram, além de esboçar um leve menear de cabeça. Mal tomou o café, Jandir levantou-se.
— Vou terminar a capina das macaxeiras.
Pouco depois que ele saiu, alguém bateu à porta. Janaína sentiu um calafrio percorrer seu corpo e viu o mesmo acontecer com o avô.
Tainá abriu a porta e viu a figura de uma senhora idosa, corcunda, usando um vestido longo e preto, com um casaco também negro e um capuz grande, tapando parte de seu rosto. Tainá sentiu seu corpo vibrar, todos os músculos se contraíram, ela ficou imóvel, incapaz de esboçar qualquer reação, sem conseguir soltar o grito que parara em sua garganta.
Janaína adiantou-se.
— Pois não? — Disse.
— Pode me dar um pouco de tabaco? — A velha pediu, erguendo as duas mãos abertas, juntas, a altura do peito, esperando pela oferta prometida.
Ubiratan foi até ela, irritado.
— Eu já deixei sua oferenda! — O velho saiu porta afora, sem se importar em passar rente à velha encarquilhada. Olhou o local onde colocara o tabaco e nada havia ali. — Você está mentindo! Você já pegou seu fumo e está querendo mais! — Ubiratan gritava, sentindo um fervor subir-lhe pelo pescoço, seu rosto foi ficando vermelho, e ele já não se importava com o forte odor que exalava da criatura à sua frente.
— Você prometeu! Quero meu tabaco! Matinta Pereira nunca mente, mas também nunca perdoa enganação! — A velha retirou o capuz, expondo um rosto esquelético, com poucos tufos de cabelos brancos espalhados pelo crânio pálido e purulento. Ela escancarou a boca em um ângulo sobre-humano, e de dentro saiu um pássaro negro, assoviando.
Tainá finalmente conseguiu soltar o grito que trazia entalado na garganta. Ubiratan deu um passo para trás, levando as mãos ao peito, apertando, se contorcendo em uma dor que subia por seu braço, até cair no chão com os olhos vidrados. A última imagem que viu, foi a do pássaro negro estufando o peito de tanto cantar, até estourar, espalhando sangue, entranhas e penas pelo ar.
A velha virou-se para Tainá, que continuava gritando, ao lado da mãe estática.
— Não grite agora, minha pequena ave. — A mão esquelética e mal cheirosa tocou-lhe a face infantil. Tainá amontoou-se no chão.
Com a mão ainda erguida, a velha sustentou o olhar de Janaína, perguntando-lhe:
— Você quer?
Janaína arregalou os olhos involuntariamente, gritando “não” por dento, embora de sua boca não saísse um só ruído.
— Você quer? — Repetiu a velha, dessa vez com a voz elevada, arrancando Janaína de seu torpor.
— Sim! — Sua voz saiu estridente, embora não fosse essa a resposta que queria dar.
A velha afastou-se, abrindo os braços e olhando para o céu. Escancarou a boca e arregalou os olhos. Girou várias vezes, levantando consigo uma grande nuvem de poeira. Quando o redemoinho cessou, apenas suas roupas caíram no chão, murchando e se amontoando. A velha havia sumido, como se tivesse se misturado à poeira.
Janaína sentiu fortes vibrações em seu corpo, sentindo-o formigar. Ergueu as mãos na altura dos olhos a tempo de vê-las tremeluzir e a pele tornar-se ressecada e enrugada. Sua coluna estralou, curvando-a para frente e seus cabelos caíram. Tocou o rosto e sentiu todas as rugas e feridas ali presentes. Sentiu um forte ardor na boca e ouviu o som de dentes sendo arrancados, caindo todos no chão. Caminhou em direção as roupas negras e as vestiu. Olhou uma última vez para o corpo do avô, sem mais reconhecer aquela figura, e voltou para a menina caída.
— Desabroche, minha adorada ave.
Tainá abriu os olhos, sacudiu as penas e balançou as asas. A nova velha escancarou a boca e o pássaro negro voou para dentro dela.
— Bora! Ainda tenho que achar meu tabaco.
