Ele é um amigo da onça e não joga com o baralho todo, por isso o convite cheirava a esturro. Mas aceitámos e fomos de pé atrás e com a pulga atrás da orelha. Chegados ao restaurante o ambiente era de bradar aos céus e cheguei a pensar que tínhamos enfiado o barrete, quando o empregado, que parecia estar a pensar na morte da bezerra, meteu água como gente grande e trocou os pedidos todos; ia-me passando dos carretos e por pouco não fiz uma tempestade num copo de água, mas a comida estava de comer e chorar por mais e além de comer à grande e à francesa, confesso que bebi até cair pró lado. Tanto que à saída, ainda com um grão na asa não me aguentava nas canetas e nem dei por que chovia a cântaros.
Cheguei a casa encharcada até aos ossos e a bater o dente e toda a noite não preguei olho a caminho da casa de banho; é no que dá comer que nem um abade e tentar meter o Rossio na Rua da Betesga.
De manhã, percebi que o nosso amigo tinha dormido lá em casa e se preparava para assentar arraiais. Claro que eu não estava pelos ajustes que isto aqui não é a da Joana e eu não sou nenhuma Maria-vai-com-as-outras, mas ele não se calava e falava pelos cotovelos, convencido que eram favas contadas e que eu caía que nem uma pata naquela conversa fiada. Ele há coisas do arco-da-velha e antes de partir a loiça toda, lembrei-me de quando era novo e me arrastava a asa e eu até o tinha fisgado, mas ficou a ver navios, porque isto há mais marés que marinheiros e eu queria andar na boa-vai-ela. Então achei que uma rapidinha não ia fazer mal a ninguém e demos foi três belas cambalhotas ali mesmo, que nem gente grande, porque não é para me desculpar, mas não nasci com o cu prá lua e não vivi à sombra da bananeira, não; comi o pão que o Diabo amassou, passei as passinhas do Algarve e fiz certas coisas antes de encontrar o homem certo, mais difícil que uma agulha no palheiro. A culpa fez-me saltar a tampa e ele nem chegava aos calcanhares do meu Zé, agora corno, ali ao lado a dormir que nem um anjinho, então mandei-o dar corda aos sapatos pôr-se na alheta. Ele, com punhos de renda e cheio de paninhos quentes, bem se arremelgou todo pra mim e tentou por água na fervura, mas eu não estava pelos ajustes e ele meteu a viola no saco e deu de frosques.
Francamente, acho que lhe dei foi trela a mais, mas confesso que apesar de ter pelo na venta e depressa me chegar a mostarda ao nariz, até nem sou má pessoa, isto sem querer puxar a brasa à minha sardinha.
Voltando à vaca fria: soube depois que o nosso amigo, que ficou para trás para pagar a dolorosa, acabou por sair de fininho sem dizer nem água vai e quem ficou a arder foi o dono do restaurante que, sabe-se lá!, pode ter memória de elefante e, não fosse o diabo tecê-las, fui lá acertar as contas com ele – ossos do ofício, paguei como sabia.
Ele tomou-lhe o gosto e temos continuado, até porque o outro era amigo dele e deu com a língua nos dentes e o meu Zé não pode saber de nada porque ele é de cabo de esquadra e a dor corno era bem capaz de o cegar e ir-se aos fagotes ao outro e mandá-lo desta pra melhor, de forma que as coisas não ficaram por aqui, mas fico eu porque esta história já cheira mal. Quem sabe, deixar o assunto em banho-Maria, pode ser que ainda escreva sobre ela e parta o coco a rir (no dia de são nunca à tarde, na semana dos nove dias ou quando as galinhas tiverem dentes).
Sensacional, Ana Maria. Adorei a ideia, muito bem desenvolvida. Alguns “dizeres” eu conhecia, outros aprendi agora e, mesmo os que desconhecia, consegui entender pelo contexto. Muito bom. Parabéns.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Olá, Ana Maria!
Que ideia incrível! Contar uma história usando tantas expressões idiomáticas foi uma sacada brilhante. Não conheço muitas delas, admito, mas em nada esse fato diminuiu o prazer da leitura.
Parabéns pelo texto delicioso!
Beijo!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Muito criativo e bem composto. Algumas expressões eu não conheço, mas isso não prejudicou o entendimento. Parabéns pela ideia maravilhosa e pelo ótimo humor de seu texto. Palmas, menina. E beijos.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Um texto divertido e que, ao mesmo tempo provoca reflexão ao leitor ao se basear no senso comum do nosso meio cultural. Há algumas diferenças entre o luso e o brasileiro, mas deu para compreender o todo.
Parabéns pela ideia e execução. Aprendi muito com seu texto, Ana ! Beijos.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Texto muito divertido, escrito e alinhavado com expressões populares. Algumas são conhecidas por aqui, outras não, mas isso não impediu o entendimento e o deleite da leitura. Gostei imenso. Parabéns.
CurtirCurtir
Caramba, Ana Maria! O que li aqui?
Olha… Estou rindo de admiração e prazer. Cara! Quantos dizeres legais! Conto muito rico, com forma deliciosa que, se me foi lento ao ler, não foi devido ao conteúdo ou pelas contruções diferentes do português brasileiro, mais sim pelo prazer. Foi por demais prazeroso ler seu texto, rir das suas contruções e da anedota contada em si. Muito, muitos parabéns mesmo! Gostei demais da desventura graciosa da narradora.
Beijos!
CurtirCurtir
Querida Ana,
Que bom que está de volta por aqui. Você fez falta!
Seu conto lembrou-me muito o “Amor por anexins” do Arthur Azevedo no que toca a estrutura, com ditos populares. Muitos deles me remeteram à infância. Minha avó é de Lisboa, então, lembrei-me muito de coisas que ela costumava dizer. Jargões que, obviamente, tornaram-se de família.
A trama também é ótima.
Parabéns.
Beijos
Paula GIannini
CurtirCurtir