Aliso meus papéis tentando escolher um. Somente um que me vista de forma adequada para o momento. Há de ser o mais encorpado, o mais resistente, o menos amassado. Flexível feixe de papiro, adornado com delicadas fibras. Minhas fibras, redobradas tentativas de fortaleza.
Sinto a textura do material que não quero mais reciclar. Terá seu destino ignorado por mim. Vista-me com a facilidade de um sorriso. Raspe de mim todo relevo mal empregado. Deixe-se moldar nas depressões sucessivas. Nivele, preencha, supere as falhas. Na palma da mão se crie.
Dobro-me diante das evidências. Em leque, deixo todos os sentimentos abertos. Cortes, feridas, arranhões. Não mancho, não maculo, não tinjo. Atingida sou por uma gama imensa de sensações. Desta vez, peso grama a grama as decisões. Quero apresentar o melhor, o mais sofisticado padrão, mas nada parece se adaptar as minhas expectativas. Não há qualidade nesses pedaços picados. Uma longa folha estende-se branca e sem história.
Recomeço, aliso, dobro, friso, adorno. Repasso dedos e olhos. Acentuo linhas, igualo lados, contemplo efeitos. Sinto o papel amolecer, umedecer sob minhas mãos. Reconheço minhas próprias lágrimas e expulso todas dali. Não é a hora delas. Retomo ao trabalho, lento e minucioso processo. Concebo asas, liberdade esmagada que se abre em lóbulos estranhos. Eu sei, repito muitas vezes para mim mesma. Sei das asas, sei do voo, sei de mim.
Termino. Revejo detalhes por curiosidade e apego. Deposito sobre o fundo colorido. Contraste e dor. Não há de ficar para sempre. É assim. Sou assim. Metamorfose em floração, borboleta em transformação.
LINDO, LINDO!
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Muito lindo, delicado, sensível. Estamos em eterna transformação. Tenho um poeminha tb que fala mais ou menos disso, metamorfose… não podemos parar de dobrar, vincar, alisar. Parabéns.
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É uma poesia o que encontro aqui. Uma beleza prosa poética que, nas dobraduras do papel, veste e despe as emoções do seu eu lírico. Uma protagonista que experimenta que papel lhe traduz melhor qual relação quer viver. E vivendo esses momentos, vai aprendendo, vai sentindo os sabores do que quer e do que não quer mais (papel reciclado = amor que não vale a pena reciclar). É isso. Parabéns pela sensibilidade na escrita.
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O que fascina nas borboletas é que não há outro animal que passe por uma metamorfose tão intensa e completa. Para ser borboleta é preciso reestruturar-se completamente e esse processo exige que seja de dentro para fora. O que encanta no origami é a destreza exigida, porque é preciso dobrar certo para não danificar o produto. Seu texto faz essas analogias de forma tão concisa, tão certeira. Pessoas são tão complexas quanto. Carregadas de vincos, de dobras, de transformações externas e internas, sempre buscando a luz, talvez, como a borboleta, a purificação, como alguns acreditam, buscando o jeito certo, o momento certo, a vida perfeita, o acabamento. É um texto muito bonito. Creio que, aqui, você escreveu um poema em prosa, delicado e intenso.
Abraços carinhosos.
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Prosa poética da melhor qualidade. As analogias são tão lindas quanto certeiras. Viver é isso mesmo: dobrar, se desdobrar, se transformar.
Parabéns pelo lindo texto!
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O origami criando representações e sensibilidade de determinados seres. As dobraduras e sua visão delas, Cláudia, incentivam a capacidade de fantasiar, são desafios para a imaginação, que buscam a criação de modelos renovados. Parabéns pela ideia e pela poesia da linguagem. Beijos!
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Muito lindo, Claudia. A delicadeza do origami que transforma o papel em representações como metáfora para o reinventar-se na vida. Eu li seu texto também como uma metáfora do processo artístico, no nosso caso, a literatura. Ah, acabei de adquirir seu livro na Amazon. Beijos, querida.
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Querida Cláuda,
Concordo com a Elisa quando fala do processo criativo da arte e da literatura na metáfora para sua dobradura aqui. Precisamos dobrar, desdobrar, esticar, amassar, desamassar.
Muito poético, no tom.
Adorei.
Beijos
Paula Giannini
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