Mea Culpa (Renata Rothstein)

O sino da igreja deu as seis badaladas. Acordei e levantei, já era hora.
Calcei minhas pesadas botas de couro. Gastas, de um preto acinzentado pelo tempo: chuva, geada, terra e a água do rio, que diuturnamente corroíam aquelas que diga-se de passagem, eram minhas únicas companhias nos últimos tempos.
Olhei para o velho fogão de ferro fundido – cada estalido promete uma explosão, como já aconteceu uma vez, mas na verdade não me lembro bem dessa história, melhor deixar para lá.
Fiz o café, notei que o pó tinha acabado outra vez, será que algum bicho comia pó de café? Todo dia eu voltava do rio, ia na cidade, pegava meu cigarro e um pouco de farinha, que não podia faltar, deixava o dinheiro em cima do balcão, já que o dono da birosca não falava comigo, há tempos. 

Aliás, todos viravam a cara ao me ver passar.
Peguei o anzol, a corda, lata de iscas, enfim, utensílios de pescador.
Antes de sair olhei os retratos na parede: esposa e meus três filhos.
Dor inexplicável. Suspirei resignado. Saí.
Ajeitei o chapéu e desci lentamente as escadas: três andares com oito degraus cada um, mas que de ano para ano pareciam mais altos, mais compridos.
As escadas rangiam a cada passo, o prédio estava em péssimo estado de conservação, precisava tomar uma providência, falar com o proprietário. Amanhã, amanhã eu faço isso!
Notei que estou ficando velho, já nem lembro quantos anos tenho. Será a cabeça?  
Atravessei a praça, vi o cretino do padre recebendo a gente de bem daquele lugarejo para a missa das sete.

  • Bom dia, Padre Aloísio!, grunhi. Ele, como sempre, fez que não viu.  Olhou para o outro lado, expressão de quem está a salvo da condenação eterna, coisa que eu, muito provavelmente, terei que enfrentar.
    Dane-se.
    Olhei para o fim da rua, uma reta comprida numa ladeira que terminava no rio, meu oásis. Para os outros, motivo de histórias e pavores em Conceição da Beira.
    Havia relatos de que uma alma vagava penada, por aqueles lados do rio.
    Alguns dizem que surge nos arredores da praça e caminha todas os dias, até o rio.
    Não acredito, mesmo. Deixo essa gente assombrada e desço a rua, preciso muito respirar um ar mais puro, digo, livre de presença humana ou coisa que o valha. Enquanto isso, jogo minha isca, fisgo uns peixinhos, ando pelas margens pensando nessa vida de mistério, dou um mergulho, volto para a minha solidão.
    Faz uns bons dias, ou anos, que Maria Gertrudes, minha mulher, mais as crianças, Pedro, Juliana e Marcela saíram de casa, depois de mais uma bebedeira, a briga feia, o ato de violência.
    Confesso ter perdido a cabeça e – arrependimento meu! –, ter levantado a mão para Maria.
    Estava bêbado, muito bêbado e depois que bati nela foi só um apagão. Dormi sem saber quantos dias e quantas noites fiquei apagado.
    Acordei, eles não estavam lá, certamente fugiram, não sei para onde. E desde então, ninguém fala mais comigo aqui na cidade.
    Gente hipócrita e orgulhosa, todos são melhores que os outros. Talvez sejam, mesmo. Melhores que eu, decerto.
    Mas mudei. Parei de beber, vou à igreja quando está vazia. Converso com Jesus, o Cristo.  Ele, lá da Cruz, ouve meu calvário. E sei que Ele me entende, vai trazer Maria mais as crianças de volta. Um dia vai trazer, sim.
    Pesco dois peixinhos, olho para o céu. Crepúsculo, a hora em que a dor atravessa meu coração como um punhal que eu mesmo forjei, com meu passado de homem cruel e violento, incapaz de ser digno e justo com minha família.
    Enxugo uma lágrima, nesse instante uma estrela cadente risca o laranja violáceo, faço um pedido. O de sempre.
    Então vejo um movimento nos arbustos e ouço claramente a frase: “Era aqui que o morador da pensão costumava pescar, vinha todos os dias. Depois passava no boteco, bebia demais, ia para casa. O resto vocês já sabem, podem tirar retrato à vontade”.
    Sabia. Estavam falando de mim! Quem era essa gente, para se intrometer desse jeito em minha vida? Sabia que estavam me achando estranho, mas a esse ponto?
    Gritei por eles, mas não me deram atenção. Sempre a mesma coisa, sempre o estigma do homem que havia bebido até mulher e filhos fugirem de casa.
    Olhei em volta.  A noite estava em tudo, tomava conta do céu, da terra, do meu coração e da minha vida. Rumei para casa.
    Desolado, olhei para o decadente prédio, parecia prestes a desmoronar a qualquer momento. Guardava as marcas de um incêndio, janelas queimadas, paredes escuras, desolação.
    Senti o peso no peito outra vez. Tudo girou com rapidez em minha volta, pensei que fosse desmaiar. Ouvi vozes sussurrando: “Antenor, acorde. Venha, estamos esperando, venha…”
    Apoiei-me na entrada do prédio, lutei contra as vozes, e enquanto me recuperava vi o grupo  que estava há pouco no rio.
    Olhavam para o prédio, tiravam fotos e comentavam: “Realmente horrível o que aconteceu aqui. Sobraram apenas ruínas. Que tragédia”.
    Dois homens passaram ao meu lado. Comentavam que o grupo de jornalistas da TV de uma cidade próxima estava fazendo uma reportagem especial sobre o incêndio na Pensão Pouso Alegre. A tragédia havia tornado Conceição da Beira famosa.
    Eu, pobre espectador, sentindo dores excruciantes, segui.
    Entrei no prédio, subi as escadas. Em casa, enfim. A cabeça parecia querer explodir, não minto, a confusão mental que senti era o inferno.
    É, deve ser isso o inferno.
    Corri os olhos pelas paredes escuras, queimadas. A tontura ficou mais forte, tudo começou a girar cada vez mais rápido.
    Senti como se estivesse caindo dentro de mim, num poço que não tinha mais fim.
    Apaguei.