***
Ao invés de ir à capina das mandiocas, Jandir foi à cidade comprar mais munição para sua espingarda. Queria estar preparado para quando aquela criatura estranha voltasse.
_______________
Conto inspirado na Lenda da Matinta Pereira, originária da Amazônia.
Que conto tenso, Vanessa! Se eu morasse ainda no Norte, não iria deixar faltar tabaco. Que perigo, não é? Um conto envolvente, interessante, repleto da beleza das lendas nacionais. Os personagens ficaram verossímeis, a trama gera interesse, o desfecho fica na imaginação da gente, mas tudo indica que será trágico. Agora só não entendi foi quem ficou com o tabaco da Matinta. Isso, só Vanessa sabe.
Abraço, querida. Boa tarde.
CurtirCurtir
Olá!
Puxa vida! Gosto dessa lenda do Matinta pereira. Tenho também um conto baseado nesta lenda, mas o seu está melhor. Gostei bastante. O rapaz incrédulo em contraste com o velho conchecedor de mistérios. Legal as falas da velha “Você, quer?”. Sempre imaginei como seria esse pio/fala/som/agouro. Achei muito bom o seu conto e fecha com tom trágico.
Parabéns!
CurtirCurtir
Releitura da lenda da Matinta Pereira feita com maestria, que me prendeu a atenção do início ao fim.
A construção dos personagens, a interação entre eles, a ambientação rural e o desfecho estão coesos. Os diálogos são naturais e o sobrenatural está presente junto a uma dose de suspense própria de uma história de terror. Os planos da bruxa ganham tom de crueldade quando ocorre o fracasso da família; Matinta, então, torna-se mais temível. O título é sugestivo e ficou interessante no contexto recurso da repetição da pergunta.
Parabéns pela escrita fluente e bem estruturada. Beijos!
CurtirCurtir
Olá, Vanessa!
A lenda da Matinta Pereira. No começo, ao ouvir o ruído estridente, julguei trata-se da coruja rasga-mortalha, mas, em seguida, o engano se desfez. A história de suspense prende a atenção e é contada com cadência e dose de mistério na medida. muito bom. Gostei muito.
CurtirCurtir
Gosto destas histórias que contam lendas, que mexem com o nosso imaginário, que misturam o real com a fantasia. Seu texto é ótimo com dois elementos que também me agradam, o suspense e a relação entre gerações distintas. Muito bom, parabéns.
CurtirCurtir
Lembro de ter lido este conto inspirado na lenda da Matinta Pereira em um dos desafios do EntreContos. O final ainda me surpreende e impacta. Você conduziu bem a narrativa, preenchendo de terror e suspense as brechas da história familiar que vira lenda. Parabéns.
CurtirCurtir
Que conto incrível! Matinta Pereira era pra mim, até agora, um nome que eu havia ouvido vagamente, mas cuja história nunca conheci! Adorei descobrir assim, e agora vou querer saber mais!
Gosto muito de histórias que exploram nossas lendas, e quando são bem escritas como a sua o resultado é sensacional! Amei!
Parabéns!
CurtirCurtir
Oi Vanessa,
Conto impecável. Brasilidade, suspense e um quê de algo tão interessante que prende o leitor: curiosidade, algo que instiga…
Muito bom.
Parabéns.
Beijos
Paula Giannini
CurtirCurtir
Simplesmente adorável a maneira como você inseriu o personagem folclórico ao roteiro. Eu fico sempre muito encantada com as histórias que envolvem os seres fantásticos do nosso rico e pouco valorizado país. Esse conto não apenas registra com sutileza Matinta Pereira, mas nos leva através da linguagem aos costumes e a vida familiar das regiões mais distantes. Eu amei!
Beijos e abraços carinhosos.
CurtirCurtir
Adorei o conto! Enredo envolvente, com um desfecho surpreendente, que deixa aquele gostinho de “quero mais”.
Podia ter continuidade, né? Brincadeiras a parte; parabéns pela escrita!
CurtirCurtido por 1 pessoa