Meus olhos descreveram círculos e varreram as paredes, até que pousaram no Jesus da folhinha a me vigiar o dia todo, intemporal, indesgastável. Eu não tinha o corpo fixado na eternidade como ele; eu envelhecia. Na comparação, esqueci que a folhinha era para ser usada como calendário, ver as datas. Esta finalidade havia se perdido… Os dias eram contados de forma mais modesta.
Ainda no mesmo gesto circular dos olhos, mirei, agora, a mesa, a garrafa térmica, a xícara vazia. A mão direita incluída no gesto, tomou a garrafa e despejou o café. Observei o nível do líquido subir, sabendo que isso me permitiria atingir o objetivo real, o alvo desde o início.
O cachepô de vidro rosa ficava no balcão da cozinha, guardando uma única flor fresca a cada dia. Podia cumprimentá-lo ao brindar a Adélia em uma das taças de cristal que ela levava aos lábios quando tomava seu licor de laranja. Eu estava rompendo o consagrado pelo tempo porque era preciso, porque minha irmã se fora numa noite recente.
Vasculhei roupas, joias, livros, fotos… Todos os casacos estavam adornados. Removi a flor de porcelana da jaqueta preta; do blazer azul-turquesa, o broche dourado em forma de pena; do bolero verde-escuro, o alfinete de prata. Era compreensível que eu os soltasse e guardasse na caixa, de vime, ao lado das agulhas de tricô, também dela. Mas ainda me sentia como pirata, saqueando um espólio.
A ladra que havia em mim, examinou aqueles itens íntimos, guardando o que acreditou que deveria ser resgatado e mandando o restante embora.
Descartei os rolinhos de cabelo, cartões e bilhetes de amigos e parentes; destruí as cartas de amor… Eu teria adorado saber como era ela com vinte anos, quando o homem pisou na Lua. Mas, era dela a posse de seus sentimentos mais privados. As cartas não eram minhas. Eram dela. Eram só para ela, por isso as destruí.
Decidi que o modo mais fácil de lidar com a perda era fingir que eu, ao me apossar dos tesouros, tornara-me dona daquele cofre íntimo. Poderia, assim, devolver às coisas a dimensão própria.
Oi, Fátima. Sensacional esse seu olhar para o fato de que quando nos apossamos de algo que pertencia a alguém que já se foi, podemos, de certa forma, nos apossar de um pedaço dela, de seu passado, de seus segredos. Nos tornamos donos não apenas dos objetos da pessoa ausente, mas do direito de decidir sobre estas coisas, o que pegamos, o que jogamos fora, o que tem ou não valor. Rende uma bela reflexão. Adorei. Parabéns.
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Grata pela leitura e comentário. Realmente tomamos posse da vida de quem já se foi. É a forma como podemos lidar com a saudade… Beijos.
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Puxa, Fátima, seu conto me tocou profundamente. Esse sentimento de invadir a intimidade de alguém ao dispor de seu espólio. Acho que vou escrever sobre isso também. Quem sabe amanhã ao despertar. Texto muito inspirador, amiga. Parabéns!
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O sentimento é este mesmo, não é verdade? Grata pela leitura e comentário. Beijos.
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Que conto lindo, Fátima! A atmosfera lenta e melancólica, o lirismo… a parte das cartas achei especialmente sublime: “Mas, era dela a posse de seus sentimentos mais privados. As cartas não eram minhas. Eram dela.”
Tive a sensação de que poderia ser a introdução a algo mais extenso – uma novela ou um romance, talvez?
O tema abordado me é muito caro; também tenho um texto sobre esse assunto que rende tantas observações – doces, doloridas, pungentes.
Seu conto mexeu comigo hoje; trouxe lembranças desses momentos de invasão, de “roubo”, como você tão bem colocou.
Parabéns pelo belo trabalho.
Um beijo.
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Quanto estímulo! Grata pela sua atenção. Beijos.
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Eu conheço este sentimento. Esse descobrir culpado por estar investigando as coisas alheias. Passava muitas tardes trancada no closet da mamãe onde a minha irmã me trancava e meu consolo era mexer, bisbilhotar, misturar perfumes. Um conto bem bacana porque todo mundo se identifica, cada um de nós tem um curioso dentro de si. Amei.
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Esse sentimento de envolvimento ao tomar posse de um objeto de alguém que amávamos e se foi é doído, mas autêntico. Obrigada, Iolandinha, pelo seu carinho e atenção.
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Muito bom , perfeito e autêntico. Parabéns!!!
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Grata pela sua atenção! Abraço!
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Muito simbólico, muito cheio de significados. Tomar para si e re-significar. Tomar para si e incorporar. Como se pudéssemos adornar o que somos com coisas que o outro possui ou possuiu, para dar sentido a algo que queremos, mas não temos. Para completar, para fechar as fendas, para transformar o que somos naquilo que não somos e, talvez, não sejamos, mesmo feito isso. Um texto maravilhoso.
Abraços carinhosos.
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Evelyn, compôs um poema para comentar o meu texto?! Obrigada pelo carinho e pela atenção. Beijos!
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Quanta sensibilidade ao tratar de um momento tão difícil. Mexer; remexer, fazer a triagem do que fica e do que será descartado. Os objetos até podem ganhar novos donos, mas os sentimentos não.
Fiquei emocionada com o seu texto tão delicado e profundo. Parabéns!
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Obrigada, Cláudia. Sua opinião é importante para mim. Beijos.
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Querida Fátima,
O tema “a história que os objetos contam” é algo que me fascina. Depois que partimos, tudo o que resta de nós são eles, os objetos que nos ertenceram. Gostei demais de sua leitura sobre o olhar do outro sobre a propriedade (intelectual ou não) de outra pessoa. Lindo, como sempre.
Beijos
Paula Giannini
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Grata pelo carinho! Sempre atenciosa… Beijos!
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