Abri os olhos e vi Maria, parada à minha frente: “Bebeu de novo, Antero? Tu não tem vergonha? Teus meninos estão crescendo, teu exemplo é uma vergonha. Homem, continue assim e vou embora com as crianças, tu nunca mais vai ouvir falar de mim, ouviu?”
Num canto as três crianças choravam, abraçadas, assustadas com mais uma briga.
Eu, no entanto, machista e orgulhoso, não pedi perdão, não parei, continuei confrontando minha esposa. Senti o ódio correndo nas veias e a agarrei pelos cabelos, arrastando minha mulher pelo chão, até a cozinha.
Acendi o fogo, segurando firme seu cabelo. Ela me chutou com todas as forças e correu. Cambaleando, fui atrás dela, gritei para que as crianças calassem as bocas.
Entre tapas e solavancos, levei Maria até o fogão, agora com todas as bocas acesas.
O fogo não brilhava tanto quanto meus olhos de insanidade.
Tive um imenso prazer, sim!prazer inenarrável, quando encostei seus cabelos, seus longos e belos cabelos, no fogo. Lembro de amolecerem e derreterem lentamente, enquanto o cheiro de queimado espalhava-se pelo ar. Os olhos da minha esposa, aterrados, olhavam dentro dos meus, frios e insensíveis.
Demoníacos ante a dor e desespero daquela a quem eu tanto amava. Que paradoxo.
A compreensão disso me deu mais forças e segui com meu projeto maligno.
Sentei no chão e observei, sorrindo, o couro cabeludo queimar e soltar do crânio, o fogo alastrando-se para o rosto, em meio aos gritos de Maria, cada vez mais fracos.
Enfim ela caiu inerte, a fumaça saindo pelas narinas e boca, olhos fixos em algum lugar que só ela via.
Beijei sua boca queimada e disse um “te amo meu amor, me perdoe”.
Abri o gás e decidi terminar o que tinha começado.
Estava enlouquecido e corri para a sala onde meus filhos – meus doces filhos –, choravam abraçados.
Por que, Deus? Por que lembrar de cada cena como se estivesse sendo vivida naquele exato momento?
Peguei minhas garrafas de cachaça – muitas – algumas poucas garrafas de uísque barato, outras de vodka, joguei bastante do líquido maldito nos três. E risquei o fósforo.
Um fósforo apenas e a explosão. Meus filhos em chamas, correndo e rolando em desespero pela casa.
Eu gargalhava. Móveis, quadros, paredes consumidos pelo fogo, e as crianças e eu, virando carne viva e queimada, as entranhas dolorosamente destruídas pela força do meu desejo de destruição.
Finalmente caímos ao chão. Lembro de ter visto meus filhos agonizando. Eu ri, sadicamente.
Após um lapso de tempo que não posso precisar, acordei e vi tudo queimado.
Nem sinal de Maria, nem das crianças.
Desde então vivo sozinho nesse prédio queimado e deserto.
Agora entendo. Tudo faz sentido.
Morremos no incêndio. Sou uma alma penada, vaguei todo esse tempo pagando pelo meu crime, o assassinato da razão da minha vida.
A minha sina é essa, então? Vagar eternamente, dia após dia? Acordar, cumprimentar pessoas que não me veem, caminhar passos inexistentes, viver uma morte criminosa e atormentada?
Belo castigo. Pagarei minha conta, até o fim.
Chorei por horas, implorei a Deus que tivesse piedade do meu sofrimento, que Maria e as crianças pudessem me perdoar.
“Antenor!”, ouvi Maria me chamar. “Papai, papai!” – agora as crianças, alegres, me chamavam.
Reticente, fui até a sala e vi Maria e meus pequenos, lindos e sorridentes, estendendo as mãos para mim.
Confiantes, esperavam. Dei um passo em direção a eles…
Nesse instante ouvi o sino da igrejinha dar as seis baladas. Acordei.
Outra vez o mesmo pesadelo medonho.
Levantei, já era hora. Calcei as botas, pousei os olhos nos retratos da minha família, segui.
Eles voltariam. Sim. Eles voltariam para mim, um dia.
Fim.

12 comentários em “Mea Culpa (Renata Rothstein)

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  1. Esse conto é sensacional. Foi pódio no concurso de terror do facebook do grupo Clube do Terror que já não existe mais. Parabéns, querida. Bem escrito, dramático, triste e tão interessante que ninguém consegue tirar os olhos do texto até que acabe. Perfeição. Boa tarde e noite.

    Curtido por 2 pessoas

    1. Oiii, amiga,
      Primeiramente, obrigadíssima…vindo de vc, a melhor do terror, é um elogio que se multiplica infinitamente.
      Sim, foi em 2017, foi meu primeiro primeiro lugar 🙂 em concurso, fiquei feliz demais, não esperava mesmo.
      E aqui, cabe mais um agradecimento, pelo seu convite e incentivo para que eu escrevesse suspense/terror.
      Muito obrigada, te amo ❤

      Curtido por 1 pessoa

  2. Olá, Renata!
    Estamos numa rodada de posts incríveis esse mês. Que conto maravilhoso! Eu embarquei na leitura desde o início sem deixar de seguir as linhas com essas narrativa mirabolante. Triste, forte e nos deixa sempre em suspense. Vc me surpreendeu com esse texto soberbo. Parabéns, arrasou!

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  3. Eta, que prosa boa! Tão bom ler uma escrita firme, coerente e coesa. E terror! Amo uma história de alma penada.

    O conto está repleto de elementos que mexem com o imaginário do leitor: a violência, os crimes, o castigo. Isso cria uma série de hipóteses que permite destacar o teor do suspense na trama. E mais uma vez temos a advertência de que o vício leva o homem a chocar-se com as consequências que lhe serão cobradas no futuro e este é o motivo do alvoroço que o plano espiritual busca nos alertar… mas quem escuta?

    Parabéns por todo o cuidado com a narrativa que,de em momento algum, deixou-se cair no que poderia ser vulgar. Aliás, é um conto que parece todo muito bem planejado, bem estruturado. Trama intrincada, mas que traz um enredo até simples. Ambientação e personagens muito bem construídos. Devagarinho o leitor vai destrinchando os detalhes e montando o quebra-cabeças e a autora vai demonstrando ser muito segura no hábil uso das palavras, sem que se perca o suspense característico do gênero.

    Do jeitinho que gosto! Beijos.

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  4. Ai que alivio no final!!! Um texto triste que fala de violência, perdão, arrepndimento, coisas que fazem parte da nossa triste realidade, mas inclui um elemento de terror que é a alma penada, Muito bom, me prendeu. Bjs e parabéns.

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  5. Terror muito bem escrito. Só não sei se o final é um alívio ou uma condenação eterna. Afinal ele matou a família? E deu cabo de si mesmo? Sua prosa é uma delícia de ler, densa, puxa a gente como areia movediça. Parabéns.

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  6. Renata, que horror! Retrato perfeito de uma alma penada, condenada a reviver seu tormento tão merecido!
    Muito bom, interessante, li rápido, sem entraves. Só o final que pra mim ficou muito explicativo, eu já tinha pescado o que teria acontecido e ler em detalhes tirou um pouco a empolgação da imaginação, mas isso é chatice minha mesmo 😅
    No mais, é um excelente conto de terror! Parabéns 🥰
    😘

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  7. Cruzes, Renata, que horror. E eu lendo isso na hora de ir pra cama, certamente esse sujeito ai vai me assombrar. Narrativa muito boa, prende a atenção. E o final, com a arrependimento do sujeito e a condenação a uma existência como uma alma penada provoca um espécie catarse no leitor. Muito bom. Um beijo, querida.

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  8. Oi, Renata!
    Que beleza de horror! Conto de quem sabe o que está fazendo. Acabei de ler que este texto foi premiado, e vejo bem o porquê: fui arrabatada de cara e ele me segurou do início ao fim!
    Parabéns, muito bom!
    Beijo!

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  9. Querida Renata, já conhecia este maravilhoso conto campeão. Voltei a apreciar demais agora, com mais calma.
    Parabéns.
    Ótimo trabalho.
    Beijos
    Paula Giannini

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  10. Olá, Renata!

    Um conto triste onde o crime para o castigo é penar todo dia. Esse tipo de narrativa casa bem quando se pretende ocultar algo para ser revelado junto com o leitor. É uma cena desesperadora de se imaginar.

    Gostei.

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